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terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Magnoli, a Kátia Abreu de cuecas


Magnoli, a Kátia Abreu de cuecas


Por José Ribamar Bessa Freire
05/01/2014 – Diário do Amazonas
Demétrio Magnoli, doutor em Geografia, nunca pisou o chão da aldeia Tenharim em Humaitá, sul do Amazonas, invadida neste natal por madeireiros e outros bichos ferozes. Nunca cheirou carne moqueada de anta cozida no leite de castanha, nem saboreou essa iguaria refinada da culinária Kagwahiva. Jamais ouviu narrativas, poesia ou o som melodioso da flauta Yrerua tocada na Casa Ritual – a Ôga Tymãnu Torywa Ropira. Nem assistiu a festa tradicional – o Mboatava. Para falar a verdade, ele nunca viu um índio Tenharim em toda sua vida, nem nu, nem de tanga ou em traje a rigor. Nunca.
Não sabe o que perdeu. Não importa. O papa também nunca esteve no inferno, nem viu o diabo chupando manga, mas discorre sobre o tema. Desta forma, Magnoli se sentiu à vontade para escrever, na quinta feira, A Guerra do Gentio, no Globo (02/01), no qual comenta o recente conflito, numa área que desconhece e dá palpites sobre a identidade de índios, que nunca viu. Quando a gente carece de experiência e de vivência pessoal, procura as fontes ou quem estudou o assunto. O papa, por exemplo, lê a Bíblia e os teólogos. O que leu Magnoli sobre os Tenharim?
Nada de consistente. Muita gente boa escreveu sobre eles, com uma reconhecida produção etnográfica. Nimuendaju descreveu os Parintintin, com quem conviveu nos anos 1920, no rio Madeira. O gringo Waud Kracke redigiu a tese na Universidade de Chicago, nos anos 1970, depois de gravar os cantos e narrativas na língua Kagwahiva, que aprendeu a falar. Miguel Angel Menéndez viajou pelo Tapajós para a tese de doutorado na USP, no final dos anos 1980. Edmundo Peggion fez uma etnografia dos Tenharim e defendeu sua tese sobre a organização Kagwahiva, na USP, publicada em 2011.
Cacique motoqueiro
O geógrafo Magnoli, formado também pela USP, nem seu souza. Ignora-os, assim como desconhece a documentação dos arquivos. Menciona os jesuítas e o ciclo da borracha, sem apoio de qualquer fonte histórica. Não consultou na Biblioteca de Évora o manuscrito de Manoel Ferreyra, que percorreu a região em meados do séc. XVIII. Para isso, nem precisa viajar a Portugal. Basta ir ao Museu do Índio, no Rio, onde estão também microfilmes de relatórios do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) dos anos 1920-30 redigidos pelo inspetor Bento Lemos, que fornece dados históricos sobre os Tenharim e outros povos Kagwahiva, conhecidos até 1920 pelo nome genérico de Parintintin.
Ou seja, o cara não pesquisou nos arquivos, não leu os antropólogos, nunca ouviu um Tenharim, mas usa a página nobre de um jornal de circulação nacional para cagar regras – essa é a expressão – sobre os Kagwahiva. Pontifica sobre eles num texto que pretende ser infalível como uma encíclica. Insinua que a morte de Ivan Tenharim, na estrada, foi acidente de trânsito como quer a polícia, e não assassinado em uma emboscada como afirmam os índios. Aliás, segundo ele, o “cacique motoqueiro” nem índio é. Rouba-lhe a identidade depois de morto, falando urbi et orbe como o papa:
“O cacique motoqueiro dos Tenharim, as aldeias indígenas que vivem de rendas de pedágios clandestinos, os índios terena e guarani que cultivam melancias em “terras sagradas”para vendê-las no mercado não são “povos da floresta”, mas brasileiros pobres de origem indígena”.
Demétrio dixit. Qual o critério que ele usa para do alto das suas tamancas trombetear quem é índio e quem não é? O mercado. Eis aí: o mercado opera o milagre da transfiguração de índios em ‘brasileiros pobres’. Vendeu uma melancia? Então deixou de ser índio – afirma o contundente Magnoli. Sem o respaldo das ciências sociais, seu discurso deriva para o senso comum. E o senso comum, no caso, se chama Kátia Abreu, senadora, pecuarista e articulista do caderno Mercado da Folha de São Paulo, porta-voz do agronegócio.
Cartilha de Kátia
Magnoli reza pela cartilha de Katia Abreu, a quem segue como um cachorrinho a seu amo. Copia dela ipsis litteris, sem aspas, até a negação da identidade indígena. Só troca ‘silvícola’ por ‘gentio’, mas a ‘matriz epistemológica’ é a mesma: o interesse do agronegócio nas terras indígenas. Se a venda de uma melancia transforma o ‘gentio’ em ‘brasileiro pobre’, então a terra onde a plantou deixa de ser indígena e fica assim liberada para os donos da soja, da cana e do gado. Magnoli não questiona a terra concentrada em mãos de um único fazendeiro, mas o faz quando se trata de comunidades indígenas, manifestando maliciosamente fingida dúvida:
“Muita terra para pouco índio”, diz uma sabedoria popular cada vez mais difundida, mesmo se equivocada” – escreve Magnoli. Que ‘sabedoria’ é essa? Que ‘popular’ é esse? Quem difunde? Se é equivocada, porque ele e outros formadores de opinião espalham tal equívoco? Magnoli repete a mesma lenga-lenga da Katia Abreu – a terra é secundária, o que os índios, “necessitam é, sobretudo, de postos de saúde e escolas públicas”. Critica o termo oficial “desintrusão” para descrever a remoção de todos os não índios das terras indígenas, porque não aceita chamá-los de “intrusos”.
Uma vez mais reproduz o discurso de Kátia Abreu que igualmente não conhece os índios nem de vivência, nem de leitura ou pesquisa, mas também caga regras, que Magnoli copia e o leitor lê, comprando gato por lebre. Copia até o método – a “abreugrafia” – que consiste em dispensar o trabalho de campo e o contato direto com os índios, que nunca são ouvidos contrariando uma regra básica do jornalismo. Reforça preconceitos boçais e chega a ofender os índios quando reproduz acriticamente o discurso do “senso comum”:
“Edvan Fritz, almoxarife, deu um passo conceitual adiante: “Eles [os índios] vêm à cidade, enchem a cara, fazem baderna e fica por isso. Índio é protegido pelo governo que nem bicho, então tem de ficar no mato, não tem que viver em dois mundos, no nosso e no deles” – escreve Magnoli.
O outro lado
É isso que Magnoli transcreve. No entanto, o bom jornalismo manda ouvir o outro lado. Por que quando no “outro lado” estão os índios, quase nunca eles são ouvidos, mesmo quando são bilíngues e falam português? Duas excelentes jornalistas – Elaíze Farias e Kátia Brasil – publicaram no portal Amazônia Real, a entrevista do índio Ivanildo Tenharim, refugiado no quartel do Exército em Humaitá, depois da invasão à aldeia, onde ele dá a sua versão sobre os recentes ataques:
“Existem muitos madeireiros que têm raiva da gente porque eles não podem invadir a reserva para tirar madeira. Tempos atrás, com as operações da Funai e de outros órgãos, eles tiveram carros e tratores apreendidos e ficaram com mais raiva. O que eles fizeram foi aproveitar o momento para se unirem contra nós, se articulando com a população. Foram eles que bancaram o protesto de sexta-feira, quando invadiram as aldeias”.
A Polícia confirma as informações do índio: “Identificamos fazendeiros, madeireiros e funcionários tentando invadir a Terra Indígena Tenharim – declarou o tenente coronel Everton Cruz. A expedição punitiva que saiu de Apuí no dia 26 de dezembro contou com 29 caminhonetes “para fazer buscas aos três homens desaparecidos” – informou o delegado Robson Janes, que apontou também a presença de madeireiros e fazendeiros. Para a líder indígena Margarida Tenharim as acusações de que os três homens foram mortos por índios não tem provas: “É um absurdo. Não fazemos isso”.
Mas a voz dos índios não encontra eco no espaço do jornal gerenciado por Demétrio Magnoli, que aproveita para atacar Lula e o que chama de lulismo, responsáveis – segundo ele – pelos conflitos. Desrespeita, além disso, Dilma Rousseff, a quem denomina depreciativamente de “presidente de direito”, em oposição a Lula que seria o “presidente de facto”. Seu ataque é tão rasteiro e primário que, lendo-o, dá vontade de votar na Dilma, mesmo sabendo de que Kátia Abreu faz parte de sua base aliada. Desconfio que se trata de propaganda subliminar.
Demétrio Magnoli, militante de esquerda do grupo trotskista Liberdade e Luta (LIBELU) nos anos 1980, não ouve o outro lado porque trocou de lado. Agora quem dá as cartas para ele é o agronegócio. Madalena arrependida, Demétrio Magnoli podia ser a Kátia Abreu de paletó e gravata, mas é a Kátia de cueca, que ficaria limpa se lavada nas águas ainda claras do igarapé Preto da aldeia Tenharim.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Micaela Bastidas – mulher rebelde

Micaela Bastidas – mulher rebelde





Era 1745 na vastidão do Peru. Terra de incas, os filhos do sol.  No povoado de Tamburco, em Abancay, departamento de Apurimac, nascia Micaela Bastidas Puyucahua, uma guria mestiça que iria marcar com sangue e coragem a história da gente peruana. O pai, Manuel, tinha sangue espanhol, mas a mãe, Josefa, era inca da gema. Esta mistura fez de Micaela uma linda mulher de traços fortes e cabelos ondulados, uma “zamba” que, para as gentes de Abancay significa alguém com características distintas a dos andinos, mestiça. Mas, ao logo de sua vida, mostrou que –apesar do sangue espanhol - era verdadeiramente uma mui digna filha de Tawantisuyo, a grande nação do povo dos Andes.

E foi em Tamburco que ela cresceu, um povoado rural, pequeno, pobre, mas rota de passagem dos viajantes que circulavam pelo país em lentas mulas na penosa jornada de carregar mantimentos e produção de um lado para o outro. Foi correndo por aqueles pastos e observando a crescente pobreza das gentes que ela desenvolveu seu aguçado senso de justiça que mais tarde iria se transformar em lenda.

A história de Micaela se mescla com as grandes lutas de libertação da América Latina quando, em 1760, ainda jovenzinha, casa-se com José Gabriel Condorcarqui, cacique de seu povo e descendente do último Inca, Tupac Amaru, morto em Cuzco no ano de 1572. É ele quem vai incendiar as paragens peruanas na revolução que ficou conhecida como a “revolução de Tupac Amaru II”. 

Naqueles anos do final do 700, a exploração dos trabalhadores indígenas era uma coisa insuportável. A colônia fazia seus estragos, rapinava riquezas, escravizava os seres. Já tinham passados quase duzentos anos desde a invasão e os povos originários estavam começando a despertar da letargia. Rebeliões tinham sido feitas ao longo desses anos, mas todas tinham sido esmagadas. A mais recente, em 1760, justamente o ano do casório de Gabriel e Micaela, fora liderada por José Santos Atahualpa, buscando restaurar o reino dos Incas. Esta última fez os espanhóis ficarem de cabelo em pé, porque perceberam que, nas comunidades indígenas, algo muito poderoso começava a se fortalecer: o desejo de liberdade. Aparte isso, também os criollos (gente nascida na terra, mas com sangue espanhol) estavam insatisfeitos com a coroa em função dos altos impostos. Caldo perfeito para mais confusão.

Por conta destes dois elementos incendiários, Tupac Amaru acabou liderando uma revolução vinte anos depois, em 1780. Homem letrado, já cacique de seu povoado, o descendente do Inca já estava impregnado dos ares rebeldes que vinham da França, dos Estados Unidos e do Haiti. Seu primeiro ato revolucionário foi acabar com as obrajes, espécie de fábricas onde os índios eram explorados até a morte, ganhando miseráveis salários. Seu propósito era ir até Cuzco, destruindo todas estas formas de opressão e instaurando um governo indígena. Não foi à toa que em poucos dias já tinha juntado mais de 10 mil índios no seu exército. E, nessa caminhada até o “umbigo do mundo da nação do Tawnatisuyo”, ele ia libertando todos os escravos.

Durante o pouco tempo (cinco meses) que durou a revolução de Tupac Amaru, Micaela Bastide esteve a seu lado. Por várias vezes comandou as tropas e não foram poucas as suas ações como chefe de governo. Seu corpo forte e esguio era visto, manhã cedinho, a cavalgar pelos povoados, arrebanhando gente para a guerra. Ela era quem administrava as provisões, mobilizava os destacamentos e administrava as terras liberadas pela revolução. Era considerada a facção mais radical do movimento. Quando Tupac Amaru vacilava no seu avançar sobre Cuzco, era Micaela quem o impulsionava, seja pessoalmente ou através de cartas que lhes fazia chegar amiúde. Por várias vezes se mostrou mais estrategista do que ele como, por exemplo, quando intuiu que a união com os criollos não ia dar em boa coisa. A história o comprovou. Esperando por um levante das gentes de Cuzco, Tupac Amaru demorou a entrar na cidade. Isso fez com que as tropas reais se rearticulassem e o derrotassem em março de 1781. Cuzco não foi conquistada e tudo se perdeu. Numa de suas cartas a Gabriel, Micaela escreveria: “Chepe, chepe, mi muy querido: bastantes advertencias te dí”. Ela nunca confiara nos brancos e tampouco nos criollos. Sempre acreditou que entrando na cidade, venceriam. Gabriel não lhe deu ouvidos.

Assim, vencidos, os líderes rebeldes foram aprisionados. Entre eles estão Gabriel (Tupac Amaru), Micaela, e seu filho Hipólito. No mês de maio do mesmo ano todos são supliciados na Praça Maior da cidade. Micaela, Gabriel e o filho chegam arrastados por cavalos. Irão sofrer todas as torturas possíveis. O primeiro a morrer na forca é Hipólito, diante dos pais. Mas, antes, lhe arrancam a língua. Micaela fica impávida. Depois, vários outros rebeldes vão sendo mortos nas mesmas condições de crueldade, muitos são parentes, amigos. Micaela é a penúltima. Sobe no cadafalso com a mesma altivez que lhe valera a formosura. Tem a língua arrancada e depois, como não morre em seguida, os carrascos ainda lhe aplicam golpes no estômago e no peito. O filho mais novo, de nove anos, assiste a tudo. Será levado depois, prisioneiro, para a Espanha. 

O último a morrer é Tupac Amaru. O cacique revolucionários é amarrado a quatro cavalos que são postos a correr em direções opostas para que o corpo do índio seja esquartejado. Os cavaleiros esporeiam os bichos, eles arrancam e o cacique não se parte. Por várias vezes é feito o mesmo procedimento e Tupac Amaru não se parte. Os espanhóis desistem e desamarrando-o o esquartejam a golpes de machado, sendo suas partes espalhadas por várias regiões do Peru.  Dizem que nessa hora sagrada, em que o corpo do inca resistiu, uma chuva grossa caiu do céu. 

Talvez seja por isso que até hoje, quando chove no Peru, as gentes originárias se ponham a sorrir. Lembram o tempo em que Tupac Amaru incendiou de novo a caminhada para a liberdade, junto com Micaela. Lembram que sempre é possível enfrentar a violência, o terror, o medo. Sorriem e seguem, porque há ainda muita estrada para caminhar. O povo de Tawantinsuyo ainda não entrou em Cuzco. Vai entrar, e vai ser como queria Micaela. Isso ainda vamos ver!!!

terça-feira, 6 de agosto de 2013

[Operação Cunhantã] Sobre abuso e exploração sexual de meninas indígenas



Elaíze Farias
Adital


Seis dos dez presos na Operação Cunhantã da Polícia Federal já estão soltos e de volta a São Gabriel da Cachoeira
A 4ª Vara Federal do Amazonas já entrou na fase de citação dos réus envolvidos no caso de abuso e exploração sexual de meninas indígenas do município de São Gabriel da Cachoeira (a 853 quilômetros a noroeste de Manaus). No início deste mês, o Ministério Público Federal encaminhou à justiça federal denúncia contra as dez pessoas, acusando-as formalmente. De suspeitos, os detidos passaram a ser réus. A informação foi dada na sexta-feira pela Justiça Federal (26/07) a este blog. As pessoas foram presas em maio passado durante a Operação Cunhantã da Polícia Federal.
Das dez pessoas detidas, seis foram soltas e retornaram a São Gabriel da Cachoeira no início de julho, segundo apurou o blog. Elas estavam em prisão temporária (com prazo para encerrar).


A chegada dos presos a Manaus. Os nomes dos acusados não foram revelados pela
Polícia Federal. Fotos: Márcio Macedo/ Free Lancer

Embora seus nomes não sejam divulgados (pelo fato de o caso estar em segredo de justiça), sabe-se que entre as pessoas soltas estão um professor, um militar, um comerciante, um parente de um deputado estadual do Amazonas e duas mulheres que atuavam como agenciadoras dos aliciadores.
Outros quatro réus permanecem em presídios de Manaus (os locais não foram informados pela Justiça Federal). Entre os acusados que continuam presos estão ricos comerciantes do município.
O delegado que comandou a operação da Polícia Federal, Fábio Pessoa, disse que estas quatro pessoas estão em prisão preventiva devido à gravidade dos fatos e os indícios que pesam sobre elas. Um desses agravantes é a ameaça que as vítimas e suas famílias vinham sofrendo por parte do grupo.
Uma das denunciadoras da rede de pedofilia, irmã Giustina Zanatto, que atuava como presidente do Conselho de Defesa da Criança e do Adolescente de São Gabriel da Cachoeira, foi obrigada a sair do Brasil devido às ameaças de morte.
Segundo informações repassadas pela Justiça Federal ao blog, houve várias tentativas, por diversos meio legais, de soltar as quatro pessoas.
Indagado se os quatro podem continuar presos até o fim do processo, o juiz responsável pelo caso disse, por meio da Diretoria da Secretaria Administrativa (Secad), que existe possibilidade tanto de ficarem presas como serem soltas, dependendo dos elementos de convicção apresentados na hipótese de formulação de novo pedido de soltura. "O juiz analisa de acordo com os elementos trazidos aos autos”, disse a diretoria.

Dos dez presos, seis já foram soltos e estão em São Gabriel da Cachoeira
Programa de proteção
O delegado Fábio Pessoa informou também que três vítimas da exploração sexual que estavam no Programa de Proteção à Criança e Adolescente do Ministério da Justiça pediram para sair. Ele não soube dizer se elas já haviam retornado a São Gabriel da Cachoeira.
Fontes deste blog confirmaram que as três meninas, de fato, pediram desligamento do programa de proteção. Duas delas já retornaram ao município do Alto Rio Negro. Não há informações sobre o paradeiro da terceira, que atualmente tem mais de 18 anos e foi a principal testemunha da rede de prostituição da qual eram vítimas as meninas indígenas. Segundo esta fonte, as meninas retornaram a São Gabriel da Cachoeira há 15 dias.
Pessoa disse ainda que a Operação Cunhantã não terá continuidade. Uma segunda investigação em São Gabriel da Cachoeira pode ocorrer apenas se for requerida.
Inquérito
As dez pessoas foram detidas após investigação da Polícia Federal durante operação que durou seis meses. A investigação foi pedida pelo Ministério Público Federal do Amazonas, que esteve em São Gabriel da Cachoeira no início de setembro de 2012 e recolheu relatos e depoimentos que apontavam a exploração sexual de meninas indígenas entre 10 e 14 anos em troca de alimentos e dinheiro.
Inquéritos com estas denúncias já estavam de posse da Polícia Civil, mas nenhuma investigação vinha sendo realizada no âmbito estadual. Por este motivo, o procurador da República Julio José Araujo Junior transferiu o caso para a esfera federal por envolver menores indígenas. Dois meses após a primeira visita ao município, o procurador retornou a São Gabriel da Cachoeira para dar continuidade à coleta dos depoimentos.
Segundo informações da assessoria de imprensa do MPF, o processo está sob sigilo por causa da natureza do crime e em função da exposição de crianças e adolescentes envolvidas no caso.
Na avaliação do MPF, o fato de os quatro continuarem presos indica que o processo tem
prioridade de tramitação em relação aos outros na justiça federal. O MPF explicou que se trata de uma regra quando há réu preso. Isto ocorre para evitar que fiquem muito tempo presos esperando julgamento e –eventualmente– sejam inocentados depois e venham a processar a União por isso.
Normalidade
Nos primeiros dias após o retorno, os seis acusados optaram pelo recolhimento em suas residências. Passado um tempo, porém, tudo já está "normal” e os agora réus já circulam pelas ruas de São Gabriel da Cachoeira "como se nada tivesse ocorrido”, segundo relatou uma fonte do blog. Esta fonte foi uma das denunciadoras do caso para a imprensa e para o Ministério Público Federal.
"Logo que eles chegaram ficaram apenas nas suas casas, escondidos. Agora, já estão saindo. Pelo que a gente soube, eles foram bem recebidos e tiveram apoio de sua família, apesar do que pesa contra eles. Espero que a justiça federal agilize o julgamento”, disse a fonte, que prefere que seu nome permaneça em sigilo.
Esta fonte disse que até o momento as ameaças que ocorriam contra os denunciadores do grupo aliciador das meninas indígenas não se repetiram. Mas ela teme que isto possa ocorrer novamente. "Eles nos olham estranho, com a intenção de nos intimidar, mas por enquanto ficam na deles. Temos medo, claro, mas não vamos desistir”, disse.
Ela afirmou ainda que a exploração sexual de meninas indígenas em São Gabriel da Cachoeira deu "uma acalmada” diante da repercussão da prisão, mas que a prática pode se repetir com outras garotas e outros (ou até os mesmos) aliciadores.
Segundo informações do MPF, por meio de sua assessoria, se ameaças se repetirem, mesmo que sejam veladas, as vítimas podem formalizar denúncia contra os réus e estes correm o risco de voltarem para a cadeia mesmo durante a tramitação do processo na justiça.
Crimes
Durante a investigação do MPF, 16 pessoas foram ouvidas entre crianças e adolescentes. Todas elas confirmaram ter sido vítimas de abuso e exploração sexual em diferentes ocasiões. Também foram ouvidos a Fundação Nacional do Índio (Funai) e representantes de entidades de defesa dos direitos da Criança e do Adolescentes, além de psicológicos e lideranças indígenas.
Na sua denúncia, o MPF atribui aos réus vários crimes: estupro de vulnerável, corrupção de menores, satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente, favorecimento da prostituição de vulnerável, rufianismo (tirar proveito da prostituição alheia) e coação no curso do processo.
Dois dos denunciados foram também acusados na prática do crime previsto no art. 241-B do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que afirma que "adquirir, possuir ou armazenar, por qualquer meio, fotografia, vídeo ou outra forma de registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente”.
O MPF/AM também entendeu que a ofensa à dignidade sexual das vítimas prejudica não apenas a elas próprias, mas também a identidade indígena de toda a comunidade a qual pertencem, o que justifica a atuação dos órgãos federais no caso.
[Fonte: acritica.uol.com.br/blogs/blog_da_elaize_farias/, 29julho2013].

terça-feira, 2 de abril de 2013

Os índios e o Brasil: da história às redes sociais



As redes sociais devem ressignificar o conceito de espaço público, configurando-o, na medida em que o torna mais ativo em relação ao levantamento de opiniões, reflexões, diálogos, etc. E isto é o que deve ser mantido, não seu inverso, ou seja, um espaço do deslumbramento com a crítica esmaltada, a ideia de aprendizagem por “osmose”, compartilhamento de textos que não são lidos, etc. 

“Se não fosse o Facebook do homem branco todos já estariam mortos”
Líder Kaiowá Elizeu Lopes, falando sobre a situação da tribo, 
 em audiência pública realizada no dia 01 de novembro, 2012

Ana Monique Moura* no BRASILDEFATO

Estivemos à frente de uma grande manifestação a favor dos Guarani-Kaiowá, travada nas redes sociais, em especial no Facebook. E não se tratou de uma manifestação vã. Inspirada em Deleuze e Pierre Lévy eu diria que a potencialidade do virtual sobre as realizações na nossa realidade comum é inegável. Vivenciamos uma magnífica confluência da nossa extensão existencial nas redes sociais com algumas decisões importantes de nossa existência não virtual.
Mas o que me incomoda é como há ainda uma grandiosa ingenuidade permeando o que deveria ser senso crítico. Falam sobre as terras dos Guarani-Kaiowá com um tamanho frisson, que a crítica, ou, pra ser mais precisa, a luta, está em muitos aspectos mais próxima de uma agitação ou de uma folia da indignação do que de uma luta que faz a reflexão invadir aonde ela chegue.
As redes sociais devem ressignificar o conceito de espaço público, configurando-o, na medida em que o torna mais ativo em relação ao levantamento de opiniões, reflexões, diálogos, etc. E isto é o que deve ser mantido, não seu inverso, ou seja, um espaço do deslumbramento com a crítica esmaltada, a ideia de aprendizagem por “osmose”, compartilhamento de textos que não são lidos, etc. Esta ideia da urgência de um espaço público plenamente crítico não é, ademais, de nenhuma maneira algo recente, já que foi defendida, embora em outras condições, por filósofos como Hannah Arendt e, com mais força, por Jürgen Habermas. Então, a proposta aqui não se propõe inauguradora, mas contributiva ou reflexiva.
Desde 1500 os índios sofrem com o – assim chamam os índios - “homem branco”. A década de 80 foi marcada por uma série de atrocidades. E ainda hoje elas ocorrem. Contudo, agora temos o domínio de uma rede social com um poder comunicativo que vem superando as imprensas hegemônicas. Nós fazemos a matéria, a denúncia. Não esperamos mais por aquele jornalista poetizado e heroi que, de certa forma, era tutor da informação que nos chegava, e nos entregava uma informação de pouca expansão. Agora, com o uso incisivo do Facebook, uma situação como a dos Guarani-Kaiowá não passou batida. O compartilhamento de vídeos, informes e denúncias sobre o tema não nega isso. No entanto, há um problema: O discurso da indignação ou da comoção, que é, a meu ver, um pouco distante da crítica e a ela se confunde, ao mesmo tempo.
A indignação e a comoção movem as denúncias nas redes sociais. Foi isso o que moveu a luta virtual a favor dos Guaranis Kaiowás. Porém, acredito que isto não basta. É preciso uma ação não apenas comovida ou indignada, mas uma ação crítica. Embora a crítica muitas vezes instaure uma comoção ou indignação e vice-versa, quero dizer que a comoção ou indignação não precisa ser totalizante. Uma ação comovida no facebook, por exemplo, é passageira, porque os deslumbramentos e espantos com novas conjunturas chegam para substituir os antigos sentimentos e as antigas conjunturas. Já a crítica embasada, permanece.
Em relação à proposta de iniciativa virtual, não se trata de pensar que todos tem a obrigação de fazer de seus murais espaços para reivindicação de melhores condições aos índios. Nem todos querem usar seu facebook ou qualquer outra rede social com intenções de manifesto político. O ideal é apenas que a maioria, senão todos, partilhem a motivação para o reconhecimento, seja de modo ativo ou passivo, das possibilidades de contribuição do ciberespaço aos índios.
Agora esse é o momento pensarmos também sobre direitos em relação a outras situações tanto dos Guaranis, como dos outros indígenas. A própria Fundação Nacional do Índio (FUNAI), que se propõe proteger os índios é um vilão para eles, com certas negligências, como, por exemplo, o desfalque da distribuição de cesta básica durante meses para os Guarani-Kaiowá. O Serviço de Proteção ao Índio (SPI) chegou a fechar acordos com fazendeiros a favor da subjugação de índios para trabalharem em suas próprias terras roubadas e, em caso de trabalho improdutivo, serem expulsos. Foi o caso dos Xavante que tiveram terras roubadas pela família Ometto e a fazenda Suiá-Missú, no Mato Grosso do Sul. Recentemente a polícia federal matou um indígena Muduruku e deixou vários índios feridos. E, outro caso particular, mas não menos impactante: uma índia Guarani-Kaiowá foi estuprada por quatro pistoleiros há um só tempo. Enquanto se revezavam, mantinham a faca no seu pescoço. Ainda mais recente é o caso do cacique da aldeia Remanso Gwasu que, na segunda quinzena de janeiro, foi atingido por pistoleiros. Na década de 80 os Xikrin do Catete tiveram suas terras invadidas para a extração de madeira. As terras Yanomami estão sendo invadidas por garimpeiros. Só entre 1987 e 1992 foram mortos em média 1500 Yanomami. Sem contar a invasão do garimpo na Reserva Raposa Serra do Sol, uma área com várias etnias indígenas (dentre elas Wapixána Eingaripó, Macuxí, Taurepang).
Poderia me demorar aqui comentando praticamente ad ifinitum as atrocidades de ontem e de hoje... E, acrescento, os casos atuais são vários e faz-me recordar parte do enredo da obra Macbeth de Shakespeare, na qual Malcolm, o filho do rei morto, pergunta a Ross: “Qual a última desgraça?”, e ele lhe responde: “Referir a de há uma hora faz quem a narra ser vaiado; a cada instante se procria alguma nova”.
Parece importante acrescentar que o Brasil “não existe” para os índios. E as terras também não existem para eles como existem para nós. A noção de país é nossa. E de terra como propriedade privada também. O Brasil dos Índios é uma vastidão de natureza sagrada. As terras são sagradas e são deles não por uma finalidade de capital financeiro, mas por um princípio do cuidar daquilo que é sagrado. Deus dá a terra para o “homem branco” explorar. Os deuses dão a terra ao índio para que ele cuide dela.
Como pensou o antropólogo Lévi Strauss, os índios são iguais ao “povo civilizado”. A única diferença cabal é que os índios procuram preservar, e nós procuramos destruir. Eu acrescentaria que os índios vivem para contemplar, e nós vivemos para criar. Parece um condicionamento fortemente cultural e quase indelével. A questão é: como fazer essas forças existirem sem grandes problemas? Com a abertura para a convivência. Sem isso, não há como. Não há nada mais unível que criação e contemplação. O criar do homem branco não pode amedrontar o contemplar do homem índio. E o contemplar do homem índio deve encorajar a criação do homem branco a ser mais criativa e menos decadentista, no meu ver, o mesmo que progressismo.
Muito sangue, muito trabalho foi retirado dos índios para agora estarmos na nossa zona de conforto, apreciando as maravilhas de uma “sonhada civilização” (ou seria civilização sonhadora?).
Nós não viemos para apenas trabalhar ou ganhar a vida no Brasil. Viemos armados, prontos pra escravizar e maltratar vidas e tornar o país brasileiro, outrora rico, um país “miserável”, cheio de horror e ódio floreado com poesias portuguesas e estéticas cristãs.
Sejamos sensatos para assumir que todo o Brasil é um grande roubo de terra indígena. O Brasil é o maior furto geográfico da América Latina. Nós somos os intrusos. 
Nunca deixaremos de ser intrusos, enquanto ferirmos a terra. A exploração da terra foi por nós confundida com a subjugação da terra. Para reverter o nosso caráter opressor, nós, intrusos, precisamos nos unir aos índios. E isto não significa se tornar um deles. É muito mais: É reconhecê-los dentro de nós, porque nos colocamos dentro deles. É ver que isto não impede de sermos parte do outro universo que não o indígena, assim como não impede que os índios façam parte de seu modus vivendi natural. É preciso trocarmos a intrusão pelo princípio de coabitação. Eles devem nos ser sagrados porque nos receberam com inocência em suas terras sagradas. A bondade indígena não foi uma arma para a destrutiva atividade do homem branco, ao contrário, foi um trampolim. Não deveríamos ter saído às ruas em favor apenas dos Guarani-Kaiowá, mas por todos os indígenas. Ao lado disso poderíamos e podemos reescrever a história a partir da ação e da disposição de criticar a já existente história mal feita, como afirmava Brecht, escrita pelos vencedores.
E por falar história, não poderia deixar de fora que o problema da demolição do Museu do Índio, localizado na região norte do Rio de Janeiro, não é nada que deva nos causar tanto frisson. A memória nacional do índio nem mesmo alçou o fôlego necessário para existir. Isso é o que deveria ter sido, originariamente, inadmissível. Se um museu chega a ganhar a possibilidade de ser demolido por motivos pouco sustentados, isso é o resultado de como vem seguindo a miséria do reconhecimento histórico nacional do índio. Portanto, a notícia da demolição, que parece ser início de um problema, é apenas um de seus vastos desdobramentos.
Por fim, o que precisa ficar claro são as seguintes propostas, ainda parcas: 1. Amolar a crítica nacional do público que não está necessariamente vinculado às instâncias superiores de decisão; 2. Refletir, a partir de uma dada conjuntura as diversas outras conjunturas históricas e anteriores, de modo a se pensar melhor o aspecto global do problema, ou seja, não se aprisionar ao discurso da polêmica pela polêmica de um dado caso, mas se calcar no sentido histórico e político dele. 3. Reconstruir a memória do índio em nossa nação, desde o modo como a pensamos nos livros escolares ao modo como se vê a preservação da cultura nativa por instituições.
O processo da aplicabilidade de tais propostas, e agora me inspiro no pensamento de Marx, começa de baixo para cima, ou seja, da ação para o ideal. A rede social tem sido e deve ser, com mais força e criticidade, uma das importantes ferramentas para realizarmos isso. As instituições ideais, as leis ideais, as decisões éticas ideais devem se curvar ao que em um espaço virtual estivemos discutindo, ativa ou passivamente, e deve também atinar para a força de um povo que quer reconstruir, no real e no virtual, uma identidade merecida para essa terra por nós chamada, não por acaso, Brasil.

*Ana Monique Moura é mestre em filosofia pela UFPB, e autora do livro “Entre Kant, Filosofias & Arte”, Sal da Terra, 2012.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

MPF/MS denuncia 19 pessoas por homicídio de cacique guarani-kaiowá

 


A ação aconteceu no dia 18 de novembro de 2011 e resultou na morte do cacique Nízio Gomes e em lesões corporais ao indígena Jhonaton Velasques Gomes | Foto: Comunidade Guaiviry
 
Da Redação do SUL21
 
O Ministério Público Federal em Mato Grosso do Sul denunciou 19 pessoas a responderem como réus na Justiça por vários crimes relacionados à expulsão dos indígenas do acampamento Guaiviry, instalado em área mata nativa de propriedade rural, localizada no sul do estado mato-grossense.
A ação aconteceu no dia 18 de novembro de 2011 e resultou na morte do cacique Nízio Gomes e em lesões corporais ao indígena Jhonaton Velasques Gomes. Foram utilizadas ao menos seis armas de fogo calibre 12 na ação, ainda que com munição menos letal. Sete réus continuam presos.
O crime repercutiu internacionalmente e colocou em foco o “ambiente onde imperam o preconceito, a discriminação, a violência e o constante desrespeito a direitos fundamentais” dos 44 mil guarani-kaiowá e guarani-ñandeva que vivem em Mato Grosso do Sul, como descreve a denúncia do MPF.
Crimes
Dos 19 acusados, 3 respondem por homicídio qualificado, lesão corporal, ocultação de cadáver, porte ilegal de arma de fogo e corrupção de testemunha; 4, por homicídio qualificado, lesão corporal, ocultação de cadáver, porte ilegal de arma de fogo; e 12, por homicídio qualificado, lesão corporal, quadrilha ou bando armado e porte ilegal de arma de fogo.
As investigações revelaram que, após a ocupação da área de mata da fazenda pela comunidade indígena, em 1º de novembro de 2011, um grupo iniciou planejamento com o objetivo de promover a retirada violenta dos indígenas. Na madrugada de 18 de novembro, iniciou-se a ação. O objetivo era a expulsão violenta da comunidade indígena. Ao chegar na trilha que dá acesso ao interior do acampamento, o grupo abordou o cacique Nízio Gomes (55 anos), que ofereceu resistência. Iniciou-se intenso confronto, em que Nízio Gomes foi alvejado, resultando em sua morte. O corpo de Nízio Gomes até hoje não foi localizado, mesmo com a realização de buscas até em território paraguaio.
Homicídio apurado mesmo sem o corpo
Sobre a não localização do corpo ou dos restos mortais, para o MPF há provas e indícios suficientes do homicídio qualificado do cacique Nízio Gomes. Além das declarações dos réus e do depoimento de testemunhas, laudo pericial apontou a existência de vestígios de sangue em fragmentos de madeira e na terra do interior da trilha do Tekoha Guaiviry. Exame de DNA confirmou ser “perfil genético de indivíduo do sexo masculino, geneticamente relacionado à mãe e aos filhos de Nízio Gomes”.
Com informações do Ministério Público Federal em Mato Grosso do Sul

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Atos em defesa do povo Guarani-Kaiowá acontecem hoje em mais de 50 cidades no Brasil e no mundo

 

 
Confira o mapa com os locais e informações dos atos em apoio à luta dos Guarani e Kaiowá e a carta da Aty Guasu aos diversos movimentos sociais 
 
“Saiam às ruas, pintem os rotos, ocupem as praças,
ecoem o grito do nosso povo que luta pela vida, pelos territórios!”

Esta é uma carta das lideranças do Aty Guasu (Grande Assembleia) direcionada especialmente às diversas “mobilizações contra o genocídio do nosso povo Guarani e Kaiowá” previsto para o dia 09 de novembro em várias cidades do país e do mundo (para informações detalhadas clique aqui). Queremos agradecer por todas estas iniciativas de solidariedade em defesa das nossas terras e nossas vidas.

 
 
  Brasil de Fato

 Hoje somos 46 mil pessoas sobreviventes de um continuo e violento processo de extermínio físico e cultural acarretado principalmente pela invasão histórica de nossos territórios tradicionais (tekoha guasu) e por assassinatos de nossas lideranças e famílias. Por isso reafirmamos que o Estado Brasileiro é o principal responsável por este estado de genocídio, ora por participação, ora por omissão.
Nossa Aty Guasu é responsável nos últimos 35 anos pela organização política regional e internacional do nosso povo e por nossa luta na defesa e efetivação de nossos direitos fundamentais e constitucionais, de modo prioritário a retomada dos territórios tradicionais. Por esse motivo, nosso povo possui a maior quantidade de comunidades atacadas por pistoleiros e de lideranças assassinadas na luta pela terra do Brasil República. 
Por isso, através desta carta queremos unir nossas vozes a de todos vocês e promover o mesmo grito pela vida de nosso povo com as seguintes prioridades:

- A imediata demarcação de nossos territórios tradicionais e a desintrusão dos territórios já declarados e homologados.
- Que a Funai publique, ainda este ano, os relatórios de identificação dos territórios em estudo.
- Que diante do processo legítimo de retomada de nossos territórios, nosso povo não seja despejados, uma vez que roubaram nossas terras por primeiro e nos confinaram em pequenas reservas.
- Que o Conselho Nacional de Justiça - CNJ crie mecanismos para que as ações judiciais envolvendo nossos territórios sejam julgados com prioridade máxima, de modo, a não se arrastarem por anos nas instância do judiciário, enquanto nosso povo passa fome à beira das estradas em Mato Grosso do Sul.
- Que haja uma efetiva ação de segurança de nossas comunidades e lideranças em área de conflito e ameaçadas.
- Que os fazendeiros e pistoleiros assassinos de nosso povo sejam julgados e condenados.
- A imediata revogação da inconstitucional portaria 303 da Advocacia Geral da União e o fim das iniciativas do Congresso Nacional em destruir nossos direitos garantidos na Constituição Federal de modo unânime as PECs 215, 38, 71, 415, 257, 579 e 133. Não aceitaremos mudança constitucional!

Por fim, que todas as manifestações não se encerrem em 9 de novembro, mas que esta data seja o início de um contínuo engajamento da sociedade não-indígena na defesa da vida de nosso povo e de pressão sobre o governo.
Junto com todos vocês, nosso Povo é mais forte e venceremos o poder desumano do agronegócio explorador e destruidor de nossas terras. A ganancia deste sistema não vencerá a partilha de nossos povos.

Vamos continuar a retomada de todas as nossas terras tradicionais! Somos todos Guarani e Kaiowá! Muito obrigado pela SUA VOZ SAGRADA PROTETORA: “TODOS POR GUARANI E KAIOWÁ!”
 
Dourados, 7 de novembro de 2012 –
Conselho do Aty Guasu Guarani e Kaiowá.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

O grito Guarani-Kaiowá

Fernanda Melchiona - SUL21


A gravidade do caso dos 170 indígenas Guarani-Kaiowá no acampamento Pyelito Kue/Mbarakay, cidade de Iguatemi (MS) causou grande e necessária repercussão nas redes sociais e nas mídias alternativas diante da decisão da (in)Justiça de pedir reintegração de posse de terras que há muito deveriam estar demarcadas. Com a ameaça premente de desocupação, os indígenas lançaram uma nota denunciando o abandono, o fato de conseguirem se alimentar apenas uma vez ao dia, a violência dos fazendeiros e a decisão dramática de um povo de luta de resistir até as últimas consequências, com a morte coletiva.
Esta repercussão, os atos ocorridos em São Paulo e Botucatu, protestos organizados pela internet (com milhares de confirmações) em várias cidades brasileiras para o dia 09 de novembro, garantiram uma vitória parcial: a cassação da liminar de reintegração de posse concedida pela Justiça Federal em Naviraí. Certamente, uma vitória da resistência, do heroísmo dos Guarani-Kaiowá e do apoio de milhares de ativistas brasileiros e mundiais.
Os indígenas têm outra relação com a terra, que não é tida como uma mercadoria ou um bem para negócio, mas como a origem da vida, depositária dos ancestrais, raiz da constituição das tribos e suas tradições. Obviamente, uma visão absolutamente oposta à lógica do capitalismo e da propriedade privada. Por que, apesar do verdadeiro massacre reconhecido nos livros de História que passaram os indígenas desde a colonização brasileira, o governo federal não cumpre a Constituição (artigo 231, que garante ao Estado a demarcação e a proteção às terras indígenas)? Por que a omissão e a demora do Estado em garantir os estudos antropológicos necessários ao processo de demarcação? Enquanto os indígenas esperam, aumentam os conflitos e estes convivem com as ameaças permanentes de jagunços e pistoleiros do agronegócio. Além disso, a conivência de boa parte do poder Judiciário com a lógica rentista da terra também chama atenção, desde a decisão da Justiça de São Paulo no caso da desocupação de seis mil pessoas de Pinheirinho para garantir os interesses do especulador financeiro Naji Nahas até a determinação do STF da continuidade das obras de Belo Monte.
Todas as respostas anteriores têm relação com interesses econômicos, com o enorme peso que a elite do agronegócio tem no Congresso Nacional e também na base de sustentação do governo Dilma. Por exemplo, André Puccinelli, governador do MS que aparece nos documentos divulgados pelo Wikileaks como autor de deboches sobre as reivindicações indígenas, é do PMDB, partido que hoje, lamentavelmente, é eixo de poder junto ao PT, ocupando não apenas a Vice-presidência, mas também ministérios importantes como o Ministério de Minas e Energia (Edison Lobão), responsável por “brilhantes” projetos como Belo Monte, que além de atacar milhares de indígenas, coloca em risco dezenas de espécies, abrindo a possibilidade de seca na Volta Grande (área de 100 km na volta do Rio Xingu).
Marcelo Freixo – deputado estadual do PSOL no Rio de Janeiro – sempre diz que “quem diz que governa para todos, mente para alguém”. No governo de coalizão com os ruralistas, pagam os povos originários que, muito além do massacre sofrido há mais de 500 anos, seguem sendo dizimados diariamente. Segundo Fabio Nassif, em artigo na Carta Maior, o Mato Grosso do Sul tem os maiores índices de assassinatos de indígenas do Brasil (cerca de 500 assassinados nos últimos dez anos), enquanto o aumento do agronegócio exportador, baseado no plantio desenfreado de soja, é gritante.
Que a conquista da cassação da liminar de reintegração de posse fortifique a solidariedade e a capacidade de mobilização de todos em defesa dos direitos de demarcação dos indígenas e que a gravidade das denúncias em relação às péssimas condições de vida causadas pela morosidade do Estado, conivência de uma parte do Poder Judiciário e a violência das hordas armadas a mando dos ruralistas não sejam apenas encaradas como parciais, mas como parte das relações brutais capitalistas sobre os povos que verdadeiramente descobriram o Brasil. Viva os Guarani-Kaiowá!

sábado, 25 de agosto de 2012

''Uma hora ele é índio demais e atrapalha, outra hora ele é índio de menos, e não têm direitos''


“As cidades brasileiras sempre foram ambientes vetados aos indígenas”, declara a antropóloga Lúcia Helena Rangel





  
   "O índio nunca tem um lugar", afirma a antropóloga - Foto: Reprodução
“A cada ano voltamos a falar dos mesmos problemas”, diz a antropóloga Lúcia Helena Rangel, ao comentar os dados do Relatório de Violência 2011 contra as comunidades indígenas. Segundo ela, as situações de violência e descaso com os povos indígenas são recorrentes e se manifestam não só através dos conflitos territoriais, mas também em casos de racismo e na tentativa de suprimir os direitos das comunidades assegurados na Constituição Federal. “Estamos vendo ações cada vez mais fortes contra o direito às terras dos povos indígenas. A PEC 215 e a portaria 303 da AGU são exemplos disso. A cada dia aparece uma nova portaria ou um novo projeto de lei querendo modificar o artigo 231 da Constituição, ou modificar a aplicação dos direitos”, assinala em entrevista concedida à IHU On-Line por telefone.
De acordo com a antropóloga, como as mudanças propostas contra os direitos indígenas sempre “esbarram no princípio constitucional”, surge um “movimento no âmbito do Legislativo para modificar o princípio constitucional”. Para ela, as elites brasileiras não querem reconhecer os direitos indígenas e criam indisposições entre a população e as comunidades, gerando um discurso racista, especialmente diante dos indígenas que vivem nas cidades. “O Estado não demarca as terras e não quer assumir a população que vive nas cidades. Quem vai para a cidade não vai de modo forçado, obviamente, mas quando analisamos a situação das terras – no Sul, no Sudeste e no Nordeste –, observamos que a quantidade de terras demarcadas não suporta a população indígena dessas regiões”, aponta. E dispara: “Num país mestiço como o nosso, onde todo mundo é misturado, os índios não podem ser misturados. Uma hora ele é índio demais e atrapalha, outra hora ele é índio de menos, e não têm direitos. Então, o índio nunca tem um lugar”.
Lucia Helena Rangel é doutora em Antropologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP com a tese Os Jamamadi e as armadilhas do tempo histórico. É professora do Departamento de Antropologia da Faculdade de Ciências Sociais e do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Também é assessora do Conselho Indigenista Missionário – Cimi (Regional Amazônia Ocidental) e do Cimi Nacional.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são os dados mais alarmantes do Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil? Comparando com os relatórios anteriores, o que destaca?
   
   
A antropóloga Lúcia Helena Rangel no lançamento do relatório de 2010
Foto: Renato Araújo/ABr

Lucia Helena Vitalli Rangel – É difícil mencionar o que é mais alarmante, porque algumas situações se repetem a cada ano, com variações. Assim, em determinados momentos, o desmatamento chama mais atenção, em outros, a saúde etc. No ano de 2011, registramos um quadro grave, que já tinha sido destacado em anos anteriores e que diz respeito à situação da saúde dos povos do Vale do Javari, no estado do Amazonas. O Vale do Javari é uma área muito grande, demarcada, e que abriga diversos povos, sendo que muitos deles possuem comunidades isoladas no meio do mato, com os marubos, corubos, os matis, os canamari. Entretanto, as populações que vivem na beira dos rios estão sofrendo de verdadeiras epidemias de malária, de hepatite e das doenças aéreas: gripes, tuberculose, pneumonia. Nessas comunidades, a mortalidade infantil é muito alta. As lideranças indígenas relatam que nos últimos dez anos houve 300 mortes. Não temos como saber, de fato, qual é o tamanho dessas populações, mas vamos supor que seja algo em torno de três a quatro mil pessoas. Nesse caso, 300 mortes em 10 anos é muito.
Outro caso grave, identificado através do relatório, é a situação do povo guarani kaiowá do Mato Grosso do Sul, onde há uma taxa de homicídios de cem mortos por cem mil pessoas. Essa taxa é maior do que a do Iraque, e quatro vezes maior do que a taxa nacional. O Conselho Indigenista Missionário – Cimi já denunciou os casos de genocídio, e essas denúncias já chegaram à ONU, a organismos internacionais, e várias delegações já foram ao Mato Grosso do Sul para constatar tal situação. Entretanto, não se toma nenhuma providência. Outro problema muito complicado é o desmatamento. Este ano destacamos violações ao patrimônio indígena, depredação, retirada ilegal de recursos naturais, incêndios criminosos etc.
Comparando os dados deste relatório com os relatórios anteriores, não temos como dizer se a situação dos indígenas melhorou ou piorou. Às vezes piora, às vezes melhora, mas isso não significa nenhuma tendência nem de melhorar, nem de piorar. A cada ano voltamos a falar dos mesmos problemas.

Qual a situação dos xavantes no Mato Grosso? Os conflitos também estão atrelados à disputa pela terra?

No caso dos xavantes, a situação mais complicada é a da terra indígena Marãiwatsèdè. Essa terra está foi invadida por fazendeiros e está em litígio há muitos anos. As comunidades não se conformaram com as ocupações indevidas e tentam reaver o seu território na integralidade. Além de terem acesso a pouca terra, eles são pressionados pelo desmatamento oriundo da pecuária, do agronegócio, da soja, das queimadas, do envenenamento de rios etc. Além disso, a mortalidade infantil entre os xavantes foi alarmante nos anos de 2009 e 2010.
Há uma relutância da Funai diante destes conflitos, porque o órgão cria projetos, faz levantamentos, identifica as terras que devem ser demarcadas, mas não conclui tais projetos, e mesmo quando há conclusão, quando os relatórios são publicados, não há continuidade nas ações. Tanto no Rio Grande do Sul como em Santa Catarina há estradas em que se veem placas indicando “Cuidado, indígenas na estrada”, como se eles fossem animais selvagens.

Quais são as etnias que mais sofrem por causa da violência e dos conflitos de terra?

No extremo sul da Bahia, o povo pataxó tem sofrido há décadas pressões e violências brutais, tais como assassinatos, emboscadas em estradas, tiroteios, incêndios de escolas, de casas, de roçados por parte de fazendeiros que não querem admitir que as terras dos pataxós e dos tupinambás, que vivem nessa região, sejam demarcadas. Eles afirmam que o governo do estado da Bahia concedeu as terras para eles e, portanto, têm mais direitos do que os índios. Entretanto, ninguém leva em conta que o próprio governo da Bahia foi o primeiro a violar os direitos indígenas ao conceder as terras a um fazendeiro qualquer, considerando que muitos deles nem eram daquela região.
Outras etnias vítimas da violência são os guarani e os kaingang, no Sul; os guarani kaiowá, no Mato Grosso do Sul, os guajajara e os awá-guajá, no Maranhão; os turucá, em Pernambuco e no Norte da Bahia. Outra situação interessante de apontar é o caso de Roraima, da terra indígena Raposa Serra do Sol, onde vivem os povos uapixana, macuxi, e outros. Ali havia registros de violência brutal durante muitos anos. A luta foi longa, mas finalmente em 2009, quando o Supremo Tribunal Federal – STF corroborou a homologação que já havia sido feita pelo então presidente da República, concedendo aos indígenas a terra, os relatos de violência, em 2011, praticamente sumiram dos relatórios. Isso prova que a situação dos indígenas melhora se as terras forem demarcadas.
Por mais que haja posições contrárias de alguns senadores e deputados, que dizem que os índios de Roraima vivem nas cidades no meio do lixão, devemos lembrar que essa situação é muito anterior à demarcação. O que nós comparamos não é a situação dos indígenas que vivem na cidade de Boa Vista, mas a situação de violência dentro da terra indígena Raposa Serra do Sol.

A disputa pela terra é a principal razão pelos conflitos entre indígenas e não índios? Que outros problemas são gerados em decorrência da não demarcação das terras?

O pano de fundo é a questão da terra. Entretanto, não podemos reduzir tudo a essa questão. Mas inúmeros problemas vêm daí, porque quando uma terra não está reconhecida, os índios não têm acesso à assistência de saúde, não recebem programas de educação escolar, não recebem insumos agrícolas, projetos de alimentação etc. Então, trata-se de uma questão fundiária, de disputa pelas terras indígenas e de não reconhecimento dos direitos indígenas às suas terras. Os indígenas têm um modo de vida baseado na relação com a terra, com o território, com a natureza. E essa relação é a base da vida deles.
No Mato Grosso do Sul, cerca de dez reservas indígenas de guarani kaiowá foram demarcadas. A Funai levou todas essas comunidades para dentro dessas terras, e elas viraram um barril de pólvora por causa da superlotação. Há conflitos internos entre comunidades que não se entendem; há casos de alcoolismo, falta de perspectiva etc. Além disso, eles não conseguem trabalhar a terra porque não tem espaço para isso. Então há consequências graves por causa da falta de demarcação das terras.

Como vê o projeto desenvolvimentista brasileiro, que propõe a expansão do parque energético em áreas ocupadas por comunidades indígenas e tradicionais, como o caso do Xingu e do Tapajós? Como ficam os povos indígenas diante desses projetos?

Cada rio da bacia amazônica tem um tipo de potencial hidrelétrico, e são todos discutíveis, porque alguns rios têm um potencial maior, outros, menor. O quanto isso vai beneficiar a produção econômica, as cidades brasileiras, a população que vive nas cidades, também é uma coisa a ser discutida, porque os mais prejudicados com essas construções, com esses empreendimentos, são as populações ribeirinhas e as populações indígenas.
No rio Madeira, as hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio estão sendo feitas em uma região onde há comunidades indígenas isoladas, que ainda não fizeram um contato regular com os agentes do Estado brasileiro e a sociedade. O que vai acontecer com essa gente, nós não sabemos. Por onde eles vão escapar? Eles vão morrer ou não? Vão pegar epidemia ou não? Não há como saber.

Hidrelétricas

Em Altamira, onde está sendo construída a hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, vive uma população indígena que já tem contato regular com a sociedade. Ocorre que essa população da região da Volta Grande já foi deslocada em momentos anteriores. Então, trata-se de uma população que tem essa memória, que sabe o quanto custa um empreendimento desses. Quando a Transamazônica foi construída, essa população não foi ouvida, os impactos não foram avaliados corretamente, e o próprio Ibama reconhece isso.
Diante de empreendimentos como Belo Monte, os empreendedores e os representantes do Estado dizem para a população de Altamira o seguinte: “Os indígenas não querem que vocês tenham acesso à energia”. Então cria um conflito que é insuportável.
No Tapajós, acontece a mesma coisa. O complexo hidrelétrico de Tapajós vai alagar terras indígenas. Prioritariamente, quase todas as hidrelétricas que foram construídas nesse plano de desenvolvimento afetaram os povos indígenas, a exemplo de Itaipu, Tucuruí entre outras.
Por causa da transposição do rio São Francisco, por exemplo, o povo Truká foi afetado pela transposição do rio, porque o canal dividiu a terra deles ao meio, e usou parte do território para instalar canteiros de obras. Os próprios indígenas denunciam e reclamam das consequências, como o aumento do alcoolismo, da prostituição, da falta de emprego e da diminuição das terras agriculturáveis. Nesse caso do rio São Francisco, transpõe-se o rio para irrigar terras, mas quem está na beira do canal perde área cultivável. Quer dizer, trata-se de um contrassenso da obra ou de uma falta de respeito pelos indígenas que viviam ali. Por que o canal tem que cortar a terra ao meio?

   
   
"o artigo 231 da Constituição reconhece o direito dos
indígenas às suas terras", afirma a antropóloga - Foto: Reprodução
Os índios têm clareza dessa situação, das implicações das obras? No caso de Belo Monte, por exemplo, algumas etnias estão divididas. Eles acabam sendo cooptados pelo Estado?

É sempre assim. Têm aqueles que, em troca de algum dinheiro ou algum benefício, trabalham para que a obra se realize. A consequência disso, depois da obra pronta, é um conflito interno muito grande, porque aqueles que se beneficiaram não dividem o benefício com toda a comunidade.
Um exemplo são os indígenas que vivem próximo ao rio Tocantins. O povo xerente foi afetado pela hidrelétrica do Lajeado, que teve a barragem construída no “pé” da terra deles. À época, algumas lideranças se apressaram e quiseram convencer todo mundo de que eles deveriam aceitar o dinheiro da mitigação do impacto – e a mitigação do impacto nessas obras acaba sendo sempre o dinheiro. Então, quando eles aceitam, recebem um valor monetário determinado, para implementarem projetos dentro da área. Mas com esse valor, criam uma associação, constroem uma sede na cidade, compram veículos (tanto ambulâncias como camionetes e caminhões), computadores, telefones. Posteriormente, tudo isso gera uma fase de insatisfação e reclamações. Aumentam os conflitos entre as comunidades que vivem dentro da mesma área, porque umas ganharam mais dinheiro, outras ganharam menos benefícios. Claro, não cabe à empresa que vai construir a hidrelétrica resolver esse problema, mas a atuação dos agentes do Estado podia levar em conta essas coisas, porque elas são conhecidas.
Agora, quando alguém oferece dinheiro para as comunidades, todo mundo fica enlouquecido pelo dinheiro. Então, esse é um problema muito sério e muito complicado. Quem sou eu, por exemplo, uma professora e antropóloga, para dizer a um indígena que, se ele aceitar esse dinheiro, posteriormente enfrentará muitos problemas? Trata-se de outro processo de conscientização, de análise, que demandaria um esforço diferente no tratamento dessas questões com os indígenas. A pressa em propor essas formas de mitigação é que faz com que alguns indígenas também se sintam atraídos e aceitem, de “mão beijada”, coisas que trarão consequências graves para a sua comunidade.

De acordo com os dados do Cimi, a homologação das terras indígenas diminuiu drasticamente de 145 registros no governo Fernando Henrique Cardoso para 79 no governo Lula e apenas três no governo Dilma. Quais as razões dessa redução? O que essa mudança na política governamental sinaliza?

Cada governo enfrenta um tipo de pressão. Da gestão Lula para cá, o governo tem cedido demais às pressões dos fazendeiros, das empreiteiras, daqueles interessados ou nos grandes projetos, nas grandes obras ou no agronegócio. O governo faz alianças políticas e depois tem que dar a contrapartida. Isso é evidente, no caso do Mato Grosso do Sul, porque há uma pressão muito forte do governo estadual, dos empresários do agronegócio. Até o judiciário, no Mato Grosso do Sul, é contra os indígenas, sendo que existem leis, que há uma Constituição Federal. Mas ninguém respeita.

E ainda são publicadas a portaria 303 da AGU, a PEC 215...

Exatamente. Estamos vendo ações cada vez mais fortes contra o direito às terras dos povos indígenas. A PEC 215 e a portaria 303 da AGU são exemplos disso. A cada dia aparece uma nova portaria ou um novo projeto de lei querendo modificar o artigo 231 da Constituição, ou modificar a aplicação dos direitos.
Outro exemplo foram as discussões em torno da mudança do Código Florestal, que acabou sendo aprovado na Câmara Federal através dos piores princípios. Por exemplo, em 2010 as discussões das mudanças do Código Florestal desencadearam um verdadeiro vandalismo. No Mato Grosso, as terras indígenas foram afetadas pelo desmatamento de uma forma violenta. Segundo a Polícia Federal, cem terras indígenas foram afetadas, além de 20 unidades de conservação.

Como compreender tais portarias diante do artigo 231 da Constituição Federal?

A Constituição Federal é uma “salva guarda”, ela resguarda os direitos cidadãos. Então, o artigo 231 da Constituição reconhece o direito dos indígenas às suas terras, a ocupação originária etc. Portanto, o reconhecimento do direito é constitucional, e é o princípio mais importante. Agora, a aplicabilidade do direito não depende somente da Constituição Federal; há de ter uma regulamentação. No caso dos povos indígenas, a regulamentação acontece através do Estatuto do Índio. Depois de 1988, quando a Constituição foi promulgada, deu-se início à discussão de elaborar um novo Estatuto do Índio, porque o Estatuto que vigora até hoje é de 1970.

Que aspectos do Estatuto do Índio deveriam ser atualizados?

Teria de fazer um novo estatuto, porque o vigente foi baseado em outros princípios, como o princípio da integração do índio à comunhão nacional, o princípio de que as terras indígenas devem ser protegidas ou administradas pela Funai e o princípio de que, em nome da segurança nacional, as terras indígenas podem ser violadas. Entretanto, o direito Constitucional de 1988 modifica esse princípio, como modifica também o princípio da tutela. Então, há de ter um novo estatuto, porque o atual foi elaborado durante a ditadura militar.
Há mais de 20 anos uma nova proposta de Estatuto do Índio tramita no Congresso Nacional e na Câmara Federal. O novo texto nunca foi votado, porque primeiro os deputados querem votar a Lei da Mineração, a mudança do Código Florestal, para tirar os direitos indígenas, e depois fazer o Estatuto do Índio. Mas como as mudanças sempre esbarram no princípio constitucional, há outro movimento no âmbito do Legislativo, para modificar o princípio constitucional. Não há meio das nossas elites reconhecerem os direitos indígenas e, assim, começam a inventar coisas. Por exemplo, no Mato Grosso do Sul inventaram que os índios queriam 600 milhões de hectares, área maior do que o estado do Mato Grosso do Sul. Mas eles não querem 600 milhões de hectares; querem o pedaço que lhes cabem. Essa distorção fomenta a discórdia, criam uma indisposição entre a população local e os indígenas. Ações como essa geram racismo, preconceito. Parece que não há nem um pouco de vergonha em manifestar isso contra os indígenas.
Além disso, outros dizem que alguns índios não são mais índios, porque têm cabelo crespo, moram na cidade, são “misturados”, quer dizer, eles têm menos direitos do que os outros. Num país mestiço como o nosso, onde todo mundo é misturado, os índios não podem ser misturados. Uma hora ele é índio demais e atrapalha, outra hora ele é índio de menos e não tem direitos. Então, o índio nunca tem um lugar.

De acordo com os dados do censo, existem 305 etnias indígenas no país. Como estão os estudos atuais sobre essas culturas? Há conhecimento desta diversidade?

Para os antropólogos, essa diversidade é uma realidade, e como tal é considerada. Entretanto, nem os antropólogos possuem este número, porque só o IBGE consegue fazer um censo nacional e ter esse alcance. O que os pesquisadores conseguem nas universidades, nos seus laboratórios de pesquisa, é sistematizar os dados. Foi importante o IBGE publicar essa informação de 305 etnias. Não sei exatamente como é a definição de etnia do IBGE, mas são muito provavelmente relativas à autodenominação da comunidade ao falar o nome do povo. Supunha-se que fossem 280 etnias, mas o IBGE fala que é 305. É um dado mais preciso e importante.

O que os dados do censo revelam sobre os indígenas brasileiros? Algum dado lhe surpreendeu?
No censo do ano 2000, havia um dado da população autodeclarada indígena. Desses, 52% viviam em cidades e 48% viviam nas terras indígenas, em aldeias. Então, no censo de 2010, inverteu o número. A população indígena que vive na cidade está em volta de 47% e 48% e a população que vive em aldeia está em torno de 52% e 53%. O dado demonstra que a população indígena que vive em cidades é muito grande, e o Estado, através da Funai, reluta em reconhecer essas comunidades como sendo comunidades indígenas, porque não quer lhes atribuir direitos. Então, aqueles índios que vivem na cidade não são considerados indígenas. Portanto, estão excluídos do artigo 231. O Estado não demarca as terras e não quer assumir a população que vive nas cidades. Quem vai para a cidade não vai de modo forçado, obviamente. Quando, porém, analisamos a situação das terras – no Sul, no Sudeste e no Nordeste –, observamos que a quantidade de terras demarcadas não suporta a população indígena dessas regiões. Então, a migração é um recurso para as comunidades.
Além disso, as cidades brasileiras sempre foram ambientes vetados aos indígenas. Quando iam para as cidades, eles eram presos, escorraçados, expulsos. Quando iam ao médico, iam e voltavam para casa escoltados pela Funai. A Constituição, bem ou mal, é democrática, e nesse sentido abriu direitos que não estavam previstos, como a ampliação do direito de ir e vir, que é um direito civil do cidadão. Então, a conquista do ambiente humano também é uma conquista para os indígenas, que eles não têm mais que ficar escondidos nos fundos das fazendas, trabalhando quase como escravos, visto que não possuem terra e não têm lugar para onde ir. Então, há uma série de movimentos dessa população que vão configurando também novos perfis. Nesse sentido, os dados do IBGE são muito importantes para pensarmos essas questões e para aprofundarmos em nossas pesquisas.

sábado, 11 de agosto de 2012

Publicado Censo 2010: Brasil tem 900 mil indígenas de 305 etnias, que falam 274 idiomas

110812 indigenas brasilBrasil - IBGE - Reproduzimos o comunicado difundido polo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, que resume o mais recente censo, correspondente a 2010.

No Censo 2010, o IBGE aprimorou a investigação sobre a população indígena no país, investigando o pertencimento étnico e introduzindo critérios de identificação internacionalmente reconhecidos, como a língua falada no domicílio e a localização geográfica. Foram coletadas informações tanto da população residente nas terras indígenas (fossem indígenas declarados ou não) quanto indígenas declarados fora delas. Ao todo, foram registrados 896,9 mil indígenas, 36,2% em área urbana e 63,8% na área rural. O total inclui os 817,9 mil indígenas declarados no quesito cor ou raça do Censo 2010 (e que servem de base de comparações com os Censos de 1991 e 2000) e também as 78,9 mil pessoas que residiam em terras indígenas e se declararam de outra cor ou raça (principalmente pardos, 67,5%), mas se consideravam "indígenas" de acordo com aspectos como tradições, costumes, cultura e antepassados.
Também foram identificadas 505 terras indígenas, cujo processo de identificação teve a parceria da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) no aperfeiçoamento da cartografia.
Essas terras representam 12,5% do território brasileiro (106,7 milhões de hectares), onde residiam 517,4 mil indígenas (57,7% do total). Apenas seis terras tinham mais de 10 mil indígenas, 107 tinham entre mais de mil e 10 mil, 291 tinham entre mais de cem e mil e em 83 residiam até cem indígenas. A terra com maior população indígena é Yanomami, no Amazonas e em Roraima, com 25,7 mil indígenas.
Foi observado equilíbrio entre os sexos para o total de indígenas (100,5 homens para cada 100 mulheres), com mais mulheres nas áreas urbanas e mais homens nas rurais. Porém, percebe-se um declínio no predomínio masculino nas áreas rurais entre 1991 e 2010, especialmente no Sudeste (de 117,5 para 106,9) Norte (de 113,2 para 108,1) e Centro-Oeste (de 107,4 para 103,4).
A pirâmide etária indígena tem a base larga e vai se reduzindo com a idade, em um padrão que reflete suas altas taxas de fecundidade e mortalidade, bastante influenciadas pela população rural. Em 2010, havia 71,8 indígenas menores de 15 anos ou de 65 anos ou mais de idade para cada 100 ativos. Já para os não indígenas, essa relação correspondia a 45,8 inativos para cada 100 em idade provável de atividade.
Na área rural, a proporção de indígenas na faixa etária de 0 a 14 anos (45,0%) era o dobro da área urbana (22,1%), com o inverso acontecendo na faixa de 65 anos ou mais (4,3% na rural e 7,0% na urbana). A pirâmide etária dos indígenas residentes fora das terras indígenas indica baixa fecundidade e mortalidade. Já para os indígenas residentes nas terras, a pirâmide etária ainda é resultante de uma alta natalidade e mortalidade. Metade da população indígena tinha até 22,1 anos de idade. Nas terras indígenas, o índice foi de 17,4 anos e, fora delas, 29,2 anos.
O Censo 2010 investigou pela primeira vez o número de etnias indígenas (comunidades definidas por afinidades linguísticas, culturais e sociais), encontrando 305 etnias, das quais a maior é a Tikúna, com 6,8% da população indígena. Também foram identificadas 274 línguas indígenas. Dos indígenas com 5 anos ou mais de idade 37,4% falavam uma língua indígena e 76,9% falavam português.
Mesmo com uma taxa de alfabetização mais alta que em 2000, a população indígena ainda tem nível educacional mais baixo que o da população não indígena, especialmente na área rural. Nas terras indígenas, nos grupos etários acima dos 50 anos, a taxa de analfabetismo é superior à de alfabetização.
Entre os indígenas, 6,2% não tinham nenhum tipo de registro de nascimento, mas 67,8% eram registrados em cartório. Entre as crianças indígenas nas áreas urbanas, as taxas são próximas às da população em geral, ambas acima dos 90%.
A análise de rendimentos comprovou a necessidade de se ter um olhar diferenciado sobre os indígenas: 52,9% deles não tinham qualquer tipo de rendimento, proporção ainda maior nas áreas rurais (65,7%); porém, vários fatores dificultam a obtenção de informações sobre o rendimento dos trabalhadores indígenas: muitos trabalhos são feitos coletivamente, lazer e trabalho não são facilmente separáveis e a relação com a terra tem enorme significado, sem a noção de propriedade privada.
Em 2010, 83,0% das pessoas indígenas de 10 anos ou mais de idade recebiam até um salário mínimo ou não tinham rendimentos, sendo o maior percentual encontrado na região Norte (92,6%), onde 25,7% ganhavam até um salário mínimo e 66,9% eram sem rendimento. Em todo o país, 1,5% da população indígena com 10 anos ou mais de idade ganhava mais de cinco salários mínimos, percentual que caía para 0,2% nas terras indígenas.
Somente 12,6% dos domicílios eram do tipo "oca ou maloca", enquanto que, no restante, predominava o tipo "casa". Mesmo nas terras indígenas, ocas e malocas não eram muito comuns: em apenas 2,9% das terras, todos os domicílios eram desse tipo e, em 58,7% das terras, elas não foram observadas.
Essas e outras informações podem ser vistas na publicação "Censo 2010: Características Gerais dos Indígenas – Resultados do Universo", que pode ser acessada no link:
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/caracteristicas_gerais_indigenas/default_caracteristicas_gerais_indigenas.shtm

Terras indígenas em 2010 correspondiam a 12,5% do território nacional

No âmbito do Censo 2010, as 505 terras indígenas reconhecidas compreendiam 12,5% do território brasileiro (106.739.926 hectares), com significativa concentração na Amazônia Legal. Foram consideradas "terras indígenas" as que estavam em uma de quatro situações: declaradas (com Portaria Declaratória e aguardando demarcação), homologadas (já demarcadas com limites homologados), regularizadas (que, após a homologação, foram registradas em cartório) e as reservas indígenas (terras doadas por terceiros, adquiridas ou desapropriadas pela União). No momento do Censo, o processo de demarcação encontrava-se ainda em curso para 182 terras.
Em 2010, o Brasil tinha seis terras indígenas com mais de 10 mil indígenas, 107 entre mais de mil e 10 mil, 291 entre mais de cem e mil e 83 com até cem indígenas. A terra com maior população indígena é Yanomami, localizada no Amazonas e em Roraima, com 25,7 mil indígenas, 5% do total.
Cartograma – Número de terras indígenas e superfície, segundo a situação fundiária
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78,9 mil pessoas se declararam de outra cor ou raça, mas se consideravam indígenas

A população indígena residente no Brasil contabilizada pelo quesito cor ou raça foi de 817,9 mil pessoas. Esse é o número usado pelo IBGE para comparações com os Censos 1991 e 2000. Além delas, foram também agregadas ao grupo as pessoas que residiam em terras indígenas e se declararam de outra cor ou raça, mas se consideravam indígenas de acordo com tradições, costumes, cultura e antepassados, entre outros aspectos. Esse contingente somou 78,9 mil pessoas (um acréscimo de 9,7% sobre o total de indígenas do quesito cor ou raça), resultando em um total de 896,9 mil indígenas em todo o país, dos quais 36,2% residiam em área urbana e 63,8% na área rural. Entre as regiões, o maior contingente ficava na região Norte, 342,8 mil indígenas e o menor no Sul, 78,8 mil. Um total de 517,4 mil (57,7% do total nacional) residiam em terras indígenas, dos quais 251,9 mil (48,7%) estavam na região Norte. Considerando a população indígena residente fora das terras, a maior concentração foi encontrada no Nordeste, 126,6 mil.
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Pardos eram 67,5% das pessoas de outra cor ou raça que se consideravam indígenas

Nas 488 terras indígenas onde foi captada informação sobre a população residente, as pessoas que se declararam como indígena no quesito cor ou raça, 438,4 mil, correspondiam a 77,2%. As que não se declararam, mas se consideravam indígenas, eram 78,9 mil (13,9%). Também havia 8,8% de pessoas residentes nas terras que não se declararam e não consideravam indígenas e sem declaração. Entre as regiões, o Nordeste apresentou a maior proporção de pessoas que não se declararam, mas se consideravam indígenas, 22,7%. No Ceará, esse percentual chegou a 45,5%.
A maior proporção da população residente em terras indígenas que se declarou de outra cor ou raça, mas se considerava indígena, foi de pardos (67,5%). A proporção se repetiu em quase todas as regiões e chegou a 74,6% no Norte. Só no Centro-Oeste os pardos ficaram em segundo lugar, com 33,0%, enquanto os brancos concentravam 60,4%.

População indígena na área rural tem predomínio masculino, mas observa-se declínio

Em 2010, a razão de sexo (número de homens para cada 100 mulheres) da população indígena se manteve estável em relação a 2000 (100,5 e 99,0, respectivamente), indicando equilíbrio entre os sexos. Na análise por situação de domicílio, a razão de sexo segue o padrão da população não indígena: mais mulheres nas áreas urbanas e mais homens nas áreas rurais. A área urbana da região Norte foi a única que apresentou tendência de crescimento masculino (de 89,4 homens para cada 100 mulheres em 1991 para 95,9 em 2010). Já na área rural percebe-se um declínio no predomínio masculino, especialmente no Sudeste (de 117,5 para 106,9) Norte (de 113,2 para 108,1) e Centro-Oeste (de 107,4 para 103,4). Na comparação das terras indígenas com outras áreas, observou-se predomínio masculino em 341 terras (70% do total). A TI Paraná do Paricá (AM) apresentou a menor razão de sexo: apenas 52,9 homens para cada 100 mulheres.

Indígenas nas áreas rurais e em terras indígenas são predominantemente jovens

A pirâmide etária indígena tem a base larga e vai se reduzindo com a idade. Esse padrão reflete suas altas taxas de fecundidade e mortalidade, influenciadas pela população rural. Entre 2000 e 2010, a proporção de indígenas entre 0 a 14 anos de idade passou de 32,6% para 36,2%, enquanto o grupo etário de 15 a 64 anos de idade foi de 61,6% para 58,2%.
A razão de dependência (quociente entre as populações inativas, de 0 a 14 anos e com 65 ou mais anos de idade, e a população em idade ativa, entre 15 e 64 anos) mostrou que, em 2010, havia 71,8 inativos para cada 100 ativos. Para os não indígenas, essa relação era de 45,8 inativos para cada 100 ativos. O índice de envelhecimento populacional indígena (quantidade de pessoas de 65 anos ou mais para cada 100 de 0 a 14 anos) de 15,5 idosos para cada 100 jovens, corresponde à metade do da população não indígena (30,8).
Na área rural, a proporção de indígenas na faixa etária de 0 a 14 anos (45,0%) era o dobro da área urbana (22,1%), com o inverso acontecendo na faixa de 65 anos ou mais (4,3% na rural e 7,7% na urbana). Entre as regiões, a tendência e as proporções foram as mesmas para as crianças e adolescentes na área rural. Já na área urbana, no Sudeste, o contingente de 0 a 14 anos foi de 14,6%, menos da metade da região Norte (33,2%).
Os indígenas residentes fora das terras indígenas acompanhavam o padrão da estrutura por sexo e idade da população não indígena, com baixa fecundidade e mortalidade, e, também, uma razão de dependência baixa e com idade mediana alta. Em 93,6% das terras, a população até 24 anos ultrapassava os 50%. Em seis terras, não foram encontrados indígenas com mais de 50 anos de idade: Itatinga (RJ), Maraã Urubaxi (AM), Sepoti (AM), Batovi (MT), Baía do Guató (MT) e Mundo Verde/Cachoeirinha (MG). A maior proporção de indígenas de 50 anos ou mais (42,9%) foi encontrada na TI Mapari (AM). Metade da população indígena total tinha até 22,1 anos. Nas terras indígenas, esse índice foi de 17,4 anos e, fora delas, 29,2 anos. Na comparação entre homens e mulheres, a população total e a que residia fora das terras indígenas repetiram o padrão dos não indígenas, com a idade mediana das mulheres ligeiramente mais alta do que a dos homens (21,8 anos para eles e 22,3 para elas no geral, 28,3 anos para eles e 30,2 para elas fora das terras); nas terras, foram 17,7 anos para eles e 17,0 para elas.

Analfabetismo chega a 33,4% para os indígenas de 15 anos ou mais em áreas rurais

Entre 2000 e 2010, a taxa de alfabetização dos indígenas com 15 anos ou mais de idade (em português e/ou no idioma indígena) passou de 73,9% para 76,7%, aumento semelhante ao dos não indígenas (de 87,1% para 90,4%). Porém, entre os indígenas, em 2010, a taxa de alfabetização masculina (78,4%) era superior à feminina (75,0%). Na área rural, a taxa de analfabetismo chegou a 33,4%, sendo 30,4% para os homens e 36,5% para as mulheres. Já nas terras indígenas, 67,7% dos indígenas de 15 anos ou mais de idade eram alfabetizados. Para os indígenas residentes fora das terras, a taxa de alfabetização foi 85,5%. Tanto dentro das terras quanto fora delas os homens tinham taxas de alfabetização superiores às das mulheres. Nas terras, as gerações mais jovens eram mais alfabetizadas que a população acima dos 50 anos, cujas taxas de analfabetismo (52,3% para o grupo entre 50 e 59 anos e 72,2% para 60 ou mais anos) eram maiores que as de alfabetização (47,7% e 27,8%, respectivamente).

Na área rural, 38,4% das crianças indígenas não tinham certidão de nascimento

A proporção de indígenas com registro de nascimento (67,8%) era menor que a de não indígenas (98,4%), 27,8% dos indígenas tinham Registro Administrativo de Nascimento e Óbito de Índios (RANI), feito pela FUNAI, e 7,4% deles não tinham qualquer tipo de registro. As crianças indígenas residentes nas áreas urbanas tinham proporções de registro em cartório (90,6%) mais próximas às dos não indígenas (98,5%). Mas, o número de crianças residentes na área rural é 3,5 vezes maior do que na área urbana e a proporção de registrados é significativamente menor (61,6%). Na área rural, 7,6% das crianças indígenas de até 10 anos não tinha qualquer tipo de registro. Nas terras indígenas, 63,0% dos indígenas com até 10 anos eram registrados em cartório e, fora delas, eram 87,5%. O percentual de crianças com o RANI dentro das terras (27,8%) era três vezes superior ao das crianças residentes fora (8,7%). Já o percentual de crianças não indígenas residentes nas terras, registradas em cartório, chegou a 96,2%. Os indígenas que não tinham nenhum tipo de registro nas terras indígenas correspondiam a 7,4% e os não indígenas, 2,4%.

Censo 2010 contou 305 etnias indígenas

O Censo 2010 investigou, pela primeira vez, o pertencimento étnico, sendo “etnia” a comunidade definida por afinidades linguísticas, culturais e sociais. Foram identificadas 305 etnias a partir das pessoas que se declararam ou se consideraram indígenas. Dentro das terras indígenas, foram contadas 250 e, fora delas, 300.
A maior concentração de etnias fora das terras indígenas ocorreu para etnias com até 50 pessoas e não se observou etnia com população acima de 10 mil indígenas. Já dentro das terras o maior agrupamento foi na classe de população entre 251 e 500 indígenas. Do total de indígenas declarados ou considerados, 672,5 mil (75%) declararam o nome da etnia, 147,2 mil (16,4%) não sabiam e 53,8 mil (6,0%) não declararam. Dentro das terras, 463,1 mil (89,5%) declararam etnia e 53,4 mil (10,3%) não responderam. Para os indígenas residentes fora das terras, 209,5 mil (55,2%) declararam etnia e 146,5 mil (38,6%) não sabiam.
A etnia Tikúna tinha o maior número de indígenas (46,1 mil), resultado influenciado por 85,5% deles que residiam em terras indígenas. Os indígenas da etnia Terena estavam em maior número fora das terras (9,6 mil). Nas terras indígenas, as etnias Yanomámi, Xavante, Sateré-Mawé, Kayapó, Wapixana, Xacriabá e Mundurukú não estavam presentes nas 15 mais enumeradas fora das terras. Já fora das terras, as não coincidentes eram Baré, Múra, Guarani, Pataxó, Kokama, Tupinambá e Atikum.
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Em 2010, 293,9 mil indígenas falavam 274 idiomas

No Brasil, foram contabilizadas 274 línguas indígenas faladas, excluindo as originárias dos outros países, denominações genéricas de troncos e famílias linguísticas, dentre outras, sendo a Tikúna a mais falada (34,1 mil pessoas). Nas terras, foram declaradas 214 línguas e 249 foram contabilizadas tanto nas áreas urbanas quanto rurais localizadas fora das terras.
Dos 786,7 mil indígenas de 5 anos ou mais de idade, 293,9 mil (37,4%) falavam uma língua indígena, 57,3% dentro das terras e 12,7% fora delas. O português era falado por 605,2 mil (76,9%) e era falado por praticamente todos os indígenas fora das terras (96,5%).
A proporção de indígenas entre 5 e 14 anos que falavam língua indígena era de 45,9%, 59,1% dentro das terras e 16,2% fora delas. Na faixa entre 15 e 49 anos e para aqueles com 50 anos ou mais, o percentual de falantes declinava com o aumento da idade (35,8% e 28,5%). Dentro desses três grupos etários, nas terras indígenas, quase todos os falantes de língua indígena não falavam português, sendo o maior percentual para os indígenas de 50 anos ou mais (97,3%), enquanto que, fora das terras, nessa mesma faixa etária, o Censo 2010 revelou o menor percentual, 40,7% de falantes somente de língua indígena.
Dentro das terras, 97,9% dos indígenas que recebiam até um salário mínimo falavam língua indígena e não falavam português, enquanto fora das terras o percentual declinou para 50,6%. Entre os sem rendimento, 96,6% dos residentes nas terras indígenas falavam apenas língua indígena. Fora das terras, a proporção era de 68,7%.

Análise de rendimentos indica relações diferenciadas dos indígenas com o trabalho

O Censo 2010 indicou que 52,9% dos indígenas não tinham qualquer tipo de rendimento, proporção ainda maior nas áreas rurais (65,7%). Porém, vários fatores dificultam a obtenção de informações sobre o rendimento dos trabalhadores indígenas: muitos trabalhos são feitos coletivamente, lazer e trabalho não são facilmente separáveis e a relação com a terra tem enorme significado, sem a noção de propriedade privada.
Na categoria “sem rendimento”, as diferenças entre homens indígenas e não indígenas (51,9% contra 30,7%, respectivamente) são maiores do que entre as mulheres (53,9% contra 43,0%). Entre as mulheres indígenas e não indígenas da área urbana, praticamente não há diferença (41,6% e 41,9%); a variação entre os homens é um pouco maior (31,6% e 28,8%). Na área rural, a proporção de mulheres indígenas sem rendimento (64,5%) é um pouco menor que a dos homens (66,7%), diferente da comparação dos não indígenas (50,4% para mulheres e 40,4% para homens). Ocorre que muitas das mulheres indígenas, juntamente com seus filhos, desenvolvem atividades rentáveis ligadas ao artesanato.
Em 2010, 83,0% dos indígenas de 10 anos ou mais de idade recebiam até um salário mínimo ou não tinham rendimentos, percentual concentrado na região Norte (92,6%, sendo 66,9% sem rendimento). Já o Sudeste apresentou a menor proporção, tanto de pessoas que recebiam até um salário mínimo (25,9%) quanto das sem rendimentos (34,7%). Para os não indígenas, a proporção de pessoas de 10 anos ou mais de idade sem rendimento foi de 37,0% e das que recebiam até um salário mínimo, de 27,5%.
Em todo o país, 1,5% da população indígena com 10 anos ou mais de idade ganhava mais de cinco salários mínimos, percentual que caía para 0,2% nas terras indígenas, onde 65,8% dos indígenas não tinham rendimentos, enquanto, entre os indígenas residentes fora das terras, a proporção caiu para 39,5%. Nas terras, predominam atividades agrícolas de subsistência e os rendimentos monetários nem sempre são a melhor forma de aferir remuneração.
Nas unidades da Federação, variaram bastante as proporções de indígenas sem rendimentos e com até um salário mínimo, dentro e fora das terras. Nas terras, os dois estados com maiores números de indígenas com rendimentos acima de um salário mínimo foram Espírito Santo (19,3%) e Santa Catarina (16,8%). Fora das terras, o rendimento, de modo geral, era melhor, sendo menos favorável no Acre (11,2%), Amazonas (10,7%) e Ceará (14,6%).
Em 85,4% das terras, mais de 50% dos indígenas não tinham rendimento em dinheiro, nem benefício. Em 96,1% das terras, 50% dos indígenas de 10 anos ou mais de idade recebiam até um salário mínimo mensal e, em cinco delas, nenhum indígena recebia qualquer rendimento: Zo’E (PA), Sagarana (RO), Rio Omerê (RO), Batovi (MT) e Ava Canoeiro (GO).

Maior parte dos domicílios indígenas é ocupada por um só núcleo familiar

Os domicílios particulares permanentes cujo responsável se declarou indígena correspondem a 0,4% do total de domicílios do país; o percentual nas áreas rurais (1,2%) é seis vezes maior que o das áreas urbanas (0,2%).
Segundo o Censo 2010, 63,3% dos domicílios indígenas tinham unidades domésticas nucleares (responsável, cônjuge e filhos solteiros). Para as unidades domésticas estendidas (nuclear acrescida de outros parentes), o percentual correspondeu a 19,1% e, para as compostas (estendidas acrescidas de não parentes), a proporção foi de 2,5%. A maior responsabilidade pelos domicílios indígenas é masculina, com um excedente de 82%. Entre não indígenas, a prevalência da responsabilidade masculina fica em torno de 58%.

Ocas ou malocas são apenas 12,6% do total de domicílios indígenas

O Censo introduziu um novo tipo de domicílio particular permanente, a “oca ou maloca”, aplicada só às terras indígenas. Estas habitações, usadas por várias famílias, podem ou não ter paredes, variam de tamanho e geralmente são cobertas de folhas, palhas ou outras matérias vegetais. Apenas 12,6% dos domicílios eram do tipo “oca ou maloca”; no restante, predominavam casas. Só em 2,9% das terras, todos os domicílios foram classificados como “oca ou maloca” e, em 58,7% das terras, essas moradias não foram observadas.

Na região Norte, 70,9% dos domicílios indígenas não têm banheiro

Em 2010, 36,1% dos domicílios indígenas não tinham banheiro. Nas áreas urbanas, 91,7% dos domicílios indígenas tinham um ou mais banheiros e apenas 8,3%, nenhum. Essa situação se inverte nos domicílios rurais: 31,2% com um ou mais banheiros e 68,8% sem banheiro. Entre as regiões, o Norte se destacou, com 70,9% dos domicílios sem banheiro.
Os domicílios indígenas, principalmente nas áreas rurais, apresentaram os maiores déficits em esgotamento sanitário, com predominância do uso da fossa rudimentar (65,7%). Nas áreas urbanas, a rede geral de esgoto ou pluvial associado com fossa séptica lidera os percentuais, com 67,5%. Nesse quesito, em todas as regiões brasileiras, a situação era desfavorável em relação aos não indígenas e foi pior no Norte: 29,3% dos domicílios indígenas e 40,5% dos não indígenas não tinham o serviço. No país, foram 57,8% dos domicílios com responsáveis indígenas com esgotamento sanitário.
Apenas em 2,2% das terras indígenas todos os domicílios estavam ligados à rede de esgoto ou fluvial ou tinham fossa séptica; em 52,3%, nenhum domicílio era atendido por esses sistemas. Em 84,1% das terras, numa faixa de 75% a 99% dos domicílios, o tipo de esgotamento era fossa rudimentar, vala, rio, lago ou mar ou outro tipo. Do conjunto de domicílios que tinham algum tipo de esgotamento, a fossa rudimentar tinha as maiores proporções, principalmente no Sul (60,9%), Centro-Oeste (55,5%) e Nordeste (55,0%).
No Brasil, 60,3% dos domicílios indígenas contavam com rede geral de abastecimento de água, contra 82,9% dos não indígenas. No Norte, só 27,3% tinham rede geral. A região liderava na categoria “outra forma de abastecimento”, com 44,6%. Desse contingente, 85,1% vinham de rios, açudes, lagos e igarapés. Aqui também havia uma categoria específica, de “poço ou nascente na aldeia e fora da aldeia”, só pesquisada nas terras.
Nas terras, 33,6% dos domicílios tinham rede de abastecimento de água; a maioria usava poço ou nascente, dentro ou fora da propriedade. Em 57,1% das terras, nenhum domicílio estava ligado à rede, presente na totalidade dos domicílios apenas em 3,3% das terras.
Poucos domicílios das terras indígenas eram atendidos por coleta de lixo (16,4%), que não chegou a nenhum domicílio em 325 terras indígenas (66,7%) e apenas em 1,8% das terras abrangia todos os domicílios. Em 18,3% das terras, todos os domicílios queimavam o lixo na propriedade. O lixo de todos os domicílios era jogado em terreno baldio ou logradouro em seis terras: Areões (MT), Zo’E (PA), Aripuanã (MT), Badjonkore (PA), Riozinho do Alto Envira (AC) e Mundo Verde/Cachoeirinha (MG).
A energia elétrica, proveniente de companhia distribuidora ou outras fontes, dentro das terras, foi contabilizada em 70,1% dos domicílios, Do total de terras indígenas, 10,3% não tinham qualquer tipo de energia elétrica e em 10,9% todos os domicílios tinham algum tipo.