terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Domenico Losurdo: “Liquidar o monopólio ocidental da tecnologia”


Em entrevista a Tian Shigang, da revista "Chinese Social Sciences Today" (CSST), o intelectual marxista Domenico Losurdo explica suas teses mais recentes e defende o legado das revoluções na Rússia e na China. Segundo o autor italiano, “a luta de emancipação dos povos em condições coloniais e semicoloniais não acaba com a conquista da independência política.” Ele também aponta quatro grandes contribuições do pensador italiano Antônio Gramsci à teoria marxista e mostra por que “liquidar o monopólio ocidental da tecnologia é também luta revolucionária”.
 
Chinese Social Sciences Today: Em 2005, foi publicado o seu livro “Fuga da História? — A Revolução Russa a Revolução Chinesa Vistas Hoje”. O que o levou a escrevê-lo?
 
Domenico Losurdo: A primeira edição do livro foi publicada em 1999. Era o momento em que o fim da Guerra Fria era interpretado como o fracasso irremediável de toda tentativa de construir uma sociedade socialista, como o triunfo definitivo do capitalismo e inclusive com o “fim da história”.
No Ocidente, este modo de ver as coisas fazia mossa na própria esquerda: até os comunistas — ainda que declarassem querer permanecer fieis aos ideais do socialismo — na linha seguinte acrescentavam que não tinham nada a ver com a história da União Soviética nem com a história da China onde, diziam, se havia verificado a “restauração do capitalismo”. Para me opor a esta “fuga à história”, propus-me explicar a história do movimento comunista desde a Rússia da Revolução de Outubro até a China surgida das reformas de Deng Xiaoping.
 
CSST: No se entender, por quais motivos a União Soviética se desmembrou?
 
Losurdo: Em 1947, quando enuncia a política da contenção, seu teórico, George F. Kennan, explica que é preciso “aumentar enormemente as tensões (strains) que a política soviética tem de suportar”, a fim de “promover tendências que acabem por quebrar ou abrandar o poder soviético”. Nos nossos dias, não é muito diferente a política dos Estados Unidos para com a China, ainda que enquanto isso a China haja acumulado uma grande experiência política.
Para além da contenção, o que determinou a derrocada da União Soviética foram as suas graves debilidades internas. Convém refletir sobre a célebre tese de Lênin: “Não há revolução sem teoria revolucionária”. O partido bolchevique, sem dúvida, tinha uma teoria para a conquista do poder, mas, se por revolução se entender não só a destruição da velha ordem como também a construção da nova, os bolcheviques e o movimento comunista careciam substancialmente de uma teoria revolucionária.
Portanto, não se pode considerar que uma teoria da sociedade pós-capitalista por construir se reduza à espera messiânica de um mundo no qual hajam desaparecido por completo os Estados, as nações, o mercado, o dinheiro, etc. O PCUS cometeu o grave erro de não fazer nenhum esforço para preencher esta lacuna.
 
CSST: No seu entender, que caráter e que significado tem a Revolução Chinesa?
 
Losurdo: No princípio do século 20, a China fazia parte do mundo colonial e semicolonial — estava submetida ao colonialismo e ao imperialismo. Um marco histórico foi a Revolução de Outubro, que desencadeou e impulsionou uma onda anticolonialista de dimensões planetárias.
A seguir, o fascismo e o nazismo foram a tentativa de revitalizar a tradição colonial. Em particular, a guerra desencadeada pelo imperialismo hitleriano e o imperialismo japonês, respectivamente, contra a União Soviética e contra a China, foram as maiores guerras coloniais da história.
De modo que Stalingrado na União Soviética e a Longa Marcha e a guerra de resistência contra o Japão na China foram duas grandiosas lutas de classe, as que impediram que o imperialismo mais bárbaro efetuasse uma divisão de trabalho baseada na redução de grandes povos a uma massa de escravos ao serviço das supostas raças dos senhores.
Mas a luta de emancipação dos povos em condições coloniais e semicoloniais não acaba com a conquista da independência política.
Já em 1949, a ponto de conquistar o poder, Mao Zedong havia insistido na importância da edificação econômica. Washington quer que a China se “reduza a viver da farinha estadunidense”, com o que “acabaria por ser uma colônia estadunidense”. Ou seja, sem a vitória na luta pela produção agrícola e industrial, a vitória militar acabaria por ser frágil e vazia. De certo modo, Mao havia previsto a passagem da fase militar à fase econômica da revolução anticolonialista e anti-imperialista.
O que acontece nos nossos dias? Os Estados Unidos estão transferindo para a Ásia o grosso do seu dispositivo militar. Em despacho da agência Reuters de 28 de outubro de 2011, pode-se ler que uma das acusações de Washington aos dirigentes de Pequim é que fomentam ou impõem a transferência de tecnologia ocidental para a China.
Está claro: os Estados Unidos pretendem conservar o monopólio da tecnologia para continuar a exercer a hegemonia e inclusive um domínio neocolonial indireto. Por outras palavras, ainda nos nossos dias a luta contra o hegemonismo coloca-se também no plano do desenvolvimento econômico e tecnológico. É um aspecto que, lamentavelmente, a esquerda ocidental nem sempre consegue entender.
Há que sublinhá-lo com força: revolucionária não é só a longa luta com que o povo chinês pôs fim ao século das humilhações e fundou a República Popular; revolucionária não é só a edificação econômica e social com que o Partido Comunista Chinês livrou da fome centenas de milhões de homens; também a luta para romper o monopólio imperialista da tecnologia é uma luta revolucionária. Foi-nos ensinado por Marx.
Sim, ele nos ensinou que a luta para superar, no âmbito da família, a divisão patriarcal do trabalho já é uma luta revolucionária; seria muito estranho que não fosse uma luta de emancipação a luta para acabar à escala internacional com a divisão do trabalho imposta pelo capitalismo e o imperialismo, a luta par liquidar definitivamente esse monopólio ocidental da tecnologia, que não é um dado natural — e, sim, o resultado de séculos de domínio e opressão!
 
CSST: Em 2005 foi publicado o seu livro “Contra-história do Liberalismo”, que alcançou um grande êxito (num ano, foi reeditado três vezes e a seguir traduzido em vários idiomas). O que significa esse título?
 
Losurdo: O meu livro não desconhece os méritos do liberalismo, que põe em evidência o papel do mercado no desenvolvimento das forças produtivas e sublinha a necessidade de limitar o poder (ainda que só a favor de uma reduzida comunidade de privilegiados).
“Contra-história do Liberalismo” polemiza com a autoglorificação e a visão apologética dos que se entregam ao liberalismo e ao Ocidente liberal. É uma tradição de pensamento em cujo âmbito a exaltação da liberdade vai junto com terríveis cláusula de exclusão em prejuízo das classes trabalhadoras e, sobretudo, dos povos colonizados.
John Locke, pai do liberalismo, legitima a escravidão nas colônias e é acionista da Royal African Company, a empresa inglesa que gere o tráfico e o comércio dos escravos negros. Mas, para além das personalidades individuais, o importante é o papel dos países que melhor encarnam a tradição liberal. Um dos primeiros atos de política internacional da Inglaterra liberal, nascida da Revolução Gloriosa de 1688-1689, é assumir o monopólio do tráfico de escravos negros.
Mais importante ainda é o papel da escravidão na história dos Estados Unidos. Durante 32 dos primeiros 36 anos de vida dos Estados Unidos, a presidência do país foi ocupada por proprietários de escravos. E isso não é tudo. Durante várias décadas, o país dedicou-se a exportar a escravidão com o mesmo zelo com que hoje pretende exportar a “democracia”: em meados do século 19 reintroduziram a escravidão no Texas, recém-arrebatado ao México através de uma guerra.
É verdade que primeiro a Inglaterra e a seguir os Estados Unidos viram-se obrigados a abolir a escravidão, mas o lugar dos escravos negros foi ocupado pelos cules chineses e índios, submetidos a uma forma apenas dissimulada de escravidão. Além disso, depois da abolição formal da escravidão, os afro-americanos continuaram a sofrer uma opressão tão feroz que um eminente historiador estadunidense, George M. Fredrickson, escreveu: “Os esforços para preservar a ‘pureza da raça’ no Sul dos Estados Unidos preludiavam alguns aspectos da perseguição desencadeada pelo regime nazi contra os judeus nos anos 30 do século 20”.
Quando começa a enfraquecer nos Estados Unidos o regime de supremacia branca, de opressão e discriminação racial, sobretudo contra os negros? Em dezembro de 1952, o ministro estadunidense da Justiça envia ao Tribunal Supremo, em plena discussão sobre a integração nas escolas públicas, uma carta eloquente: “A discriminação racial leva a água ao moinho da propaganda comunista e também semeia dúvidas nos países amigos acerca da nossa devoção à fé democrática”.
Washington — observa o historiador estadunidense que reconstrói este episódio (C. Vann Woodward) — corria o risco de alienar o favor das “raças de cor” não só no Oriente e no Terceiro Mundo como também no seu próprio país. Só então o Tribunal Supremo decidiu declarar inconstitucional a segregação racial nas escolas públicas.
Há um paradoxo na história. Hoje Washington não se cansa de acusar a falta de democracia na China; mas convém assinalar um elemento essencial da democracia: a superação da discriminação racial só foi possível nos Estados Unidos graças ao repto representado pelo movimento anticolonialista mundial, de que a China fazia e faz parte.
 
CSST: No meu entender, entre as muitas edições italianas do “Manifesto do Partido Comunista” há três que se destacam: a de Antonio Labriola, a de Palmiro Togliatti e a sua de 1999. Na sua opinião, que significado tem esta obra fundamental de Marx e Engels para os marxistas de hoje?
 
Losurdo: Na introdução da edição italiana do “Manifesto do Partido Comunista”, tentei reconstruir o século e meio de história transcorrido desde a publicação em 1848 deste texto extraordinário. Uma confrontação pode nos ajudar a entender o seu significado.
Oito anos antes, outra grande personalidade da Europa do século 19, Alexis de Tocqueville, publica o segundo livro da “Democracia na América” e, num capítulo central, afirma já no título que “as grandes revoluções serão cada vez menos frequentes”. Mas, se nos fixarmos no século e meio posterior ao ano (1840) em que o liberal francês faz esta afirmação, vemos que se trata do período talvez mais abundante em revoluções da história universal.
Não há dúvida: ao prever a rebelião contra o capitalismo — contra um sistema que implica a “transformação em máquina” dos proletários e a sua degradação em “instrumentos de trabalho”, em “acessórios da máquina”, um apêndice “dependente e impessoal” do capital “independente e pessoal” —, ao prever tudo isto, o “Manifesto do Partido Comunista” soube olhar mais longe.
Quando descrevem com extraordinária lucidez e clarividência o que hoje chamamos globalização, Marx e Engels sabem bem que se trata de um processo contraditório, caracterizado (no âmbito do capitalismo) por crises colossais de superprodução que provocam a destruição de enormes quantidades de riqueza social e a miséria de massas ingentes de homens e mulheres. Além disso, é um processo eriçado de conflitos que podem desembocar, inclusive, numa “guerra industrial de aniquilação entre as nações”. O que nos leva a pensar na 1ª Guerra Mundial.
Contra todo este mundo, o “Manifesto do Partido Comunista” evoca tanto as revoluções proletárias como as “revoluções agrárias” e de “libertação nacional”. De modo que Marx e Engels se anteciparam a um cenário que se verificará no 3º Mundo, como por exemplo na China.
A propósito da China pode-se fazer uma última consideração. O “Manifesto do Partido Comunista” prevê a aparição de uma economia globalizada caracterizada por “indústrias novas, cuja introdução passa a ser uma questão de vida ou morte para todas as nações civilizadas, indústrias que já não elaboram matérias-primas locais e, sim, matérias-primas procedentes das regiões mais remotas e cujos produtos consomem-se não só no interior do país como também em todas as partes do mundo”.
Portanto, ainda que centre o olhar sobre a Europa, o texto de Marx e Engels acaba por dar indicações muito valiosas para os países do 3º Mundo que querem alcançar um desenvolvimento econômico independente.
 
CSST: Quais são, no seu entender, as contribuições de Antonio Gramsci à teoria marxista?
 
Losurdo: Creio que as contribuições da obra deste grande pensador foram pelo menos quatro:
1) Gramsci evidenciou a importância da “hegemonia” para a conquista e conservação do poder político. Num texto de 1926, ele explica: o proletariado só dá mostras de possuir uma consciência de classe madura quando se eleva a uma visão da sua classe de pertencimento como núcleo dirigente de um bloco social muito mais amplo, chamado a conduzir a revolução à vitória.
2) Em segundo lugar, Gramsci mostra-se plenamente consciente da complexidade que implica o processo de construção do socialismo. A princípio, será “o coletivismo da miséria, do sofrimento”. Mas não pode ficar nisso, tem de enfrentar o desenvolvimento das forças produtivas. É nesse âmbito que deve ser situada a importante tomada de posição de Gramsci a propósito da NEP (a Nova Política Econômica introduzida após o “comunismo de guerra”).
A realidade da União Soviética daquele momento coloca-nos na presença de um fenômeno “nunca visto na história”: uma classe politicamente “dominante” encontra-se “globalmente em condições de vida inferiores às de certos elementos da classe dominada e submetida”. As massas populares, que continuam a padecer uma vida de privações, estão desorientadas diante do espetáculo do “nepman” [o homem da NEP] afundado no seu casaco de peles, que tem à sua disposição todos os bens da terra”.
Mas isto não deve ser motivo de escândalo ou repulsa, pois o proletariado, o mesmo que não pode conquistar o poder, tampouco pode mantê-lo se for incapaz de sacrificar interesses particulares e imediatos aos “interesses gerais e permanentes da classe”. Trata-se, naturalmente, de uma situação transitória. O que Gramsci sugere aqui pode ser útil à esquerda ocidental para compreender a realidade de um país como a China atual.
3) Gramsci dá-nos algumas indicações valiosas sobre outro aspecto. Devemos imaginar o comunismo como a dissipação total não só dos antagonismos de classe — mas também como do Estado e do poder político, assim como das religiões, das nações, da divisão do trabalho, do mercado, de qualquer fonte possível de conflito? Questionando o mito da extinção do Estado e da sua dissolução na sociedade civil, Gramsci assinala que a própria sociedade civil é uma forma de Estado.
Também destaca que o internacionalismo não tem nada a ver com o desconhecimento das peculiaridades e identidades nacionais, que subsistirão muito depois da queda do capitalismo. Quando ao mercado, Gramsci considera que conviria falar de “mercado determinado”, em vez de mercado em abstrato. Gramsci ajuda-nos a superar o messianismo, que dificulta gravemente a construção da sociedade pós-capitalista.
4) Finalmente, ainda que condenem o capitalismo, as “Cartas do Cárcere” evitam interpretar a história moderna e as revoluções burguesa como um tratado de “teratologia” — ou seja, um tratado que se ocupa de monstros. Os comunistas devem criticar os erros, por vezes graves, de Stáline, Mao e outros dirigentes, sem reduzir nunca esses capítulos da história do movimento comunista a uma “teratologia”, uma história de monstros.

Os vendilhões dos templos eletrônicos em tempos de espertalhões da fé

A estrela do Show da Fé, R. R. Soares | Marcos AC/R.R. Soares/Flickr

Luiz Cláudio Cunha *
Especial para o Sul21

Incapaz de vender a alma ao diabo, a Rede Bandeirantes acaba de revender seu santo horário da noite para o pastor R.R. Soares, o líder da Igreja Internacional da Graça de Deus. O seu ‘Show da Fé’ de 20 minutos, que começava religiosamente às 21h, agora vai durar uma hora inteira, a partir das 20h30. Não se sabe ainda quanto custou esse novo e triplicado milagre, mas pelo contrato antigo o bom pastor já pagava R$ 5 milhões mensais à Band.  O vil metal falou mais alto para a TV de Johnny Saad, que anunciava a devolução do horário nobre da noite a seriados consagrados, como o 24 Horas, para concorrer com as novelas da Globo e as séries do SBT, todas com melhor audiência.
De 20 minutos para uma hora diária na Band | Marcos AC/R.R. Soares/Flickr

A novidade escangalhou os planos do argentino Diego Guebel, que assumiu a direção artística da Band em outubro passado com a promessa de recuperar o espaço nobre e caro da noite para atrações mais mundanas do que a prosopopeia de Soares. A bíblica derrota de Guebel na Band é apenas outro indício da onda avassaladora do dinheiro que afoga a TV brasileira deste Brasil cínico que finge ser laico e imune à força econômica da religião e seus falsos profetas. Os canais de rádio e TV são concessões públicas, supostamente alheias aos credos e seitas religiosas que transformaram estúdios, igrejas, templos e estádios em púlpitos eletrônicos cada vez mais invasivos e escancarados.
Não existe ninguém no Governo ou no Congresso brasileiros com coragem para frear essa flagrante ilegalidade, sancionada por verbas, dízimos, patrocínios e uma farta hipocrisia. A irrestrita capitulação aos padres e pastores que lideram milhões de fiéis (e eleitores) ficou escancarada na última eleição presidencial, em 2010, quando os dois principais candidatos com raízes na esquerda — Dilma Rousseff e José Serra — sucumbiram vergonhosamente à chantagem das correntes mais atrasadas das igrejas, frequentando missas e cultos com o gestual mal ensaiado de pios devotos que não sabiam nem metade da missa, nem qualquer salmo dos evangelhos. Encenaram um constrangedor teatro de conversão medida para não ofender o eleitor mais ortodoxo. Para não perder votos, Dilma e Serra caíram na armadilha do falso debate religioso sobre o aborto — um tema que um e outro, por mera consciência política ou formação acadêmica, sabem que nos países mais evoluídos não passa de um grave e secular problema de saúde pública.
Os evangélicos detêm 80 rádios e quase 280 emissoras de TV | Edir Macedo/Facebook

A submissão das instâncias do Estado secular ao poder cada vez maior das igrejas pode ser medida pela intrusão cada vez mais descarada da fé nos meios eletrônicos do Brasil, que deturpam a concessão pública pelo proselitismo religioso vetado pela Constituição. A igreja católica brasileira agrupa hoje mais de 200 rádios e quase 50 emissoras de TV, contra 80 rádios e quase 280 emissoras de TV de oito braços do crescente ramo evangélico. É um domínio que se fortalece cada vez mais, embora adaptando seu perfil para fórmulas mais agressivas e despudoradas de avanço sobre o bolso das populações mais pobres, mais desesperadas, menos instruídas.

Comer ou dormir

Em agosto de 2011, a Fundação Getúlio Vargas divulgou o Novo Mapa das Religiões, um denso estudo realizado pelo Centro de Políticas Sociais da FGV, com base em 200 mil entrevistas formuladas pelo IBGE em 2009 a partir de sua Pesquisa de Orçamento Familiar (POF). O trabalho mostrou que o Brasil deixará de ser a maior nação católica do mundo nos próximos 20 anos, mantida a queda progressiva que sofre a Igreja no país. Ela representava 83,24% da população em 1991 e caiu para 68,43% em 2009. “As mudanças que antes ocorriam em 100 anos agora acontecem em 10. Se esta perda de 1% de católicos por ano continuar, a Igreja católica terá em 20 anos menos da metade da população brasileira”, destacou o coordenador da pesquisa, Marcelo Côrtes Neri, economista-chefe do Centro de Políticas Sociais da FGV.
A economia é um forte indutor desta transformação, diz Neri. Ele lembra que as chamadas ‘décadas perdidas’ de 1980 e 1990 foram demarcadas pela queda do catolicismo em contraste com a ascensão dos grupos evangélicos, especialmente seus ramos mais belicosos e vorazes — os neopentecostais. O período de 2003 a 2009, compreendido entre duas graves crises econômicas, observa uma segunda explosão evangélica, passando de 17,9% para 20,2%. A primeira explosão, ainda maior, ocorreu nas últimas seis décadas do Século 20, quando os evangélicos aumentaram seu rebanho em sete vezes: passaram de 2,6% em 1940 para 15,4% em 2000. A FGV foi buscar no alemão Max Weber (1864-1920), o pai da moderna sociologia, o fundamento teórico que explica o avanço arrebatador dos evangélicos, a partir de sua obra mais conhecida — A ética protestante e o ‘espírito’ do capitalismo, publicada em 1904-05. Ali, Weber explica o maior desenvolvimento capitalista nos países protestantes no Século 19 e a maior proporção desses fiéis entre empresários e trabalhadores mais qualificados. “A tese de Weber era que o estilo de vida católico jogava para outra vida a conquista da felicidade. A culpa católica inibiria a acumulação de capital e a lógica da dívida de trabalho, motores fundamentais do desenvolvimento capitalista”, escreve Neri.
Weber: Melhor comer que dormir em paz

Weber repetia um ditado da época: “Entre bem comer ou bem dormir, há que escolher. O protestante quer comer bem, enquanto o católico quer dormir sossegado”. O pensador alemão constrói seu texto em cima de máximas do inventor e calvinista americano Benjamin Franklin (1706-1790), um dos líderes da Independência dos Estados Unidos, que dizia que “tempo é dinheiro” e “dinheiro gera mais dinheiro”. Era uma notável conversão justamente aos argumentos opostos que levaram ao grande cisma do cristianismo, no início do Século 16, quando um atrevido padre agostiniano alemão, Martinho Lutero, pregou nos portões da igreja de Wittenberg as suas 95 teses que desafiavam a autoridade do Papa e quebravam a hegemonia de Roma sobre o mundo cristão. Na época, Lutero denunciava justamente o que seria o âmago da Reforma Protestante: o desvio do caminho de fé da igreja primitiva para o atalho da corrupção, da indulgência, da simonia e da luxúria de papas e cardeais rodeados de amantes e concubinas, antecessores lascivos dos bispos e padres que comem criancinhas.

Teologia do bolso

Lutero e sua radical volta às origens, estimulando o protesto aos desvios éticos de Roma e o retorno à palavra original dos evangelhos, geraram os dois termos que identificam os segmentos mais prósperos da dissidência cristã: os protestantes e os evangélicos, onde brilha sua facção mais agressiva e endinheirada — o pentecostalismo, que hoje abriga no mundo cerca de 600 milhões de seguidores, pulverizados em 11 mil seitas e subgrupos. Ali viceja sua parcela mais faustosa: a corrente neopentecostal, a que pertencem o abonado bispo R.R. Soares e seus parceiros mais ricos, os também bispos Edir Macedo, Silas Malafaia e Valdemiro Santiago, cada um chefiando sua própria seita, sempre na condição suprema de ‘apóstolos’.  Todos mostram uma devoção especial pela alma e pelo bolso de seus seguidores, a quem não se acanham de pedir contribuições financeiras a que, recatadamente, chamam de ‘oferta’.
Apóstolo sertanejo Valdemiro Santiago | Eduardo Pinto/impd.org.br

Para não atormentar ainda mais a vida de sua aflita freguesia, os quatro chefes religiosos tratam de facilitar ao máximo as ofertas financeiras. Na tela da TV de seus animados cultos, sempre se oferece o número das contas bancárias, a bandeira dos cartões de crédito ou o telefone para informações extras que permitam a oferta, rápida e facilitada. Nenhum deles fica ruborizado pela insistência do pedido de ajuda, porque todos são pios devotos da ‘Teologia da Prosperidade’, uma doutrina pecuniária que faria o velho Lutero engolir cada uma das 95 teses que vomitou contra a cupidez da velha Roma.
A ideia nasceu, evidentemente, no coração do capitalismo, os Estados Unidos, no início do Século 20. O pai dessa fé sonante é o americano Essek William Kenyon (1867-1948), um evangelista de origem metodista nascido em Saratoga, Estado de Nova York. Descobriu o milagre do rádio e plantou ali a sua “Igreja no Ar”, a ancestral eletrônica dos R.R.Soares e Malafaias da vida. Espalhou então aos quatro ventos o lema que explica as benesses divinas da fartura: “O que eu confesso, eu possuo”.
Kenyon passou o bastão da prosperidade para um conterrâneo, Kenneth Erwin Hagin (1917-2003), um jovem texano com deficiência cardíaca, que caiu de cama quando adolescente. Garantiu ter ido e voltado ao inferno e ao céu não uma, nem duas, mas três (três!) vezes. Com este desempenho singular, até para campeões de esportes radicais, o jovem naturalmente converteu-se. Dizendo-se ungido para ser mestre e profeta, Hagin garantia ter tido oito (oito!) visões de Cristo na década de 1950, além de acumular alguns passeios extracorpóreos. Tudo isso acrescido pela divina revelação de que os verdadeiros fiéis deviam gozar de uma excelente saúde financeira e que o caminho da fortuna passava, inevitavelmente, pela prosperidade de seus profetas aqui na Terra. Foi sopa no mel, e a teologia da prosperidade conquistou corações e mentes — e bolsos.

Na conta do santo

O dono da Record, bispo Edir Macedo, segunda maior audiência do país / Facebook

A primeira semente deste ostensivo neopentecostalismo brotou no Brasil com a Igreja Universal do Reino de Deus, fundada em 1977 pelo bispo Edir Macedo. Três anos depois, o pastor R.R. Soares, casado com Magdalena, irmã de Macedo, saiu do ninho da Universal para fundar sua própria igreja, a Internacional da Graça de Deus, que acaba de alugar a tela do horário nobre da Band graças ao verbo divino e a verba milionária do pastor. Uma década depois, o bispo Macedo, ainda mais próspero do que o cunhado, comprou a sua própria rede de TV, a Record, hoje a segunda maior audiência do país (4,7 pontos) no horário nobre das noites de dezembro passado, embora ainda distante da Globo (13,8).
Os televangelistas brasileiros aparentemente compõem um paraíso na terra e no ar rico em mirra, incenso e ouro, muito ouro. Há tempos, quatro grupos evangélicos rondam o empresário Sílvio Santos, que topa tudo por dinheiro, na esperança de amealhar o espaço das madrugadas do SBT por módicos R$ 20 milhões mensais. Em 2009, o próprio Edir Macedo alvejou sua maior concorrente: ofertou R$ 545 milhões para alugar o espaço das madrugadas da Rede Globo para a sua Igreja. A Globo piscou, não respondeu, e o bispo voltou à carga em agosto passado, disposto a mover céus e terras. Nada feito.
A contabilidade desses pastores, pelo jeito, oscila entre o inferno e o paraíso. O bispo que oferecia milhões para comprar um naco do maior concorrente era o mesmo dono da Igreja que fazia um descarado apelo em seu blog, em abril passado, para que os fieis juntassem alguns trocados para ajudá-lo a pagar a conta salgada de seu site. Coisa miúda, apenas R$ 107.622 mensais, que o pobre bispo diz gastar com despesas mundanas como hospedagem do servidor, salário dos funcionários, água, luz e gastos administrativos da manutenção do site. “Se o Espírito Santo lhe tocar, nos ajude a carregar essa responsabilidade”, escreveu o bispo, implorando por uma doação mínima de R$ 20.
Um novo dia de um novo tempo começou para a Globo e os evangélicos | Foto: Divulgação

O espírito santo, aparentemente, tocou a Rede Globo. A emissora dos Marinho odeia o bispo Macedo, mas adora os evangélicos. Na véspera do Natal de 2011, 18 de dezembro, a maior rede desta vasta nação católica rasgou o hábito e transmitiu o seu primeiro evento evangélico, gravado uma semana antes no Aterro do Flamengo, no Rio. O público presente, apenas 20 mil pessoas, foi uma heresia para as ambições bíblicas da Globo, mas a fiel audiência na telinha na tarde do domingo seguinte foi uma bênção divina.  Ao longo dos 75 minutos do programa, condensado de quase oito horas de gravação ao vivo (entre 14h e 21h30), apresentaram-se nove artistas no ‘Festival Promessas 2011′, sob o comando do astro global Serginho Groisman. Um dos mais festejados foi o cantor Regis Danese, 39 anos, que vendeu um milhão de cópias com um único disco gospel, “Compromisso”, o único a conquistar o primeiro lugar em rádios e TVs seculares do país e que lhe garantiu a indicação para o prêmio Grammy Latino em 2009.

A conversão da Globo

Antes desse sucesso, Danese já era consagrado como artista do “Só Pra Contrariar”, um grupo de pagode que ainda ostenta o 27º lugar do ranking brasileiro, com 8 milhões de discos vendidos. Apesar disso, com problemas no casamento, converteu-se ao protestantismo no início do século. Salvou o matrimônio com Kelly, sua parceira musical, e engordou ainda mais o bolso. O álbum “Compromisso”, que conquistou o ‘Disco de Diamante’ pela venda de 500 mil cópias em apenas quatro meses de 2008, traz o seu maior sucesso, Faz um Milagre em Mim.  O jornalista Tom Phillips, do diário britânico The Guardian, anotou que, logo após sua triunfal apresentação no festival da Globo, Danese foi indagado na entrevista coletiva sobre os fundamentos deste milagre musical: “O senhor escutou a voz de Deus? O que ele disse?”, perguntavam-lhe. O ex-pagodeiro explicava e, embevecido, o isento repórter da revista Nova Jerusalém ressoava a cada resposta: “Amém. Louvado seja o Senhor!”
O CD "Compromisso". Sucesso absoluto. | Foto: Divulgação

A genuflexão da Globo não representa uma súbita conversão da emissora ao credo evangélico da música: “A Globo não é um canal católico, e sim secular e republicano. Apenas documentamos um festival gospel por sua crescente importância na vida cultural do Brasil”, esquivou-se Luiz Gleizer, diretor da TV, ao jornalista britânico que ecoou o festival sob uma manchete embalada pela típica ironia inglesa: “O Gospel começa a dar o tom no Brasil, a casa da bossa nova”.
Os profetas da Globo não sabem entoar um único salmo, mas como os apóstolos eletrônicos da concorrência também têm um ouvido afinado pelo doce tilintar das moedas do templo. Isso não é contado nem no confessionário, mas os querubins globais sussurram nos corredores da ‘Vênus Platinada’ que os direitos de comercialização e os espaços publicitários do festival renderam à Globo algo entre R$ 35 milhões a R$ 55 milhões, o suficiente para remir muitos pecados, dúvidas e dívidas, aqui na terra e lá no céu. O grupo é dono da gravadora Som Livre e de um catálogo religioso onde brilham ídolos como o padre católico Fábio de Melo, que já vendeu quase 2 milhões de CDs pelo selo global.
O olho cúpido e republicano da Globo está mirando um mercado de música gospel que o The Guardian estima em R$ 1,5 bilhão, um paraíso econômico onde se irmanam crentes, artistas, emissoras laicas, pastores, espertalhões, vigaristas e políticos de todas as crenças, devotos todos do santo dinheiro que cai do céu diretamente em seus bolsos. O fluminense Arolde de Oliveira, deputado federal pelo PSD — aquele diabólico partido nascido da costela do prefeito Gilberto Kassab e que garante não pertencer nem ao paraíso, nem ao inferno, nem ao purgatório —, é dono da rádio 93 FM e do Grupo MK Music, que ele jura ser o maior selo de música gospel do continente. “Mais de 60 milhões de brasileiros estão direta ou indiretamente ligados à Igreja Evangélica”, lembra o deputado Oliveira. A Globo, como se vê, tem a inspiração divina e o ouvido apurado.
Pastor Silas Malafaia: "A Globo abre espaço para o louvor e adoração a Deus" | vitoriaemcristo.org

O festival Promessas abriu as portas de uma terra prometida para os profetas globais. No domingo gospel, a audiência da Globo subiu aos céus, dando-lhe a indulgência de miraculosos 13 pontos no Ibope (cada ponto representa 58 mil aparelhos ligados), bem mais do que os 7 humildes pontos habituais do horário. O pastor Silas Malafaia, inimigo da Universal do bispo Macedo, aproveitou e tripudiou no seu site: “A Record não acreditou nos evangélicos, a Globo acreditou e arrebentou na audiência! Enquanto a Record fala mal dos cantores e da igreja, a Globo abre espaço para o louvor e adoração a Deus”. E arrematou com um desajeitado elogio que deve ter sobressaltado as almas globais: “Quando os que deveriam abrir as portas fecham, Deus usa os ímpios para glorificá-lo”. Iluminada pela santa promessa do Ibope, a ímpia Rede Globo prepara mais três edições do sucesso gospel para 2012 — duas versões regionais e uma nacional, evitando cuidadosamente o Rio de Janeiro, que já padece a praga de um congestionamento evangélico todo santo ano.

O golpe do martelinho

O lider da Igreja Mundial do Poder de Deus, Valdemiro Santiago | Eduardo Pinto/impd.org.br

Valdemiro Santiago é outro desgarrado da Universal. Depois de ser considerado um virtual sucessor de Edir Macedo, brigou com ele e saiu para fundar em 1998 a sua seita, a Igreja Mundial do Poder de Deus. Começou com 16 membros e hoje o apóstolo Valdemiro chefia mais de dois mil templos, alguns na África e em Portugal, e um jornal mensal, Fé Mundial, com tiragem de 500 mil exemplares — além de um maçante trololó diário de 22 horas na Rede 21, uma subsidiária da Rede Bandeirantes, que administra as duas horas restantes.
Sua marca registrada é um chapéu de boiadeiro, o que reforça sua imagem de astro sertanejo, que costuma ganhar espaço até no Jornal Nacional da Globo, uma devota do divisionismo que Valdemiro poderia provocar nas legiões de seu arqui-inimigo Edir Macedo. Quando enfrenta problemas de caixa, Valdemiro confia no santo gogó. Em 2010, chorou diante das câmeras de TV ao convocar 150 mil fiéis para ofertarem R$ 153, o número de peixes de um alegado milagre de Cristo. Faturou cerca de R$ 23 milhões.
Empolgado, o bispo sertanejo imaginou outra forma esperta de arrecadar dinheiro fácil, mas desta vez sem choro. Criou a campanha do “Martelinho da Justiça”, um pequeno, baratinho malho de madeira capaz de quebrar mandingas, maus-olhados e “as pedras que atravessam os seus caminhos”. A clava fajuta de Valdemiro, que despertaria a inveja do grande Thor, devia ser canonizada como a mais cara do mundo: cada oferta pelo martelinho tinha o mínimo de R$ 1 mil e Valdemiro esperava que 10 mil de seus seguidores o abençoassem com a compra do mimo, o que rechearia seu chapelão com R$ 10 milhões.
No reclame da Igreja Mundial na TV, o pastor de português trôpego, voz rouca, terno e gravata mostrava a certeza das favas divinas e muito bem calculadas: “Ainda hoje ou amanhã, na primeira hora, você vai até a agência bancária e faz esta ‘ofertinha’ de R$ 1 mil. Depois, mandaremos o martelinho pelo correio”. Para esse milagre acontecer, bastava ao crente fazer o depósito nas contas indicadas na tela e disponíveis no Banco do Brasil, Bradesco ou Caixa Econômica Federal. “De preferência no BB, como o nosso apóstolo tem nos orientado”, aconselhava o pastor, com ar compungido.
A atrevida igreja de Valdemiro já vendeu garrafinhas Pet de 400 ml com ‘água ungida’, entregues por ‘ofertas’ de R$ 100, R$ 200 ou até R$ 1.000, prometendo resultados espantosos: “Uma única gota dessa água será o suficiente para mudar a história de sua vida, para lhe abençoar de uma forma poderosa”, jurava o santo homem, escoltado por outros oito pastores calados e sisudos, todos de gravata e terno escuro. Se usassem óculos pretos iria parecer uma paródia do CQC, sem a divina graça do programa humorístico da Band que sucede o show religioso do pastor R.R. Soares nas noites da segunda-feira.

O trovão homofóbico

O bizarro merchandising da Mundial tem produzido bons resultados, pelo menos para as finanças da igreja de Valdemiro. No primeiro dia de 2012 ele inaugurou em Guarulhos, SP, a ‘Cidade Mundial’, um megatemplo de 240 mil metros quadrados e capacidade para acolher 150 mil fieis da Igreja Mundial do Poder de Deus — mais de duas vezes a lotação prevista do Itaquerão (68 mil lugares), o estádio que o Corinthians está construindo para a Copa do Mundo de 2014. Para erigir o templo, Valdemiro viu a igreja aumentar seus gastos mensais em R$ 30 milhões, prova de que o martelinho e a garrafinha são realmente miraculosos.
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Malafaia: Na santa cruzada contra a proposta de lei que combate a homofobia | Foto: Valter Campanato/ABr

O pastor Silas Malafaia, chefe supremo da AVEC, sigla da associação que mantém a Igreja Vitória em Cristo, é a voz mais trovejante desse abusado mercado da fé ancorado nos fundamentos pétreos da Teologia da Prosperidade. Embora tenha os mesmos instrumentos de redenção econômica de Edir Macedo, Malafaia é um inimigo mortal do dono da Universal. Divergiram até na eleição presidencial de 2010: ele primeiro apoiou Marina Silva, depois fulminou sua opção pelo plebiscito no debate sobre o aborto (“cristão não tergiversa nesse tema”), e acabou fazendo campanha por Serra, adversário de Dilma, apoiada justamente pelo rival bispo Macedo. Malafaia é figura fácil no Congresso Nacional, em Brasília, onde veste a armadura de sua santa cruzada contra a proposta de lei que combate a homofobia: “O projeto [que garante a livre orientação sexual] é a primeira porta para a pedofilia”, reza, com a fúria dos justos. Numa entrevista a uma revista religiosa, crucificou como “idiotas” todos os pastores que, ao contrário dele, não apostam suas fichas, martelinhos e garrafinhas na Teologia da Prosperidade.
Ele não poupa a garganta e fala muito: quase todo santo dia, Malafaia se esparrama por cinco horas de programas variados em redes nacionais como CNT, Rede TV, Boas Novas e Bandeirantes e ocupa os sábados de emissoras regionais em outros 15 Estados. Seu programa se espalha pelos Estados Unidos e Canadá e, desde meados de 2010, Malafaia atinge 142 milhões de lares em 127 países da África, Ásia, Oriente e Médio e Europa, com o apoio da americana Inspiration Network, que faz a dublagem para o inglês.
Para tornar mais veraz sua pregação, às vezes importa dos Estados Unidos especialistas nesta riqueza material. No ano passado, junto com o pastor americano Mike Murdock, Malafaia lançou o projeto do “Clube de 1 Milhão de Almas”. Alma, sabem os televangelistas, custa caro. Ele pretendia arrebanhar um milhão de crentes para sua grei e seus programas de TV, mediante a ‘oferta’ (voluntária, claro) de R$ 1 mil — ou seja, um martelinho de madeira, pelo generoso chapéu do bispo Valdemiro. Na conta do lápis, uma bolada plena de R$ 1 bilhão, capaz de pagar mais do que cinco Mega-Senas da Virada, que bateu em R$ 177 milhões no réveillon de 2011. Os ofertantes ganhariam o livro 1001 Chaves da Sabedoria, do pastor Murdock, e um certificado do clube milionário, em todos os sentidos.
Para inspirar o seu rebanho, Malafaia teve a feliz ideia de colocar um contador de acessos na página da igreja para que todos acompanhassem a adesão em catadupa do milhão de almas. Algo deu errado, ou o martelinho não funcionou. Lançado em abril do ano passado, o contador da igreja Vitória em Cristo virou uma estátua de sal, como a mulher de Lot em Gênesis (19,26) e estagnou num número pífio: miseráveis 58.875 almas era a contagem de quinta-feira passada, 5 de janeiro. Um inferno de faturamento que não chegou a R$ 60 milhões, muito distante do paraíso do R$ 1 bilhão arquitetado pelo diabólico Malafaia. Faltam portanto ainda 941.125 almas para Malafaia inaugurar, sob as trombetas de Jericó, o seu clube milionário. Haja martelinho!

O supermercado da fé

O bravo Malafaia não desiste facilmente. Em 2009 ele lançou a campanha de uma Bíblia por módicos R$ 900, pouco menos que um martelinho. Era a tarifa da Bíblia da Batalha Espiritual e Vitória Financeira, sacada genial de outro gênio da prosperidade, o pastor americano Morris Cerullo. Desta vez, a garrafinha deve ter funcionado, pois antes do final do ano ele viajou à Flórida, nos Estados Unidos, e lá viu se materializar, em nome da Vitória em Cristo, um jato executivo Cessna quase novo, modelo Citation Excel, pela bagatela de 12 milhões — de dólares !
Pastor Silas Malafaia: adepto dos "Programas de Fidelidade" | vitoriaemcristo.org

Se alguém tiver alguma restrição a Bíblia, martelinho ou garrafinha, nem assim terá qualquer constrangimento para auxiliar o empreendimento celestial de Malafaia. Na sua página na Internet (www.vitoriaemcristo.org), o bom pastor dá a boa notícia de que todos podem participar de sua jornada, tornando-se seu ‘Parceiro Ministerial’, um programa de fidelidade da Igreja que arrecada fundos para manter seus programas de TV. A porta está aberta a “qualquer pessoa que receba de Deus a visão de abençoar vidas, proclamando o Evangelho por meio das mensagens do pastor Malafaia”, explica o dono do site e da igreja. Dependendo do tamanho da carteira, seu título de parceiro também cresce: o ‘Especial’ paga R$ 15 mensais, o ‘Fiel’ doa R$ 30 e o ‘Gideão’ entra na cota de sacrifício do martelinho: R$ 1 mil mensais, com direito a um exemplar por mês da revista Fiel, livros, Bíblias e um cartão para 10% de descontos nos produtos da Editora Central Gospel comprados pelo telemarketing, “desde que não esteja em promoção”.
Virar parceiro do pastor é fácil, pagar é muito mais. A organização abençoada de Malafaia trabalha com o ganhoso instrumental financeiro de uma grande loja de departamentos, como convém a este éden da prosperidade.  A igreja Vitória em Cristo opera, sem preconceitos, com cartões Visa, Master, Diners, Amex ou Hipercard e tem contas abertas, sem discriminação, com o Banco do Brasil, HSBC, Bradesco ou Itaú, além de trabalhar com boletos bancários ou cheques nominais. Malafaia aceita boletos antecipados para o ano todo, mas nenhuma contribuição abaixo de R$ 15. Acima, pode.

Abobrinhas e beterraba

Agora, esse mundo dourado de riquezas, promessas, ofertas, obras e fartura vai ganhar outro e inesperado púlpito: um espaço de brilho, luzes e discussões mundanas, terrenas, insinuantes, quase lascivas. Começa na terça-feira (10/1) a 12º edição do ‘Big Brother Brasil’, o reality show da Globo que arrebata o país por 12 semanas no seu jogo canalha de perfídias, traições, intrigas e sensualidade explícitas, onde garotas curvilíneas e garotos musculosos, todos transbordantes de hormônios e carentes de neurônios, desfilam suas abobrinhas em diálogos patetas e reflexões idiotas. O jornalista Eugênio Bucci, professor de Ética Jornalística da ECA-USP e da ESPM, de São Paulo, tatuou o BBB como “o mais deseducativo programa da TV brasileira, onde a fama justifica qualquer humilhação”.
Na TV, onde nada se cria e tudo se copia, a Record também tem sua versão BBB, “A Fazenda”, com mais roupa e a mesma dose intragável de papo imbecil. A personal trainer Joana, a vencedora da versão 4 da Fazenda, que acabou em outubro passado, arrebatou R$ 2 milhões após encontrar uma beterraba premiada, entre outros sofisticados desafios intelectuais.
Apesar dessa crônica indigência, mais de 130 mil jovens brasileiros se inscreveram para o BBB12, ao longo de sete meses, filtrados em seletivas regionais em 10 capitais. É uma febre televisiva que pode parar até a maior cidade brasileira, São Paulo, onde chega a bater em 40% do Ibope, o que significa quase dez milhões de telespectadores, metade da população da Grande SP.
"Ela não é recatada", informa o pai de Jakeline | Divulgação

A vencedora do BBB de 2011, a modelo paulista Maria Helena, 27 anos, de São Bernardo do Campo, faturou um cheque de R$ 1,5 milhão ganhando o voto por telefone de 51 milhões de pessoas. Se fosse candidata a presidente em 2010, Maria Helena, capa da edição de junho de 2011 da revista Playboy, teria derrotado José Serra por mais de sete milhões de votos e perderia para Dilma Rousseff por menos de cinco milhões.
Boninho, o diretor do BBB, apimentou a receita em 2012, para horror do pastor Malafaia, infiltrando quatro homossexuais entre os doze sarados concorrentes. “Três dos quatro gays são mulheres”, adiantou o lúbrico Boninho no seu tuíter.  Ele não disse, mas o programa de 2012 terá também a atração extra de duas evangélicas, a assistente comercial mineira Kelly, 28 anos, e a zootécnica baiana Jakeline, 22. O empresário Danilo Leal, 45 anos, pai de Jakeline, acha que a filha vai resistir bem ao paredão impiedoso do BBB, apesar de evangélica: “Ela não é recatada. Espero que Jakeline aproveite bem seus 15 minutos de fama e faça o pé de meia”, reza o empresário, dando sua sanção paternal para o que der e vier.
A assistente comercial evengélica Kelly Medeiros | Divulgação

Não se sabe ainda o tamanho do fio-dental que as duas evangélicas vão exibir na casa mais vigiada do Brasil, nem o salmo que irão recitar debaixo do edredom, cercadas por tantas câmeras indiscretas. Não deixa de ser simbólico que, cinco séculos após ser cravado nos portões da igreja de Wittenberg, o credo rigorosamente puritano e austero fundado pelo cisma de Luterano infiltre duas crentes assanhadas e iconoclastas no cenário conspícuo do programa mais ímpio da maior rede brasileira de TV aberta. A explicação, certamente, não está nas páginas lambidas da Bíblia dos templos e igrejas desta terra supostamente laica, mas nas cédulas louvadas do dinheiro ungido pela graça divina e pela licença dos homens neste país tropical, que Jorge Ben resumiu como “abençoado por Deus e bonito por natureza”.
A louvação ecumênica ao dinheiro pintado pela hipocrisia de todos os credos esclarece, em parte, a progressiva invasão destes templos cada vez mais eletrônicos, escancarados por vendilhões cada vez mais acessíveis a espertalhões cada vez mais abusados no assalto à boa fé de sempre dos desesperados.
O velho evangelista Kenyon, profeta dessa cínica doutrina da prosperidade, poderia traduzir este Armagedom moral com o mantra invertido da religião de resultado que inventou: o que eu possuo, não confesso.

* Luiz Cláudio Cunha é jornalista.
[cunha.luizclaudio@gmail.com]