segunda-feira, 18 de julho de 2011

A história barateada e a recuperação da inocência

Escrito por Cassiano Terra Rodrigues  no CORREIO DA CIDADANIA


No livro Conversas com Woody Allen, é de se notar o seguinte:

Eric Lax: Como era a primeira ideia para A rosa púrpura do Cairo?

Woody Allen: Quando tive a ideia, era só um personagem que desce da tela, grandes brincadeiras, mas aí pensei, onde é que isso vai dar? E me veio a ideia: o ator que faz o personagem vem para a cidade. Depois disso, a coisa se abriu feito uma grande flor. A Cecília precisava decidir e escolher a pessoa real, o que era um passo à frente para ela. Infelizmente, nós temos de escolher a realidade, mas no fim ela nos esmaga e decepciona. Minha visão da realidade é que ela sempre foi um lugar triste para estar... mas é o único lugar onde você consegue comida chinesa.

O novo filme de Woody Allen, “Meia-noite em Paris” (Midnight in Paris, com roteiro e direção próprios, Espanha/EUA, 2011), retoma e inverte a ideia de A rosa púrpura do Cairo: agora, em vez de um filme, uma cidade (de muitos sonhos), Paris; em vez de uma mulher, um homem, Gil (Owen Wilson), roteirista de filmes de qualidade duvidosa em Hollywood, prestes a terminar seu primeiro romance, ambicioso para realizar todo seu talento e mudar a carreira; mas, em vez de um abandono da realidade maçante... bem, aí é que está o nó, digamos assim.

De certa forma, há a retomada da ideia da realidade eivada de sonho e fantasia: em Paris, Gil entra em um automóvel antigo que o leva de volta à Paris dos anos 20, povoada pelos artistas vanguardistas que ele tanto admira: Scott Fitzgerald, Gertrude Stein, Luís Buñuel, Picasso... Nessa viagem ao passado, ele se encontra como escritor, descobre o amor e a si mesmo. Ao mesmo tempo, esse deslocamento espaço-temporal – dos EUA à Europa, dos anos de 2010 aos de 1920 – articula ao menos dois temas importantes: a perda da inocência e a recusa da realidade do presente. Antes de prosseguir, um aviso ao leitor: quem não quiser saber o final do filme, deve parar a leitura.

O tempo todo no filme duas perguntas estão interligadas: que relação podemos ter com a cultura? Qual o sentido da permanência do passado? A primeira liga-se à perda da inocência e é um tema caro à literatura escrita nos EUA (lembre-se Henry James, por exemplo). Com efeito, a personagem que deixa os EUA e vai à Europa em busca de conhecimento, história, cultura etc. serve para discutir o que significa ser americano. Essa viagem a Paris (a real ou a idealizada) pode ser entendida como uma busca por legitimidade identitária, a colônia buscando sua identidade cultural retornando às suas raízes na metrópole. Assim como na literatura, também no filme (e já em Vicky Cristina Barcelona, de 2008) vemos uma contumaz crítica à futilidade e superficialidade da sociedade americana, dominada pelo consumismo e pelo utilitarismo: a noiva de Gil, Inez (Rachel McAdams), e sua família só pensam em dinheiro, em satisfação imediata pelo consumo e em manter seu alto padrão de vida. A fala de sua mãe, Helen (Mimi Kennedy), é reveladora dessa atitude: “Barato é barato.” Ela pensa que Gil é barato e só dá valor ao que pode ser comprado caro (uma cadeira antiga, roupas ou restaurantes etc.), mas a relação viva que Gil mantém com a literatura não lhe é cara – antes, parece-lhe excentricidade e esquisitice. Parece, assim, que o esnobe Paul (Michael Sheen) é um espelho de Helen: derramando nomes, conceitos, datas e análises formais, complicadas e equivocadas por todo lugar, a cultura parece ser, para ele, erudição a serviço da vaidade, um grande baú de objetos, um grande estoque de supermercado, do qual ele pode sacar o melhor para cada ocasião, o melhor para capitalizar seu verniz social. Inez, Helen e Paul são personagens que bem ilustram como, na pós-modernidade, a integração da produção estética à produção de mercadorias banaliza toda criatividade, barateia toda inovação. Sabe-se bem o resultado, exaustivamente analisado por Fredric Jameson: tudo é pastiche, tudo é “imitação de estilos mortos, a fala através de todas as máscaras estocadas no museu imaginário de uma cultura que agora se tornou global” (Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 45).

Gil é o único a perceber o pastiche, mas tarda a perceber o caso entre Paul e Inez. Quando percebe, resolve abandonar definitivamente todo esse mundo. Desse ponto de vista, a perda da inocência pode significar que ele também deixa de lado o “american way of life” e sua ideologia de “winners x losers”. Mas, aqui, surpreende-nos um desvio! É o francês Gilles Deleuze, no belo ensaio “Da superioridade da literatura anglo-americana”, quem afirma: “Fugir não é exatamente viajar, tampouco se mover. Antes de tudo porque há viagens à francesa, históricas demais, culturais e organizadas, onde as pessoas se contentam em transportar seu ‘eu’”. É exatamente isso que faz principalmente Paul no filme; não desprezemos mais essa chama na rinha das vaidades França x EUA.

Durante todo o filme fica evidente que Gil não se sente bem em meio a tanto consumismo e vaidade. Ele sonha com uma Paris que não existe mais e, fugindo para ela, numa grande fantasia dentro do filme, encontra tudo o que quer e não tem em seu tempo. A fantasia do filme nos faz perguntar qual a função da arte numa sociedade consumista. É claro que temos de questionar qual o sentido da criação artística em nossas vidas; na verdade, que sentido damos à criação de nossas vidas. As pressões da noiva e da família dela são pelo uso instrumental de sua arte – Gil deve continuar escrevendo roteiros para filmes classe Z e, com isso, ganhar muito dinheiro para sustentar os gostos decorativos de sua noiva. A viagem à Europa, afinal, era só para um breve e profícuo aculturamento, que deveria, no retorno ao lar, se converter em muitos dólares – o ar de sofisticação de um produto local vem das brisas que ele tomou na Europa. Um belo ideal de macho burguês, no fim das contas. Já insistia Hegel, no século XIX: se a arte desistir dos grandes interesses do espírito, tornando-se meramente decorativa e ilustrativa, terá deixado de ser arte. E, com efeito, arte, em sentido pleno, já era para Hegel uma coisa do passado, que tinha atingido seu apogeu entre os gregos, já que o reconhecimento de nós mesmos e de nosso lugar no mundo só para poucos passa pela experiência artística – não à toa Gil sente-se deslocado, pois só ele parece recusar essa morte da arte. De fato, ele se desloca, uma vez no espaço e duplamente no tempo; e também podemos dizer que essa forma de Woody Allen problematizar a relação modernidade x pós-modernidade não dá de barato sua admiração pela história e pela cultura modernista.

A viagem ao passado o faz encontrar Adriana (Marion Cotillard), jovem estudante de moda que, na Paris dos anos 20, torna-se amante de Picasso. Juntos, fazem uma viagem ao passado dentro do passado, à Paris dos sonhos de Adriana: a Belle Époque de Toulouse-Lautrec, Paul Gauguin, Degas e tantos outros expressionistas, simbolistas etc. Nesse momento, Gil tem uma revelação e é também então que a articulação espaço-temporal revela seu sentido. Ele recusa a possibilidade de aceitar totalmente a fantasia da fantasia e ficar na Paris da Belle Époque, numa viagem ao passado do passado; reconhece suas ilusões serem impossíveis, decide voltar a 2010 e viver em seu tempo.

Ora, isso não significa que, no fim, Gil se torne um esquizofrênico pós-moderno, um historicista fixado em imagens de um passado modernista e irrecuperável. Ao contrário, o filme parece sugerir justamente o oposto. Sua consciência súbita da insuficiência da nostalgia extemporânea não significa uma concessão ao consumismo superficial – antes, renova seu olhar: as ruas de Paris; a diferença de iluminação a marcar as diferenças entre as épocas; e, por fim, as luminosas cenas finais do close em Gabrielle (Léa Seydoux) e do close em Gil, indicam a possibilidade de renovação do olhar (arriscamos dizer que a luz – Paris, cidade luz... – é personagem central do filme; o trailer dá uma breve amostra e pode ser visto aqui: http://www.youtube.com/watch?v=BYRWfS2s2v4 ). Gil rompe com todas as suas relações, abandona a noiva fútil, a rendosa carreira de roteirista medíocre em Hollywood e decide ficar em Paris, dando novo sentido à sua vida – apenas por ter fugido da vida que tinha ele pode agora criar a própria vida.

Woody Allen certa vez disse que trazemos em nós mesmos as sementes de nossa própria destruição. “Meia-noite em Paris” acrescenta uma nota otimista a essa afirmação psicanalítica e trágica: também trazemos as sementes de nossa recriação. Descobrimos a terra fértil onde plantá-las ao começarmos uma fuga e um desvio.

Cordiais saudações.

* * *
AUTO-INDULGÊNCIA: Os leitores devem perdoar duplamente a este escritor. Em primeiro lugar, pela demora em escrever novos textos. Em segundo lugar, pela auto-propaganda: a partir de agosto, será oferecido, na PUC-SP, o curso de extensão “Diálogos entre filosofia, cinema e humanidades: o cinema como construção do conhecimento”, coordenado por este que vos escreve. Mais infos seguindo o link: http://cogeae.pucsp.br/cogeae/curso/4326.

Cassiano Terra Rodrigues é professor de filosofia na PUC-SP e sempre que pode busca traçar linhas de fuga.

Os preços e a exploração do consumidor no Brasil

Editorial do SUL21

Tudo no Brasil é caro. A ladainha de sempre é de que a culpa é dos impostos e do “custo Brasil”, formado basicamente por encargos sociais. Paga-se muito imposto no Brasil e, por este motivo, os produtos são caros, afirmam. Bela balela, pura mentira. Que se pagam altos impostos no Brasil é verdade, mas não é apenas este o motivo de o consumidor brasileiro pagar tudo muito mais caro do que os dos demais países. O “custo França”, com certeza, é equivalente ao brasileiro.
A matéria do final de semana do Sul21 sobre o preço dos livros no Brasil é um exemplo do que se afirma aqui. Os livros são caros não pelo motivo dos impostos, já que os livros são isentos de tributação desde os anos 50 do século passado. Tanto os livros quanto os automóveis, as ligações telefônicas (de aparelhos celulares e de fixos), as roupas, os dentifrícios etc. etc. etc. são caros basicamente porque, além dos impostos, o mercado consumidor brasileiro é relativamente pequeno, mas principalmente porque as margens de lucro praticadas no país são excessivamente altas.
Nada contra os lucros, quando eles são razoáveis. O produtor, o distribuir e o comerciante precisam ser remunerados. Não fosse assim, não existiria a economia de mercado e não há nada a vista que nos autorize acreditar que ela esteja prestes a se extinguir e/ou a ser substituída por outra forma de organização econômica.
Tudo contra a ganância desvairada, imperante no Brasil. Durante muitos anos, desde que se instalou a ciclo de industrialização dependente e associado (aos capitais internacionais) no país, o consumo restringiu-se a uma pequena fatia da população, nunca maior do que 25% do total populacional. Como se produzia para poucos, vendia-se (muito) caro para que se pudesse gerar o ganho necessário para manter e reproduzir o sistema.
Foi assim desde os anos 50, na era JK, com a introdução da indústria automobilística e sociedade de massas no país. Foi assim desde os anos 70, no período do “milagre econômico brasileiro” durante a ditadura militar, com a reserva de mercado e a dificuldade de importação de produtos de fora. Foi assim nos anos 90, na com a “abertura dos portos” e a invasão de produtos importados da era Collor de Melo.
Tudo começou a mudar nas eras Itamar Franco, FHC e Lula, com o aumento do mercado consumidor desde o Plano Real. As sucessivas (foram três) quebras econômicas do país e as privatizações não alteraram o ritmo da expansão do mercado interno brasileiro iniciado com Itamar e aprofundado com Lula.
A entrega de setores estratégicos da economia à iniciativa privada (internacional e nacional), ocorrida no período FHC sem a devida implantação de mecanismos de controle eficientes, gerou distorções que ainda hoje se mantém. Os serviços telefônicos no Brasil são os segundos mais caros do mundo (e de péssima qualidade)! Os automóveis brasileiros são tão caros que se paga aqui o preço de um carro de luxo (tipo um SUV de última geração) por um réles 1.4 parcamente equipado! As roupas de grife, vendidas aqui a preço de ouro (tipo Tommy, Lacoste, Zara), são compradas no exterior por cerca de 1/3 dos que se paga no Brasil! Hoje, muitos dos que possuem renda, viajam ao exterior para fazer compras. O que economizam por lá, paga a passagem, a estadia e sobra ainda para a poupança.
Há um problema de escala, sem dúvida. Como se vende menos, se compensa aumentando a margem de lucro para se manter o ganho final. Acontece que se os preços são altos em demasia, mesmo que os ganhos dos consumidores aumentem (como está ocorrendo atualmente), nunca se conseguirá atingir um volume de consumo que possibilite a diminuição dos preços finais, em virtude do aumento da escala de vendas.
Hoje, na verdade, nem mesmo a justificativa do tamanho do mercado consumidor interno brasileiro se sustenta. Os carros produzidos no Brasil, por exemplo, são vendidos no mundo todo, já que o mercado é global. Além disso, a ascensão social de mais de 32 milhões de pessoas e a queda de 43% da população miserável ocorridas no Brasil nos últimos oito anos fez com que fosse incorporado ao mercado interno do país um contingente de consumidores superior à população total da Espanha ou mais do que uma vez e meia a população do Canadá. O crescimento da classe média brasileira, neste mesmo período, foi equivalente ao número total de moradores de duas Bélgicas.
Segundo projeções do economista Marcelo Neri, da Fundação Getúlio Vargas (RJ), se for mantido o ritmo atual de crescimento, o Brasil terá incorporado até o ano de 2014 mais do que uma França de cidadãos às classes A, B e C ou um total de 68 milhões de pessoas. Está mais do que na hora, portanto, de o consumidor se impor e exigir redução de preços e melhoria de serviços. Que tal começar campanhas na internet, nas redes sociais e também por meios dos movimentos populares e partidos políticos pela redução das margens de lucro excessivas e pelo respeito ao consumidor?