Idelber Avelar na REVISTA FÓRUM
Este não será um texto sobre racismo nem sobre cotas. Escrevo sobre o tema há alguns anos mas, nos últimos tempos, tenho me limitado a divulgar, admirar e comentar os textos em que, com prosa cintilante, pesquisa histórica exaustiva e sensibilidade incomum,
Ana Maria Gonçalves se dedica a esmiuçar os caminhos do racismo
brasileiro. Não se tratará, aqui, portanto, do já conhecido rosário do
negacionismo brasileiro. Distorções e omissões várias são sua matéria
cotidiana, mas o tema aqui será algo bem mais grave, a falsificação de
citações e a posterior adulteração de um arquivo para tentar encobrir
dita falsificação, depois que a mentira foi denunciada, aqui mesmo na
Revista Fórum. O caso é sério, especialmente porque sua autora é
professora numa das instituições universitárias mais respeitadas do
país, a UFRJ. Não se trata de um erro ou de um engano, como se verá
adiante.
Em seu texto “A constitucionalidade das cotas raciais no Brasil”, publicado no portal d’O Globo no dia 23/04, Yvonne Maggie escreveu:
Em Thirteen ways of looking at a black man, de Henry Louis Gates Junior, professor de Harvard, há uma história reveladora do que se passou depois da lei dos direitos. Neste livro, Harry Belafonte conta que alguns anos depois de 1964 fora convidado para fazer um filme. O produtor, muito animado, lhe dissera: “Harry, será maravilhoso, vamos fazer um filme dirigido e estrelado por negros, produzido por negros, com música feita por negros e vai ser belíssimo”. Ao que o ator, nervoso, respondeu: “Não quero fazer parte disso, passei tantos anos lutando para sair do gueto, não serei eu a me enfiar de novo nele”. Gates conta que durante a entrevista, após esta declaração de Harry, seguiu-se um silêncio constrangedor, só quebrado com uma sonora gargalhada do entrevistado e a seguinte frase: “Eu não aceitei a armadilha, mas é claro que Sidney Poitier aceitou e ficou rico estrelando todos aqueles filmes”.
Pois bem, tudo o que está nesse parágrafo é falso. Nada disso se encontra no livro Thirteen ways of looking at a black man,
de Henry Louis Gates. Como está longamente explicado no texto de Ana,
Yvonne Maggie simplesmente atribuiu a Henry Louis Gates Jr. algo que ele
jamais escreveu. Colocou entre aspas, atribuída a “um produtor”, uma
frase que jamais foi dita ao ator Harry Belafonte. Atribuiu ao próprio
Belafonte, ativista dos direitos civis, uma frase que ele não
pronunciou, e por cuja atribuição ele com certeza poderia processar
criminalmente Yvonne Maggie. A suposta paráfrase que começa com “Gates
conta que …” também é falsa, e tem como predicado algo que Gates nunca
contou. A frase seguinte, entre aspas e atribuída a Harry Belafonte,
também é uma fabricação de Yvonne Maggie.
As falsificações têm como objetivo manipular a voz de
dois negros respeitados – ambos ativistas da luta pelos direitos civis e
pela cidadania afro-americana – de forma a fazer parecer que eles
tivessem corroborado a fantasia de Yvonne Maggie, de que a luta pelas
políticas de ação afirmativa é uma forma de “se enfiar de novo no gueto”
(expressão jamais atribuída a Harry Belafonte no livro de Henry Louis
Gates). Daí a falsificação das datas: as duas histórias a partir das
quais Yvonne Maggie constrói sua mentira (e que tem com esta pouquíssima
relação) aconteceram por volta de 1959-60. Ela adultera a data para
“depois de 1964” de forma que as declarações possam parecer uma recusa
da “volta ao gueto” posterior à publicação da legislação dos direitos
civis nos EUA. Caso você queira saber o que realmente está escrito no
livro de Henry Louis Gates, basta ler o artigo de Ana.
Como se verá lá, trata-se de dois episódios, nenhum dos quais tem o
conteúdo sugerido por Yvonne Maggie ou contém as frases colocadas por
ela entre aspas.
O parágrafo com as falsificações, que se encontra no texto de Yvonne Maggie
… Opa! Peraí. O parágrafo já não está lá! Citado por Ana no texto
publicado aqui na Fórum, o trecho foi posteriormente retirado, sem
qualquer aviso, justificativa ou crédito a quem havia apontado o seu
“engano”. A professora da UFRJ se esqueceu de que havia escrito na
Internet, onde blogueiro véio não é bobo. Já acostumados com a
desonestidade intelectual do negacionismo brasileiro, fotografamos a
página antes da adulteração. Eis aqui o printscreen do texto de Yvonne
Maggie com a falsificação agora ocultada. É só clicar e ampliar:
.
A professora Yvonne Maggie, portanto, não apenas
adulterou citações, falsamente atribuindo a líderes negros
norte-americanos frases que eles jamais disseram. Quando pega na
mentira, adulterou o arquivo que ela mesma havia escrito, sem qualquer
reconhecimento da falsificação. Não deixa de ser uma estratégia comum do
negacionismo brasileiro: apagar, “branquear” as marcas da barbárie.