segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Homenagem a um grande homem de esquerda que nos deixou

Por André Lux em seu blog

Palavras do meu amigo jornalista esportivo Elias Aredes Júnior: "Sócrates morreu. Com ele, um pouco de originalidade. Em tempos de politicamente correto e de demonização do pensamento de esquerda, Sócrates nunca ficou em cima do muro. Mostrava admiração por Lula, Fidel Castro e não estava nem aí para a patrulha. O mundo do futebol é dominado por atletas sem cerebro e sem pensamento. Quando param, mesmo quando viram comentaristas, são portadores de frases. Sócrates foi original, único, indescritivel. Por isso fará falta. E como!"







Alan Nasser: Trabalhadores dos EUA cada vez mais parecidos aos de países pobres

A política econômica da redistribuição



por Alan Nasser, no Counterpounch

Traduzido por H. C. Paes via VIOMUNDO

A sabedoria econômica convencional ensina que não é do interesse dos empregadores deprimir os salários a níveis desesperadores, pois a maioria dos consumidores é assalariada e a demanda por bens de consumo responde por algo entre 66% e 72% do Produto Interno Bruto. Se os empregadores rebaixassem os vencimentos demais, eles destruíram ao mesmo tempo sua clientela, o que não é bom para o capital, e tampouco para o trabalho.

Essa linha de raciocínio baseia-se na premissa de que o capitalismo é organizado de tal forma que o mercado de trabalho de cada nação é não apenas inteiramente doméstico, mas também corresponde à única fonte de demanda pela produção de sua economia. Porém, o capitalismo é um sistema global e seus entes soberanos não são economias fechadas. A base laboral e o mercado consumidor das corporações de grande porte típicas são, hoje, globalmente dispersos. Na verdade, as últimas décadas testemunharam a criação, pela primeira vez na história, de um mercado de trabalho global.

A exportação de empregos caiu na boca e na mente do povo, e hoje a maior parte dos trabalhadores a entendem como uma causa significativa do drama de desemprego por que passam os EUA. A perda de vagas para regiões de mão-de-obra mais barata não é um fenômeno novo; vem tomando fôlego desde os anos 60. Em 1959, a manufatura representava 28% da produção doméstica. Em 2008, 11,5%. Essa tendência tem se acelerado com a desregulamentação do fluxo de capitais através de fronteiras nacionais. Desde 2000, os Estados Unidos perderam milhares de fábricas e um total de 5,5 milhões de empregos na manufatura, o que corresponde a um declínio de 32%. No fim de 2009, menos de doze milhões de estadunidenses trabalhavam em manufatura. A última vez em que esses números foram registrados foi em 1941.

A produção de engenhocas não é o único setor em que se tem visto empregos serem exportados. Temos [nos EUA] maior familiaridade com as centrais de atendimento telefônico ultramarinas, mas todo tipo de posto de trabalho qualificado também tem sido despachado para o exterior. Profissionais altamente qualificados como engenheiros e projetistas, arquitetos, programadores e outros têm sido contratados em número cada vez maior pelas companhias estadunidenses na China, na Rússia, na Índia e nas Filipinas.

Nestes tempos neoliberais, não mais nos escandalizamos ao descobrir que essa estratégia é apregoada com vigor por ninguém menos do que o chefe do Conselho de Trabalho e Competitividade do presidente Obama, Jeffrey Immelt, que coincidentemente é o principal executivo da General Electric. O ano de 2010 foi emblemático para a GE, com US$ 9,1 bilhões dos US$ 14,2 bilhões de lucro total tendo vindo de suas operações estrangeiras. Immelt não mostra recato algum com respeito à sua indiferença pelos trabalhadores estadunidenses. Num encontro de investidores em 6 de dezembro de 2002, ele declarou com entusiasmo que “Quando falo com gerentes da GE, falo em China, China, China, China, China. É preciso estar lá. É preciso mudar a maneira como as pessoas falam sobre ela, e a forma de se chegar lá. Sou um fanático pela China. A produção exportada para a China vai crescer para 5 bilhões. Estamos construindo um centro tecnológico na China. Toda discussão, hoje, tem de ser centrada na China. O custo-base é por demais atraente. É possível, no caso de um refrigerador de meio metro cúbico, fazê-lo na China e embarcá-lo para os EUA por um custo menor do que o necessário para fazê-lo nós mesmos.”

Este é o homem que Obama encarregou para liderar um comitê criado com o propósito de se debruçar sobre a crise de desemprego que passa o país. Todavia, não creio que a obsessão de Immelt com a atividade econômica no exterior se limite à mão-de-obra barata e os custos menores. Segue outra declaração: “Hoje nos posicionamos no Brasil, na China, na Índia, porque é lá que estão os clientes”.

Puxa, isso parece aquele papo leninista sobre a insuficiência dos mercados domésticos para absorver a produção econômica. O trabalhador estadunidense não está apenas se tornando cada vez menos importante como um fator de produção, mas também não é mais visto pelo grande capital como o cliente mais promissor, ou a fonte mais robusta de receita de vendas.

Tanto do lado da oferta, como do da demanda, o trabalhador/consumidor estadunidense é visto como cada vez mais descartável. O outrora Secretário do Trabalho de Clinton, e atual diarista virtual de matriz liberal, Robert Reich, é de opinião que essa estratégia é irracional, mesmo sob a óptica capitalista: “Lucros corporativos estão em alta atualmente, em grande medida, porque os salários se encontram deprimidos e as companhias não estão contratando. Contudo, isso é uma receita para o fracasso no longo prazo, mesmo para as corporações. Sem suficientes consumidores estadunidenses, elas estão com os dias lucrativos contados. Afinal, há um limite para o quanto de lucro elas podem auferir com cortes na folha de pagamento dos estadunidenses, ou mesmo com vendas no exterior. Os consumidores europeus não estão com espírito para fazer compras. E a maior parte das economias asiáticas, inclusive a China, está em desaceleração”. Reich simplesmente não sacou.

A referência a “consumidores europeus” não vem ao caso; não é a Europa que Immelt e companhia têm em mente. Exportações são, de fato, o lance do momento, mas os consumidores, na opinião da elite, devem ser encontrados nos mercados emergentes. Obama vem entoando, por anos agora, o mantra “exportar mais, consumir menos” como se fosse a chave para a revitalização econômica dos EUA. Seus patrões raciocinam por um processo de eliminação. Eles sabem que o produto total da economia é gerado por quatro, e apenas quatro, tipos de gasto: demanda de consumo, demanda por investimento, demanda governamental e demanda por exportações.

O consumo não é promissor como estímulo à produção e ao lucro porque a maioria dos consumidores é assalariada, e eles são mal pagos, vêm sofrendo cortes absolutos em seus vencimentos, estão gravemente endividados e se encontram ou desempregados, ou subempregados. O investimento não cola por dois motivos: nenhum empregador investe quando o poder aquisitivo se encontra excepcionalmente baixo e, mais importante do que isso e completamente ignorado pelos comentaristas, a presente depressão não é causada por uma escassez de capacidade instalada ou por obsolescência de equipamentos. Um conjunto bem desenvolvido de unidades produtivas se encontra instalado e pronto a operar. Não se precisa de investimento adicional. Quanto a despesas governamentais é com fins produtivos, elas são descartadas pelo consenso neoliberal. Obama tem seguidamente ressaltado que a recuperação econômica deve ser firmada nos míticos mecanismos autorrestauradores do setor privado.

Resta-nos a exportação como o equivalente econômico do “Abre-te, sésamo!”. Obama expôs sua estratégia em um discurso, a respeito de sua Iniciativa Nacional para a Exportação, proferida à conferência anual do Ex-Im Bank (agência federal estadunidense para crédito exportador) em 11 de março de 2010: “os mercados de crescimento mais rápido do mundo se encontram além de nossas fronteiras. Precisamos competir por esses clientes porque as outras nações estão competindo por eles”.

O foco na exportação é consistente com a atual geopolítica da elite, que é registrada de forma confiável pela imprensa especializada em negócios, de forma mais notável em periódicos-chave como Foreign Affairs, The Financial Times e The Economist. O pensamento atual é que há um deslocamento global da atividade manufatureira do “Ocidente” para o “Oriente”, à medida que as nações economicamente maduras – EUA, Europa e Japão – se desindustrializam enquanto os mercados emergentes, principalmente na Ásia, preenchem o vácuo global ao desenvolverem sua própria aptidão industrial. A observação de Reich de que “a maior parte das economias asiáticas, inclusive a China, está em desaceleração” é correta, mas desprovida de importância. O que importa, conforme mencionou Obama, é onde se encontram “os mercados de crescimento mais rápido do mundo”. A desaceleração atual da Ásia é compatível com o rápido crescimento, dentro da China e da Índia, por exemplo, de uma nova classe média e de um extrato de novos-ricos. Esses são vistos pelas elites ocidentais como o lugar onde a ação está, hoje e no futuro.

Um relatório do Citigroup que já se tornou notório engloba essa cosmologia econômica com sua tese de que “o mundo está se dividindo em dois blocos – a Plutonomia e o resto”. A crescente desigualdade se tornou planetária. Num mundo globalizado, assim narra o documento, os consumidores nacionais – “o consumidor estadunidense”, “o consumidor japonês” – são obsoletos. Há apenas os ricos e o resto. Os primeiros são proporcionalmente em número pequeno, mas rapidamente crescente à medida que políticas neoliberais transferem a eles os recursos do resto. Os últimos figura de forma correspondentemente marginal no conjunto dos fatores que importam para a classe de pessoas de posses.

O executivo-chefe, radicado nos EUA, de um dos maiores fundos de cobertura de riscos do mundo contou a um articulista do The Atlantic que “o esvaziamento da classe média estadunidense realmente não importava”. Ele descreveu o assunto de uma discussão executiva que teve lugar há algum tempo este ano: “… se a transformação por que passa a economia mundial tirar quatro pessoas da pobreza na China e na Índia e as trouxer para a classe média, e simultaneamente isso significar que um estadunidense despenca da classe média, não se trata de uma permuta tão ruim”.

O vice-presidente de operações financeiras de uma empresa de Internet dos EUA se manifestou no mesmo sentido: “Nós [estadunidenses] exigimos um contracheque mais polpudo que o resto do mundo. Então, se vocês pedem dez vezes o salário, vocês têm de produzir dez vezes o valor. Soa cruel, mas talvez as pessoas na classe média precisem decidir aceitar um corte nos vencimentos.”

No Festival de Idéias de Aspen, no verão de 2010, o executivo-chefe da companhia Applied Materials, do Vale do Silício, declarou que se ele estivesse começando do zero, apenas 20% de sua força de trabalho seria doméstica: “Este ano, quase 90% de nossas vendas serão fora dos EUA. A pressão para estarmos próximos a nossos clientes – a maioria na Ásia – é enorme”.

E Thomas Wilson, executivo-chefe da Allstate, é desavergonhadamente franco sobre a maneira como a globalização gera uma oposição entre os interesses da classe trabalhadora e do mundo dos negócios: “Eu consigo (trabalhadores) em qualquer lugar do mundo. Há um problema para os Estados Unidos, mas não necessariamente para as empresas estadunidenses… elas vão se adaptar.” [Vide Chrystia Freeland, “The rise of the new global elite” (A ascensão da nova elite global), em The Atlantic, janeiro/fevereiro de 2011.]

Isso tudo se resume numa política econômica de redistribuição. O crescimento global lento dos últimos 30 ou 40 anos, que não tem fim à vista, tem sido interpretado pela esquerda como uma indicação de uma “crise” que se espalha, uma falha do capitalismo em corresponder às expectativas. Do ponto de vista dos trabalhadores, essa descrição é precisa, uma vez que a ideologia legitimadora do capitalismo nos assegura que todos prosperarão enquanto o capitalismo estiver fazendo seu trabalho.

Contudo, do ponto de vista dos capitalistas, cujo objetivo é acumular riqueza, crescimento lento não é necessariamente um sinal de crise, uma vez que a riqueza pode ser acumulada por redistribuição, pelo aumento da desigualdade, na ausência de taxas de crescimento robustas. Isto é que está acontecendo intra- e internacionalmente. A exportação de empregos e clientes é parte do jogo. Lucros são receita menos despesa. O aumento da receita, assim pensam as elites, deve ser buscado no estrangeiro. A redução dos custos deve ser atingida em toda parte.

Podemos chamar isso de Terceiro-mundialização do resto, ou, se mantivermos o foco nos assalariados dos países desenvolvidos, de a progressiva obsolescência da classe trabalhadora. Jamais será possível, é claro, tornar os trabalhadores completamente obsoletos. O que está acontecendo é que nos aproximamos desse estado assintoticamente. Pode-se fazer a objeção de que há limites claros para o quanto a classe trabalhadora pode ser empobrecida – afinal, os trabalhadores têm de ser mantidos aptos para o trabalho. Há um limite para o quanto se pode redistribuir a riqueza em favor das classes mais altas. Porém, a desigualdade sempre crescente é percebida pelas elites como alcançável por obra e graça das possibilidades infinitas de maior endividamento. Os trabalhadores podem fechar as contas no fim do mês ao hipotecarem seus rendimentos futuros indefinidamente.

Não é disparatado enxergar nisso uma parecença cada vez maior dos trabalhadores estadunidenses àqueles dos países pobres. Sabe-se que formuladores de prognósticos econômicos de grande reputação se referem aos EUA como “o México da Europa”. No futuro próximo, prevêem, alguns estados dos EUA, principalmente no sul, mas também incluindo a Califórnia e o Cinturão da Ferrugem, não apenas serão a regiões de mão-de-obra mais barata do mundo desenvolvido, mas também serão competitivas com relação à Índia e a China. Os salários estão subindo nos países pobres dedicados aos setores fabril e de serviços, e caindo nos ricos. E os trabalhadores estadunidenses tendem a aquiescer, enquanto a periferia efervesce com descontentamento.

Os custos de produção convergem gradualmente entre a China e os EUA: os trabalhadores estadunidenses de baixo salário são mais produtivos, e os custos de combustível devem continuar a crescer, tornando cada vez mais caro despachar bens mundo afora. Trabalhadores não-sindicalizados contratados pela Ford para realizar inspeções em sua planta de caminhões em Dearborn recebem dez dólares por hora sem benefícios, um valor que, de acordo com projeções, é menor do que a média chinesa por volta de 2015.

Empresas como a Ford, a Caterpillar, a Wham-O (fabricante do Frisbee), a Master Lock, a Suarez Manufacturing e a própria General Electric recentemente transferiram unidades de produção da China e do México para a Geórgia, Ohio, Indiana, Wisconsin, Califórnia e Michigan. Essa tendência pode ser ou não crescente, mas o mero fato de que algumas regiões do país se tornaram novamente competitivas com México e China é um atestado do infortúnio do trabalhador estadunidense.

O selvagem neoliberal favorito do New York Times, Thomas Friedman, resume esse projeto de implantação de miséria da maneira que lhe é peculiar: cabe a nosso país “cortar os vencimentos do setor público, congelar benefícios, cortar vagas, abolir uma gama de direitos do bem-estar social e mandar programas de construção de escolas e manutenção de estradas para a guilhotina”.

Friedman vai em frente e critica os trabalhadores estadunidenses e da Europa ocidental por acreditar na “fada do dente” e esperar serviços governamentais sem pagar por eles. Nos EUA, diz Friedman, a geração do pós-guerra, que herdou a riqueza daqueles anos, “devorara toda a abundância como gafanhotos famintos… depois de 65 anos em que a política do Ocidente se tratou, principalmente, de dar coisas a eleitores de mão beijada, ela passará a ser, principalmente, de tomar essas coisas deles. Digam adeus à política da fada do dente e saúdem a política do tratamento de canal”. (9 de maio de 2010)

A oligarquia expôs, em termos simples e claros, sua estratégia de jogo. Qual será nossa resposta?



Alan Nasser é professor emérito de Economia Política da faculdade estadual Evergreen em Olympia, estado de Washington. Este artigo foi adaptado do livro que está escrevendo, The “New Normal”: Chronic Austerity and the Decline of Democracy (A “nova normalidade”: austeridade crônica e o declínio da democracia). Ele pode ser contactado pelo endereço eletrônico nassera@evergreen.



Antanas Mockus propõe cultura cidadã para a transformação social


Ex-prefeito de Bogotá (Colômbia) adotou sua Doutrina da Cultura Cidadã e trouxe melhorias, como a queda dramática na taxa de homicídios | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

André Carvalho no SUL21

Além de ser a capital da Colômbia, Bogotá era conhecida pelos abusos do crime organizado, a pobreza e as práticas de corrupção. Para mudar esse cenário, Antanas Mockus organizou um sistema de segurança da comunidade, com 7 mil homens, que diminuiu em 70% o número de homicídios e em 50% as mortes no trânsito.
Matemático, filósofo e ex-prefeito de Bogotá por duas gestões (de 1995 a 1997 e de 2001 a 2004), Mockus ficou conhecido por suas ações políticas pouco comuns, praticadas na cidade colombiana. Dentre elas, a que ganhou maior destaque foi a que ele chamou de Doutrina da Cultura Cidadã. O ex-prefeito de Bogotá, adepto da bicicleta como meio de transporte, acredita que as regras não são estáticas, devem sempre ser atualizadas de acordo com o seu momento, e que é a partir desta tripla relação que se transforma uma sociedade e melhora as relações sociais.
Seu governo distribuiu cartões com polegares para cima e para baixo aos motoristas, usados para manifestar descontentamento em incidentes de trânsito. Outra medida foi contratar mímicos para ridicularizar pessoas que violavam as leis de tráfego. Parte da estratégia das políticas de Mockus era de melhorar a capacidade de expressão e de comunicação dos cidadãos.
Em meados da década de 1990, Bogotá, com uma população de 7 milhões de habitantes e uma taxa de 80 homicídios por 100 mil habitantes, foi considerada a cidade mais violenta da América Latina. Dez anos depois, esse índice caiu para 23 por 100 mil (queda de 71%), e a previsão para este ano é de 18 homicídios por 100 mil habitantes.
O Sul21 teve a oportunidade de conversar com Mockus em sua visita a Porto Alegre, para o 10º Congresso Mundial Metropolis. Abaixo, os melhores momentos da conversa.
“As pessoas não nascem cidadãs. Assim como as pessoas têm predisposição a falar, elas têm a predisposição de tornarem-se cidadãs ao longo do tempo”
"A cultura cidadã é composta por três pilares: as leis do Estado, a moral dos indivíduos e a cultura da sociedade" | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21: Em que consiste exatamente esta política de Cultura Cidadã?

Antanas Mockus: Em primeiro lugar, é importante compreender que uma pessoa não nasce falando. Entretanto, há uma predisposição, uma tendência para falar. O mesmo vale para cidadania. O sujeito não nasce cidadão, ele passa a ser cidadão ao longo do tempo. Quero dizer, inicialmente ele não tem consciência de seus direitos, muito menos capacidade de defendê-los. Porém, assim como as pessoas têm uma predisposição a falar, elas têm uma predisposição a descobrir seus direitos e deveres e com isso, tornarem-se cidadãs. A cultura cidadã é composta por três pilares: as leis do Estado, a moral dos indivíduos e a cultura da sociedade. A partir do cruzamento destes três pontos, a formação cidadã do sujeito se constrói dentro de seis aspectos: O primeiro, parte do princípio de uma norma moral. Por exemplo, se eu te digo: “não jogue esse papel no chão”, tu certamente já teria ouvido alguém te dizer isso, mas a questão não está no pedido mas sim na ação. O que acontece se todo mundo começar a jogar os seus papéis no chão? Acontecerá a universalização da conduta criticada. Quero dizer, as ruas ficariam sujas, a cidade feia. Se criaria um péssimo hábito cultural. Não seria algo positivo, nem pro ator da ação, nem para o todo. Mas como essa é uma ação que sabemos que não deve ser feita, as pessoas vão aprendendo a raciocinar moralmente. Porém, este raciocínio moral está intrínseco a lógica de que somos educados por nossos pais, o que nos leva ao segundo aspecto, onde a partir dessa educação, surgem os princípios do que é bom ou é ruim, o que é certo ou é errado. O terceiro aspecto refere-se aos critérios sociais de reciprocidade, que normalmente surge no sujeito ainda criança. “Olha, te emprestei meu brinquedo, me empresta o teu”. E as crianças acabam aprendendo isso com a vida e levam isso consigo. Quero dizer, se uma criança empresta um boneco para um amigo, ele sabe que na lei da reciprocidade, ele poderá pegar um carrinho do outro. A quarta etapa diz respeito ao sentido das regras, tanto locais, quanto universais, onde o sujeito as reconhece e a partir disso, busca defendê-las ou transformá-las, utilizando-se de argumentos. Entretanto, a defesa é mais comum do que a transformação, visto que tradicionalmente a sociedade tem um pensamento conservador e por isso, resistente a mudanças. Mas é claro, isso não é uma regra e as mudanças também ocorrem, vindo especialmente por parte dos jovens. E aí entra a quinta etapa, que diz respeito as regras impostas pela sociedade e através de um discurso racional os jovens tendem a questioná-las sua funcionalidade e legitimidade. A partir destes questionamentos buscam melhorá-las e/ou adaptá-las para o contexto atual. Por fim, a sexta etapa é levantada por princípios éticos discutido pelos direitos humanos universais. A partir destes seis aspectos que fazem a formação cidadã do sujeito, é possível afirmar que ele composto por questões legais, morais e culturais, que são os pilares da Cultura Cidadã.

Sul21: Mas o que é exatamente ser cidadão?

Antanas Mockus: Ser cidadão é obedecer harmonicamente as normas, nos âmbitos legal, moral e cultural de três maneiras. A primeira é aceitar as regras e sacrificar interesses, controlar impulsos. A segunda, é fazer valer as normas perante os outros, ou seja, é utilizar a norma a favor individual, auxiliando o próximo a se adequar a ela também. Então, já não sou mais eu quem atira os papeis no chão, mas sim, sou eu quem digo “olha, você não deve atirar papel no chão”. Por fim, a terceira e a mais contemporânea, é acreditar e defender que as normas criadas podem ser mudadas, renovadas. Quero dizer, elas existem, mas não são estáticas, eternas. Muitas regras que hoje são consideradas ultrapassadas, antigamente foram consideradas modernas e as que hoje são consideradas modernas, antigamente eram consideradas absurdas.

Sul21: É possível transformar o cidadão? Quero dizer, após anos vivendo de uma maneira, é possível mudar as suas normas legais, morais e culturais?

Antanas Mockus: Com certeza. A partir de uma educação das emoções. Se você olhar as regras de Lei, Moral e Cultura, verá que elas funcionam porque envolvem emoções, visto que segui-las, ou não, desperta emoções no sujeito. Por isso, formar a cidadania é formar emoções. Um exemplo claro disso é o seguinte: um sujeito não nasce temendo a cadeia. Não conhece, mas imagina, vê, ouve e lê coisas sobre a cadeia e a partir disso se forma uma ideia do quão terrível é. Ele molda a cadeia no seu imaginário, a partir destas informações adquiridas ao longo da vida, e com isso, cria-se o medo de ir para lá. Ou seja, o cidadão comum evitará ao máximo ir para cadeia, pois ele se move dentro da sociedade ancorado pela Lei, pela Moral e pela Cultura. A questão é: ele se move por medo ou admiração a lei? Por medo à culpa ou gratificação moral? Por medo ao rechaço ou reconhecimento social?
“Quanto maiores forem os cuidados um com o outro, por exemplo, menor será a necessidade da polícia nas ruas”
Sul21: Então é possível ocorrer uma transformação das relações urbanas?

Antanas Mockus: Seguindo harmonicamente as normas destas três maneiras, a relação social entre as pessoas que convivem no mesmo lugar se altera. Isso é claro por exemplo, em Bogotá. Uma cidade com aproximadamente sete milhões de habitantes, e a partir da implantação desta cultura cidadã, as pessoas procuram cuidar de si e cuidar dos outros. A partir disso, quanto maior a autorregulação e a regulação social, menor será a necessidade de uma regulação legal. Digo, quanto maiores forem os cuidados um com o outro, por exemplo, menor será a necessidade da polícia nas ruas.
"Há 20 anos, discutir questões como o aborto, a legalização das drogas, o casamento entre gays, dentre tantos outros temas atuais, era considerado impossível" | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21: Anteriormente o senhor falou que as regras devem ser atualizadas, pois elas não são estáticas.

Antanas Mockus: Há 20 anos, discutir questões como o aborto, a legalização das drogas, o casamento entre gays, dentre tantos outros temas atuais, era considerado impossível. E os argumentos usados naquela época sobre estes assuntos, são hoje, considerados antiquados. Só o fato de se discutir estas coisas atualmente, já demonstra um avanço legal, moral e cultural da sociedade e consequentemente, de seus cidadãos.

Sul21: Uma de suas ações como prefeito foi acabar com estacionamentos nas vias públicas, transformando-os em ciclovias. Esta ação foi bem vista pela sociedade?

Antanas Mockus: Sim, porém, as duas coisas aconteceram separadamente. Quero dizer, primeiro, queríamos acabar com a ocupação dos carros nas ruas, pois os índices de roubos de carro eram enormes. Posteriormente veio a ideia de transformar o espaço em ciclovias. Entretanto, num primeiro momento, as ciclovias foram instaladas em alguns pontos da região central da cidade, o que foi visto positivamente pela sociedade. Posteriormente, fizemos um mapa cicloviário para ampliar os pontos de trânsito para as bicicletas. Além disso, quando fizemos as ciclovias, a ideia era usá-la para passeios, mas acabou virando um espaço de locomoção para estudantes e trabalhadores.
“Bogotá se tornou a única cidade do mundo em que o Dia Mundial Sem Carro é legalmente quase tão sólido quanto a constituição”
Sul21: Quais foram as consequências disso?

Antanas Mockus: Isso nos fez ver algo que a cidade pedia, mas ninguém estava dando a atenção merecida. Quero dizer, a partir da construção das ciclovias, passamos a ver a bicicleta de uma perspectiva de um transporte do cotidiano. Hoje em Bogotá, estima-se que mais de um milhão de pessoas tenha bicicletas. Além disso, tivemos uma redução de 50% no acidentes de trânsito. Historicamente a cidade estava pensada para o conforto dos carros. Bogotá é uma cidade muito quente, e os escritórios, os órgãos públicos, não possuem banheiros com chuveiros ou instalações adequadas para um funcionário que queira ir trabalhar de bicicleta. Esse é um exemplo. Por outro lado, aquele preconceito conservador que existia pouco a pouco foi deixando de existir, pois as pessoas foram vendo que a bicicleta é um meio de transporte muito mais agradável e que amplia a qualidade de vida que o carro. É tudo uma questão de posicionamento cultural.
"As pessoas foram vendo que a bicicleta é um meio de transporte muito mais agradável e que amplia a qualidade de vida que o carro" | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21: Ou seja, houve uma transformação efetiva da sociedade.

Antanas Mockus: Com certeza. Há 20 anos atrás, quando eu era reitor da Universidade de Bogotá fui conhecido no país por ser alguém que andava de bicicleta. Porém, naquele tempo algumas pessoas achavam um absurdo uma pessoa que tinha um cargo como eu ficar pedalando por aí. Mas isso me aproximava da cidade, me fazia ver a realidade cotidiana. Além disso, era uma excelente forma de me exercitar. Agora, para se ter uma ideia, Bogotá se tornou a única cidade do mundo em que o Dia Mundial Sem Carro é legalmente quase tão sólido quanto a constituição. E isso não sou eu quem falo, fizemos uma consulta popular e o uso das bicicletas foi aprovado quase que integralmente pela sociedade. Outro ponto positivo a respeito das ciclovias esta no fato de que uma quantidade de jovens se dispõem diariamente a ajudar aqueles que não sabem andar de bicicletas e fiscalizam aqueles que tem alguma conduta ilegal, como andar nas calçadas, ou não observam os sinais. Quero dizer, não precisamos de um fiscal de trânsito para os ciclistas, pois eles mesmos já fazem esse trabalho. Isso é a prática da cultura cidadã.

Sul21: Algum outro exemplo desta prática?

Antanas Mockus: No trânsito mesmo, as pessoas que andam de carro possuem dois cartões, um com um desenho de uma mão com um polegar pra cima e outro com um polegar para baixo. Se um motorista comete uma infração, como parar na faixa de pedestres, ou andar na contramão, por exemplo, os demais lhes mostram os cartões. Isso é uma política de psicologia social. Todos acabam cuidando. Além disso, eu coloquei mímicos nas ruas para fazer ironias com àqueles que não cumprem a lei de trânsito. Ao invés deles serem multados e penalizados, eles são “constrangidos” publicamente pela ação. Como o motorista ironizado também tem a responsabilidade de cuidar, ele acaba repensando na atitude, ao invés de ficar enraivado por ser multado.