Magnoli, a Kátia Abreu de cuecas
Por José Ribamar Bessa Freire
05/01/2014 – Diário do Amazonas
Demétrio Magnoli, doutor em Geografia, nunca pisou o chão da aldeia Tenharim em Humaitá, sul do Amazonas, invadida neste natal por madeireiros e outros bichos ferozes. Nunca cheirou carne moqueada de anta cozida no leite de castanha, nem saboreou essa iguaria refinada da culinária Kagwahiva. Jamais ouviu narrativas, poesia ou o som melodioso da flauta Yrerua tocada na Casa Ritual – a Ôga Tymãnu Torywa Ropira. Nem assistiu a festa tradicional – o Mboatava. Para falar a verdade, ele nunca viu um índio Tenharim em toda sua vida, nem nu, nem de tanga ou em traje a rigor. Nunca.
Não sabe o que perdeu. Não importa. O papa também nunca esteve no inferno, nem viu o diabo chupando manga, mas discorre sobre o tema. Desta forma, Magnoli se sentiu à vontade para escrever, na quinta feira, A Guerra do Gentio, no Globo (02/01), no qual comenta o recente conflito, numa área que desconhece e dá palpites sobre a identidade de índios, que nunca viu. Quando a gente carece de experiência e de vivência pessoal, procura as fontes ou quem estudou o assunto. O papa, por exemplo, lê a Bíblia e os teólogos. O que leu Magnoli sobre os Tenharim?
Nada de consistente. Muita gente boa escreveu sobre eles, com uma reconhecida produção etnográfica. Nimuendaju descreveu os Parintintin, com quem conviveu nos anos 1920, no rio Madeira. O gringo Waud Kracke redigiu a tese na Universidade de Chicago, nos anos 1970, depois de gravar os cantos e narrativas na língua Kagwahiva, que aprendeu a falar. Miguel Angel Menéndez viajou pelo Tapajós para a tese de doutorado na USP, no final dos anos 1980. Edmundo Peggion fez uma etnografia dos Tenharim e defendeu sua tese sobre a organização Kagwahiva, na USP, publicada em 2011.
Cacique motoqueiro
O geógrafo Magnoli, formado também pela USP, nem seu souza. Ignora-os, assim como desconhece a documentação dos arquivos. Menciona os jesuítas e o ciclo da borracha, sem apoio de qualquer fonte histórica. Não consultou na Biblioteca de Évora o manuscrito de Manoel Ferreyra, que percorreu a região em meados do séc. XVIII. Para isso, nem precisa viajar a Portugal. Basta ir ao Museu do Índio, no Rio, onde estão também microfilmes de relatórios do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) dos anos 1920-30 redigidos pelo inspetor Bento Lemos, que fornece dados históricos sobre os Tenharim e outros povos Kagwahiva, conhecidos até 1920 pelo nome genérico de Parintintin.
Ou seja, o cara não pesquisou nos arquivos, não leu os antropólogos, nunca ouviu um Tenharim, mas usa a página nobre de um jornal de circulação nacional para cagar regras – essa é a expressão – sobre os Kagwahiva. Pontifica sobre eles num texto que pretende ser infalível como uma encíclica. Insinua que a morte de Ivan Tenharim, na estrada, foi acidente de trânsito como quer a polícia, e não assassinado em uma emboscada como afirmam os índios. Aliás, segundo ele, o “cacique motoqueiro” nem índio é. Rouba-lhe a identidade depois de morto, falando urbi et orbe como o papa:
“O cacique motoqueiro dos Tenharim, as aldeias indígenas que vivem de rendas de pedágios clandestinos, os índios terena e guarani que cultivam melancias em “terras sagradas”para vendê-las no mercado não são “povos da floresta”, mas brasileiros pobres de origem indígena”.
Demétrio dixit. Qual o critério que ele usa para do alto das suas tamancas trombetear quem é índio e quem não é? O mercado. Eis aí: o mercado opera o milagre da transfiguração de índios em ‘brasileiros pobres’. Vendeu uma melancia? Então deixou de ser índio – afirma o contundente Magnoli. Sem o respaldo das ciências sociais, seu discurso deriva para o senso comum. E o senso comum, no caso, se chama Kátia Abreu, senadora, pecuarista e articulista do caderno Mercado da Folha de São Paulo, porta-voz do agronegócio.
Cartilha de Kátia
Magnoli reza pela cartilha de Katia Abreu, a quem segue como um cachorrinho a seu amo. Copia dela ipsis litteris, sem aspas, até a negação da identidade indígena. Só troca ‘silvícola’ por ‘gentio’, mas a ‘matriz epistemológica’ é a mesma: o interesse do agronegócio nas terras indígenas. Se a venda de uma melancia transforma o ‘gentio’ em ‘brasileiro pobre’, então a terra onde a plantou deixa de ser indígena e fica assim liberada para os donos da soja, da cana e do gado. Magnoli não questiona a terra concentrada em mãos de um único fazendeiro, mas o faz quando se trata de comunidades indígenas, manifestando maliciosamente fingida dúvida:
“Muita terra para pouco índio”, diz uma sabedoria popular cada vez mais difundida, mesmo se equivocada” – escreve Magnoli. Que ‘sabedoria’ é essa? Que ‘popular’ é esse? Quem difunde? Se é equivocada, porque ele e outros formadores de opinião espalham tal equívoco? Magnoli repete a mesma lenga-lenga da Katia Abreu – a terra é secundária, o que os índios, “necessitam é, sobretudo, de postos de saúde e escolas públicas”. Critica o termo oficial “desintrusão” para descrever a remoção de todos os não índios das terras indígenas, porque não aceita chamá-los de “intrusos”.
Uma vez mais reproduz o discurso de Kátia Abreu que igualmente não conhece os índios nem de vivência, nem de leitura ou pesquisa, mas também caga regras, que Magnoli copia e o leitor lê, comprando gato por lebre. Copia até o método – a “abreugrafia” – que consiste em dispensar o trabalho de campo e o contato direto com os índios, que nunca são ouvidos contrariando uma regra básica do jornalismo. Reforça preconceitos boçais e chega a ofender os índios quando reproduz acriticamente o discurso do “senso comum”:
“Edvan Fritz, almoxarife, deu um passo conceitual adiante: “Eles [os índios] vêm à cidade, enchem a cara, fazem baderna e fica por isso. Índio é protegido pelo governo que nem bicho, então tem de ficar no mato, não tem que viver em dois mundos, no nosso e no deles” – escreve Magnoli.
O outro lado
É isso que Magnoli transcreve. No entanto, o bom jornalismo manda ouvir o outro lado. Por que quando no “outro lado” estão os índios, quase nunca eles são ouvidos, mesmo quando são bilíngues e falam português? Duas excelentes jornalistas – Elaíze Farias e Kátia Brasil – publicaram no portal Amazônia Real, a entrevista do índio Ivanildo Tenharim, refugiado no quartel do Exército em Humaitá, depois da invasão à aldeia, onde ele dá a sua versão sobre os recentes ataques:
“Existem muitos madeireiros que têm raiva da gente porque eles não podem invadir a reserva para tirar madeira. Tempos atrás, com as operações da Funai e de outros órgãos, eles tiveram carros e tratores apreendidos e ficaram com mais raiva. O que eles fizeram foi aproveitar o momento para se unirem contra nós, se articulando com a população. Foram eles que bancaram o protesto de sexta-feira, quando invadiram as aldeias”.
A Polícia confirma as informações do índio: “Identificamos fazendeiros, madeireiros e funcionários tentando invadir a Terra Indígena Tenharim – declarou o tenente coronel Everton Cruz. A expedição punitiva que saiu de Apuí no dia 26 de dezembro contou com 29 caminhonetes “para fazer buscas aos três homens desaparecidos” – informou o delegado Robson Janes, que apontou também a presença de madeireiros e fazendeiros. Para a líder indígena Margarida Tenharim as acusações de que os três homens foram mortos por índios não tem provas: “É um absurdo. Não fazemos isso”.
Mas a voz dos índios não encontra eco no espaço do jornal gerenciado por Demétrio Magnoli, que aproveita para atacar Lula e o que chama de lulismo, responsáveis – segundo ele – pelos conflitos. Desrespeita, além disso, Dilma Rousseff, a quem denomina depreciativamente de “presidente de direito”, em oposição a Lula que seria o “presidente de facto”. Seu ataque é tão rasteiro e primário que, lendo-o, dá vontade de votar na Dilma, mesmo sabendo de que Kátia Abreu faz parte de sua base aliada. Desconfio que se trata de propaganda subliminar.
Demétrio Magnoli, militante de esquerda do grupo trotskista Liberdade e Luta (LIBELU) nos anos 1980, não ouve o outro lado porque trocou de lado. Agora quem dá as cartas para ele é o agronegócio. Madalena arrependida, Demétrio Magnoli podia ser a Kátia Abreu de paletó e gravata, mas é a Kátia de cueca, que ficaria limpa se lavada nas águas ainda claras do igarapé Preto da aldeia Tenharim.
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