Durante décadas, ambos os partidos norte-americanos suplantaram um impulso para salários mais elevados com auxílios públicos bem-intencionados. O resultado: calamidade.
Por Joan Walsh*, na revista Salon
Foto: NBC News
2013 é o ano em que muitos norte-americanos descobriram a crise dos trabalhadores pobres. E essa também é a crise dos pobres que vivem de benefícios. Isso é difícil para nós: os norte-americanos que notoriamente detestamos assistencialismo, a menos que seja chamado de outra coisa e/ou nos beneficie pessoalmente. Nós achamos que isso é para os preguiçosos, vagabundos e para pessoas que não fazem a sua parte.
Portanto, não temos certeza de como lidar com o fato de que um quarto das pessoas que têm emprego hoje ganham tão pouco dinheiro que elas também recebem alguma forma de assistência pública, ou benefícios – uma proporção que é muito maior em alguns dos setores de maior crescimento da força de trabalho. Ou que 60% dos adultos beneficiários de auxilio alimentação estão empregados.
Um total de 52% das famílias dos trabalhadores de fast-food recebe assistência pública – a maior parte dela vem do Medicaid [1], vale-refeição e do crédito de imposto sobre rendimento (EITC) [2] – até a quantia de US$7 bilhões anuais, de acordo com uma nova pesquisa do Centro de Pesquisa do Trabalho da Universidade da Califórnia-Berkeley e da Universidade de Illinois.
Segundo o estudo, somente os trabalhadores do McDonald's recebem US$ 1,2 bilhão em ajuda pública. Essa é uma indústria, a propósito, que no ano passado faturou US$ 7,44 bilhões em lucros, paga US$ 52,7 milhões aos seus altos executivos e distribuiu 7,7 bilhões em dividendos e reaquisição de ações. Mesmo assim, “o recebimento de recursos públicos é a regra, e não a exceção, para essa força de trabalho", concluiu o estudo.
Depois, há o Wal-Mart, que, como Josh Eidelson, da Salon, informou recentemente, vangloriou-se numa conferência do Goldman Sachs que "mais de 475 mil" de seus 1,3 milhão de trabalhadores ganham mais de US$ 25mil por ano – o que nos permite inferir que quase 60% ganham menos.
Os democratas do Comitê de Educação e Força de Trabalho estimaram que as gigantescas cadeias de varejo de baixo custo beneficiam-se de muitos bilhões de dólares em financiamentos de assistência pública; um "hipermercado" do Wisconsin custa aos contribuintes pelo menos US$ 1 milhão por ano em assistência pública para as famílias dos trabalhadores. Lembre-se, também, que seis membros da família Walton possuem a riqueza equivalente a de 48 milhões de norte-americanos juntos.
Mas não é só fast-food e Wal-Mart: um em cada três caixas de banco recebe assistência pública, revelou o Committee for Better Banks, na semana passada, a um custo de quase US$ 1 bilhão por ano em ajuda federal, estadual e local. É isso mesmo: uma das indústrias mais rentáveis, privilegiadas e de alto prestígio do país, a do ramo bancário, paga a um setor de seus trabalhadores salários chocantemente baixos e depende dos contribuintes para tirá-los da pobreza. Só em Nova York, 40% dos caixas de banco e seus familiares recebem assistência pública, custando US$ 112 milhões em benefícios estaduais e federais.
Os CEOs dos bancos ganham vários milhões de dólares em bônus quando os lucros aumentam, enquanto milhões de caixas são tão pobres que recebem assistência social. Há algo de errado nisso.
A repulsa pelas empresas rentáveis que pagam salários em nível de pobreza está ajudando a alimentar uma onda de organização há muito esperada e a protestar em nome dos trabalhadores com baixos salários, desde greves de trabalhadores de fast-food que varreram o país até protestos contra o Wal-Mart nessa temporada de férias. Os contribuintes recuam diante da ideia, mas também muitos trabalhadores. "Eu pensei que eu poderia me virar por conta própria. Isso não aconteceu”, disse a funcionária do Wal-Mart Aubretia Edick, ao Huffington Post, que ganha US$ 11,70 por hora e ainda recebe assistência pública. É por isso que ela se juntou a uma greve de um dia. "O Wal-Mart não paga o meu salário", disse. "Você paga o meu salário."
Os EUA agora tem a maior proporção de trabalhadores com baixos salários do mundo desenvolvido, de acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Um em cada quatro norte-americanos ganha menos de dois terços do salário médio, que é a mesma proporção que depende da ajuda pública. Está se tornando mais amplamente aceito que a disseminação e persistência de empregos de baixos salários esteja por trás do aumento da desigualdade de renda e redução da mobilidade social. O que é menos conhecido é o papel que os democratas têm desempenhado na criação dessa armadilha.
Aumento da desigualdade
Em seu discurso amplamente admirado sobre a desigualdade de renda, do dia 4 de dezembro, o presidente Obama parecia compartilhar todas essas preocupações.
"Nós sabemos que há os trabalhadores do aeroporto, os trabalhadores de fast-food, os auxiliares de enfermagem e os vendedores do varejo que trabalham duro e ainda vivem na pobreza ou um pouco acima dela", disse ele.
Baseado em grande parte naquele discurso e em alguns sussurros vindos da Ala Oeste da Casa Branca, a revista Político anunciou na sexta-feira (13) "O presidente Obama volta-se para a esquerda". Mas, à parte de dizer mais uma vez que é hora de aumentar o salário mínimo, o presidente ainda não colocou muita força em uma agenda de “esquerda” para os trabalhadores com baixos salários.
Também seria bom que Obama reconhecesse: o fato de que tantos norte-americanos "trabalham duro e ainda estão vivendo na pobreza ou um pouco acima dela" e que recebem assistência pública não é apenas um acidente infeliz. É o resultado de uma política pública apoiada por muitos democratas – e ele não tem feito muito para mudá-la ou desafiá-la. Na verdade, o presidente do Conselho de Assessores Econômicos de Obama fez a sua defesa mais vigorosa.
A verdade é que um consenso bipartidário que surgiu na década de 1990 dizia que um emprego, praticamente qualquer emprego, era melhor do que a assistência pública a longo prazo para os chamados adultos "capacitados fisicamente", incluindo as mães com crianças pequenas. Isso levou à controversa reforma da legislação da previdência, que teve ramificações muito além do domínio dos benefícios sociais.
Os republicanos exigiam trabalho de beneficiários da previdência social, a maioria dos democratas concordou, mas exigiu um novo suporte para trabalhadores de baixa renda: uma expansão do EITC, Medicaid e elegibilidade do vale-refeição mais amplos, novos (embora não suficientes) subsídios para cuidados infantis. (Como senador do estado de Illinois, Obama era crítico da ideia, mas, mais tarde, aprovou o acordo.) Os novos programas de apoio também ajudaram milhões de trabalhadores de baixa renda, que nunca tinham necessitado de benefícios; enquanto os salários continuaram estagnando e até mesmo diminuindo, mais pessoas passaram a ser elegíveis.
Mas quando os defensores trabalhistas começaram a perceber e protestar que os empregadores estavam contando com os contribuintes para apoiar a sua força de trabalho há uma década, alguns liberais lhes disseram para não se preocuparem com isso. Respondendo a uma onda anterior de organização contra as práticas trabalhistas do Wal-Mart, o presidente do Conselho de Assessores Econômicos (CEA, na sigla em inglês) do presidente Obama, Jason Furman, escreveu um artigo muito influente em 2005 intitulado "Wal-Mart: uma historia de sucesso progressista" (Oito anos depois, isso soa como se ele estivesse debochando de nós.) O ex-conselheiro econômico de Clinton argumentou que os preços baixos das grandes redes ajudaram os pobres, e que a dependência de seus funcionários à assistência pública não foi um erro, mas uma característica da política social progressista.
Furman reconheceu o presidente Clinton como aquele que presidiu "a transformação da nossa rede de segurança social de um suporte para os indigentes para um sistema que faz o trabalho pagar (…) expansões em apoio aos trabalhadores de baixa renda, incluindo um crédito de imposto sobre rendimento (EITC) mais generoso e esforços para garantir que as crianças não perdessem o seu Medicaid se seus pais conseguissem um emprego de baixa remuneração". Essencialmente, a dependência dos empregados do Wal-Mart em tais programas representou uma boa política social-democrata, Furman argumentou. E em uma troca memorável com Barbara Ehrenreich no site Slate, ele repreendeu os críticos progressistas do Wal-Mart por "brincar com os instintos primitivos antibenefício, antigoverno, anti-imposto de alguns conservadores". (Deixe para um democrata da era Clinton culpar os progressistas pelos bem estabelecidos "instintos primitivos antibenefícios" da direita.)
Embora o artigo de Furman sobre o Wal-Mart seja de oito anos atrás, ele foi amplamente citado como uma razão para os progressistas para questionar a sua nomeação como presidente do CEA no início deste ano (embora economistas progressistas desde Jared Bernstein a Paul Krugman endossaram a sua seleção). Apenas alguns meses atrás, quando a câmara municipal de Washington aprovou uma lei exigindo que grandes varejistas não-sindicalizados pagassem um salário mínimo de 12,50 dólares por hora, o Wal-Mart enviou aos repórteres o artigo de Furman na defesa.
Curiosamente, eu nunca vi Furman defender ou qualificar ou atualizar o artigo, mesmo em face de uma nova onda de movimentos anti-Wal-Mart. Eu não estava completamente confortável em usar um documento de oito anos de idade para defender seus pontos de vista, então pedi aos funcionários de comunicação da Casa Branca se ele falaria comigo sobre isso. Eu não obtive resposta.
Como social-democrata, eu não acho que Furman esteja errado em defender o papel dos programas sociais em melhorar a vida dos trabalhadores de baixa renda. Muitos progressistas acreditam que devemos separar o plano de saúde do emprego por completo, por exemplo, e torná-lo um benefício universal pago por impostos corporativos e impostos de valores máximos, mais as contribuições individuais de escala móvel. Em todo o mundo desenvolvido, os trabalhadores de quase todos os níveis podem contar com planos de saúde, puericultura, formação profissional e de treinamento, e até mesmo (em níveis salariais mais baixos) suplementos salariais financiados pelo governo.
Mas não é calvinismo punitivo ou vergonha dos benefícios em questionar até que ponto que agora é certo que trabalhadores de baixa renda tenham que contar com o vale-refeição e outras intervenções públicas, muitas vezes por um longo tempo, talvez permanentemente. Por não exigirem também aumentos regulares do salário mínimo ou colocar mais força na organização sindical, os democratas ajudaram a criar um vasto conjunto de empregos de baixos salários que paira um pouco acima da linha de pobreza, e às vezes ainda abaixo dela, graças à assistência pública, e não tem a força econômica e política para melhorar os salários e as condições de trabalho. Isso não pode ser bom para ninguém.
Na verdade, a noção de que tantos milhões de pessoas trabalham tão duro e ainda são pobres o suficiente para receber ajuda pública está aumentando: ela ajuda a mostrar que os salários baixos, não a falta de esforço ou "dependência", são, em parte, aquilo que está fazendo encolher a classe média. Não apenas os contribuintes, mas também os trabalhadores de baixa renda acham que sair da pobreza, com a ajuda de vale-refeição, Medicaid e o EITC, deve ser apenas uma vitória temporária a caminho de um lugar sólido no mercado de trabalho onde o trabalho é devidamente remunerado.
Eu certamente não estou demonizando a assistência pública. Nós ainda gastamos uma ninharia para ajudar os trabalhadores de baixos salários em comparação com o apoio social desfrutado por seus pares em outras nações prósperas. Os progressistas certamente estão orgulhosos de um estudo recente que mostrou que os programas de combate à pobreza, de fato, tiram as pessoas da pobreza – cerca de um quarto dos americanos viveriam abaixo da linha da pobreza se não fosse pelo apoio social, em oposição a um triste 16 por cento hoje. Isso deve obliterar a história infundada de Reagan de que "nós lutamos uma guerra contra a pobreza, e a pobreza venceu".
Mas a cada dólar que o contribuinte paga para subsidiar as empresas que pagam salários de miséria é um dólar não gasto em programas de primeira infância, na construção de universidades ou no financiamento da educação universitária. Sim, precisamos de redes de segurança, mas também precisamos de escadas de oportunidade. O gasto do governo que construiu a classe média depois da Segunda Guerra Mundial foi em educação e pesquisa, e foi apoiado pela mais eficaz iniciativa antipobreza do New Deal: a Lei Wagner, que facilitou a organização sindical.
Hoje, temos uma rede de segurança puída, mas essas escadas de oportunidade são ainda mais frágeis e pouco confiáveis. Nós simplesmente não estamos construindo-as – e é por isso que nós estamos enfrentando uma crise de desigualdade de renda e uma estagnação da mobilidade social, que costumava ser o coração do sonho americano.
Questão trabalhista
O presidente Obama pareceu reconhecer ao menos alguma conexão entre a proliferação de empregos de baixos salários e a crise de desigualdade de renda em seu discurso marcante de 4 de dezembro. Condenando o aumento do número de postos de trabalho que pagam salários a nível de pobreza, ele declarou que "já está mais do que na hora de aumentar o salário mínimo que, em termos reais, agora está abaixo de onde estava quando Harry Truman estava no governo", e acrescentou que "está em tempo de garantir que as nossas leis coletivas de negociação funcionem como deveriam, e assim os sindicatos terão condições de concorrência equitativas para organizar um acordo melhor para os trabalhadores e melhores salários para a classe média". Ele também se comprometeu a reconstruir as "escadas de oportunidade" que fizeram a sua família e milhões de outras, incluindo a minha, subir da classe trabalhadora para a classe média. Dado o balanço de extrema-direita do Partido Republicano, no entanto, não é provável que ele seja capaz de fazer muito disso acontecer.
O que me leva ao outro problema dos trabalhadores de baixa renda que estão sendo obrigados a depender da assistência pública: eles são, infelizmente, vulneráveis a serem bode expiatório político e política baixa. O deputado Paul Ryan chama a rede de segurança de "rede de praia", o que é horrível quando sabemos que muitas pessoas tem pelo menos um, e talvez dois, empregos e ainda permanecem pobres. Mitt Romney investiu contra os 47% dos norte-americanos que não pagam imposto de renda federal, o que inclui milhões de trabalhadores de baixa renda que recebem o crédito fiscal dos rendimentos auferidos (EITC), mesmo que esse tenha sido uma ideia republicana, assinada em lei pelo presidente Gerald Ford e expandida por ambos os presidentes Bush.
Mas os republicanos não estão fazendo pressão para aumentar o salário mínimo ou tornar mais fácil para os trabalhadores de baixa renda organizar sindicatos. A resposta deles é retirar a rede de segurança dos trabalhadores sem a construção de escadas que os fariam subir. E com cortes do vale-refeição, eles estão conseguindo o que eles querem.
Neste momento, a melhor resposta é um movimento operário revigorado em nome dos trabalhadores com baixos salários, e é revitalizando vê-lo se desenvolver. Em um nível, é surpreendente que tenha levado tanto tempo. Muitos empregos de baixos salários têm a vantagem de serem de base territorial, eles não podem se mudar para países em desenvolvimento. Os drones não vão entregar o seu hambúrguer do McDonald's num futuro próximo, e o Wal-Mart não pode vender tudo online, senão ele iria. Os caixas de banco já foram dizimados por caixas eletrônicos e pelos serviços bancários online; aqueles que ainda têm emprego os têm porque são necessários.
Mas também seria importante para mais pessoas – mais democratas – reconhecer o papel que a política tem desempenhado na criação desse pântano de empregos de baixos salários que tem sido um pouco menos miserável devido aos subsídios públicos. Como a desigualdade de renda aumentou, a mobilidade social, marca registrada dos EUA, diminuiu. A crise dos empregos de baixos salários é cada vez mais reconhecida como parte daquilo que está ampliando a desigualdade e retardando a mobilidade social. No quinto ano de sua presidência, Obama está ficando melhor em descrever o problema, mas ele precisa fazer mais para apoiar os trabalhadores que estão tentando pressionar por soluções.
Notas:
1. Medicaid: programa de assistência médica dos EUA para famílias e indivíduos de baixa renda.
2.Earned Income Tax Credit: crédito recebido através do imposto de renda federal dado para trabalhadores ou casais – principalmente aqueles com filhos menores de idade.
*É editor, jornalista e blogueiro
Tradução: Moisés Sbardelotto