sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Cinema palestino...

Paradise Now: O proletariado acredita em Deus

Filme do palestino Hany Abu-Assad não toma partido entre os caminhos de luta a seguir em seu país, mas abre caminho para uma indagação polêmica.



Não se trata de nenhuma provocação: o proletariado acredita em Deus? Diante de “Paradise Now (Paraíso Agora)”, do palestino Hany Abu-Assad, é uma pergunta que deve ser feita. A começar pela abertura do filme, quando em breves seqüências várias questões, além desta, já começam a ser levantadas. Suha (Lubna Azabal), francesa de origem palestina, desembarca em Nablus e, em rápidas cenas, nos apresenta a cidade. Cheia de prédios destruídos pelos bombardeios israelenses, bloqueios de soldados e carros israelenses, picadas abertas para passagem de palestinos vindos do lado israelense, onde trabalham, mas não podem seguir pela estrada normal porque está bloqueada pelos israelenses. Nada ali se assemelha a uma convivência entre dois povos milenares que em outras épocas habitaram, embora com certo antagonismo, o mesmo território.

Nesse passeio, feito por uma câmera discreta, Hany abu-Assad nos introduz numa região conhecida no planeta, como a terra do conflito permanente entre palestinos e israelenses. Suha, morena, bela, vem do Marrocos para visitar sua cidade natal, após a morte do pai, mártir da luta palestina para construir seu país. Ninguém lhe dá, desde o início, a atenção que deve merecer no final, pois é através dela que chegamos à conclusão: “O proletariado acredita em Deus”. O diretor-roteirista, Hany abu-Assad não nos dá muita pista sobre ela, vai colocando-a aqui e ali e nos levando aonde quer. Ela caminha por Nablus, como se a nos mostrar a cidade, os estragos feitos pelos israelenses e a limitação de espaço que eles impõem à população. Tudo nela, na cidade, são escombros, pedaços do que foi algum dia.

Escombros mostram os estragos da ocupação israelense em Nablus


Nessa perambulação de Suha, Hany abu-Assad nos apresenta dois jovens mecânicos, Said (Kais Nashef) e Khaled (Ali Suliman), que estão às voltas com o conserto de um carro. Estabelece-se entre a franco-palestina e eles uma química, que torna possível os diálogos e as mudanças de rumo no final de “Paradise Now”. Não se pense em “affair”, mas do papel que cada um irá jogar para o destino do outro. Hany abu-Assad, para nossa felicidade, não usa jogo, subterfúgios para envolver o espectador, só conta uma história sem meios tons. Suha, Said e Khaled são pessoas comuns, desglamourizadas. A brincadeira, a conversa entre os dois jovens no morro, com a cidade ao fundo, mostra o quanto eles estão longe dela. Têm sonhos, fantasias, mas nenhuma discussão travam sobre o que possa lhes dar o perfil de um “homem-bomba”.

Esta tranqüilidade, que em qualquer filme com mais pretensão levaria a discussões e justificativas teológicas, políticas e ideológicas, é mostrada por Hany abu-Assad como se nada demais fosse acontecer. E nisso se constitui o grande trunfo de “Paradise Now”: nada no filme é espetacular. Transcorre como um passeio pelo campo, por mais que o território palestino esteja minado e em conflito constante. A chegada de Said à sua casa, acompanhado de Jamal (Amer Hlehel), é calma, tal uma visita de amigo. A mãe (Hiam Abbass) os recebe e trata Jamal como a um filho. Não se discute religião ou política, a única elevação de voz vem do irmão de Said, que reclama por ele estar usando sua camisa. E não se tem um filme lento, seu encadeado é veloz, cheios de nuances. Vê-se Nablus com curiosidade, pela ousadia de se filmar em locais reais, para que o espectador tenha noção do que é viver num dos territórios ocupados por Israel. E, ao mesmo tempo, familiar, pelas milhares de vezes que a vimos nos noticiários da TV.

Essa calma aparente muda de vez, para nos defrontarmos com a afirmação: “O proletariado acredita em Deus”, quando Said e Khaled mostram quem são e qual é sua missão. São proletários, filhos do povo, sem futuro, perspectiva de desfrutar sua cidadania, percorrer ruas, avenidas, campos, sem a presença dos soldados israelenses. São eles que irão entrar por cômodos vazios e terminar num amplo salão, sem móveis ou qualquer decoração. Há apenas uma câmera, que custa a funcionar, e o fundo, também conhecido por milhões de pessoas no planeta. Diante deles ficam Khaled e Said, um de cada vez, com suas despedidas. Nada ali é feito apenas pela libertação do povo palestino, pela construção da nação palestina, mas principalmente pela vontade de Alá e de seu profeta Maomé. Said diz, lá pelas tantas:”Se é pela vontade de Alá (Deus)”, está disposto ao sacrifício. Mesma convicção tem Khaled.

Organização prega recompensa divina pelo sacríficio militante


A crença em Alá vem embasada pela pregação do líder Abu-Karen (Asharaf Barhom) de que o feito por Said e Khaled terá recompensa divina. Espécie de libertação espiritual concedida àqueles que lutam pela libertação de seu povo. É nisso que eles devem acreditar. É uma relação, não com a causa em si, mas diretamente com Deus. O movimento passa a ser intermediário entre o militante-mártir e o Ente Superior. Nestas questões, como sempre, qualquer razão perde efeito. Fé, como afirma o ditado popular, não pode ser medida, sentida ou explicada. É apenas fé. Cada um a sente segundo sua identificação com o Criador. E, assim, deve ser respeitada, nos limites, caso de Said e Khaled, de sua luta pela causa palestina. Questão deveras explosiva nos coloca Hany abu-Assad, de uma maneira sutil. A libertação da palestina não é só uma necessidade, diante da ocupação israelense, mas a vontade de Alá.

Neste amálgama é que se pode entender o sacrifício a que devem se submeter Said e Khaled. Preparados para a operação, os dois saem por Nablus para a executar. Estão imbuídos de uma missão que os eleva acima dos pobres mortais, pelo que nos mostra Hany abu-Assad. Não devem se abalar – e “Paradise Now” nos põe, agora, diante da possibilidade de a missão fracassar. Cheios de explosivos, frente à impossibilidade de se transformar em mártires, eles passam a transitar pela cidade. Vão de um lugar a outro, após o ritual, e o espectador tem a idéia do absurdo em que Said e Khaled se meteram. Lançando mão, mais uma vez, da sutileza, Hany abu-Assad nos remete aos perigos e ao surrealismo da situação, sem discurso. Ao mesmo tempo que se quer que eles desistam, voltem e retirem a parafernália de mártir, tememos que explodam e levem junto gente inocente, não no sentido do objetivo, da missão de que estavam imbuídos, mas daqueles que transitam pela cidade, sem saber quem são eles e o perigo que representam naquela situação. Sua-se frio o tempo todo.

Quando se chega a este impasse, é que Suha, personagem sem razão aparente para a trama, mesmo romântico, ressurge para unir as pontas. No trânsito de Said e Khaled pelo local da missão, este se perde do amigo. É o vértice que faltava a “Paradise Now”, a visão adversa à de Abu-Karen, idolatrado pelos dois rapazes. Num poderoso diálogo com Khaled, ela o leva à reflexão. Afinal, medida extrema como a que ele pretendia empreender não resolveria o problema, pois como ficariam as pessoas que continuariam vivas, questiona Suha. Seria um sacrifício para quê? Suha é pacifista, não no sentido humanista-ocidental-cristão, por não querer o conflito armado, pelas mortes de inocentes que provoca, sim por querer outra tática para vencer o inimigo. Não é a fé que ela evoca, mas o raciocínio, a reflexão sobre o que é mais eficiente para acabar com a ocupação e abrir o caminho para a construção do país. E balança Khaled, o mais radical, desde o início.
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Dois caminhos para se chegar à libertação da Palestina

Khaled passa a ser, desta forma, a antítese de Said. A partir do diálogo com Suha, ele não é mais o mesmo. Ele tem, agora, algo para além da crença. Incorpora outra posição. Hany abu-Assad usa-o para levantar outra questão: a da disputa pacífica, sem deixar a luta ou de ver a ocupação como algo inadmissível, havendo, portanto, a necessidade de acabar com ela. Mas não toma partido, pois Said continua sua trilha. Não desiste de ascender ao céu, pela via do martírio. O faz abandonando Khaled à sua nova crença. Fica sozinho, compenetrado, disposto a elevar-se ao céu. Hany abu-Assad, ao chegar a esta seqüência, demonstra que fez o filme para contribuir para o debate. Usa toda a trama do clássico filme de suspense com inteligência, sem excessos, heroísmos, grandiloqüências. “Paradise Now” é econômico, com bela fotografia de Antoine Héberlé.


O que se ressalta, no final, é a situação do povo palestino, uma das mais precárias do Oriente Médio. Pelo contraste entre Nablus e Tel Aviv, para onde vai Said, ainda imbuído de sua missão, vê-se os males infringidos pelos israelenses aos palestinos. Em Tel Aviv, a prosperidade está nos prédios, nos carros que circulam pelas avenidas, nas mulheres de biquíni, na forma como as pessoas se comportam: não há barricadas ou soldados armados à vista. Mesmo no ônibus que Said toma, impassível, determinado, nota-se que ali há algo mais que gente bem nutrida. E ele, Said, por acreditar ser possível ascender ao céu, pela via do “martírio político-revolucionário”, poderá levar vários soldados e pessoas anônimas com ele.

Justo ele, Said, proletário, mecânico, não está penetrado pela certeza, que nem Suha tem, da transformação radical da sociedade, combinando a luta pela independência nacional com a guerra popular, que também é feita nas ruas dos territórios palestinos ocupados por Israel. Ele, Said, está tomado, tão e simplesmente, pela fé. E pelo que nos diz Hany abu-Assad “O proletariado nesta etapa da luta da humanidade acredita em Deus”. E Alá, no sentido de estar acima do entendimento da luta pela libertação da palestina, pode ser o guia maior. Diferente da mediação do Estado, quando usado pela burguesia para atingir puramente o controle do mercado, caso da ocupação do Iraque pelos EUA, para garantir o abastecimento de petróleo. Bush, neste caso, manobra para que supostamente os poderes divinos se revertam a seu favor, sem nenhum objetivo maior do que a ampliação do poder norte-americano no planeta.

A mediação pelo que nos explica Hany abu-Assad é feita pela organização para que o povo oprimido possa atingir seus fins. E o instrumento é a fé em um Ente que é, a princípio, imaginado nos limites da compreensão humana nesta etapa da evolução da humanidade. Sob este aspecto a crença de Said fica explicada. Pode-se, nos limites da racionalidade ver o mesmo problema sob outro aspecto, mas então estaríamos diante de outro filme, não de “Paradise Now”, que é apenas uma obra cinematográfica e não uma tese sobre a revolução proletária. O que se pode, com toda a limitação implícita no roteiro de Hany abu-Assad, é refletir sobre uma questão que deve intrigar a todos nós nestes primórdios do Terceiro Milênio: “O proletariado, como força revolucionária, acredita em Deus?” Vale inclusive rever a máxima de Marx sobre a religião. É um bom desafio.


Paradise Now
(Paraíso Agora), 2005, 90 minutos. Produção: França, Alemanha, Israel, Holanda). Direção: Hany Abu-Assad. Elenco: Kais Nashef, Ali Suliman, Lubna Azabal. Música: Jina Sumedi. Fotografia: Antoine Héberlé.




*Cloves Geraldo, Jornalista

FSM-2009

A voz do Islam no FSM

Uma das tendas que mais chama atenção neste FSM em Belém, inclusive pela quantidade de jovens estudantes, é do CEDIAL/Centro de Divulgação do Islam na América Latina, instalada no campus da UFPA.

O Islam na América Latina

Lá estava Moumtezs Hachen El-Orra, 48 anos, libanês de nascimento, mas radicado no Brasil depois de vários anos. Num português fluente, enfático e, mesmo, cativante El-Orra atendida os diversos visitantes do CEDIAL com muita atenção. Sunita (ou seja, pertencente ao ramo dominante do Islam, em contraste com os xiítas), durante nossa conversa o diretor do CEDIAL nos falou sobre as dificuldades, e esperanças, dos cerca de um milhão de muçulmanos que vivem na América latina. Ao contrário do que se poderia supor a forte campanha anti-muçulmana que varreu o mundo depois de 11/09/2001 não prejudicou a predicação e proselitismo muçulmano no continente. Um maior número de pessoas, conforme El-Orra, procurou entender, conhecer e se aproximar da religião islâmica, recusando os estereótipos impostos. Neste sentido houve, depois de 2001, um crescimento do interesse por esta religião em todo o continente, com aumento da construção de mesquitas e da afluência.

O Islam

Mas, o que é o Islam (El-Orra insiste na forma “Islam”, em lugar de “Islã”)? El-Orra nos fala de uma religião inspirada e revelada, ou seja, diretamente trazida aos homens por Deus ( “Allah” ) através de “seus” profetas. Isso mesmo! Profetas no plural. Mohammed. Isso mesmo, Mohammed! A forma “Maomé” é um galicismo recusado, sem qualquer vigência em português ou árabe, portanto sem sentido seu uso continuado. Na verdade, Mohammed não foi o único, embora tenha sido o maior de todos os profetas na Revelação do Islam, incluindo aí a revelação do livro sagrado (o Corão ou Alcorão). El-Orra nos ensina que para ser muçulmano basta aceitar a forma básica de reconhecimento da religião”: “Deus é Único e Mohammed é seu Profeta!”. Claro que existem outras obrigações do fiel. Para as mulheres, por pudor e respeito, o uso do lenço (nada de burkha ou outras formas de velação pesadas) apenas o chador. Para todos os fiéis é obrigatório o jejum no mês santo, do Ramadam, a esmola dos pobres ou “zakat”, a peregrinação à Meca (ou “Haj”) e, claro, a regra das orações diárias voltadas para Meca.

El-Orra entende que muitas vezes os preceitos não são devidamente cumpridos pelos fiéis. No entanto, ao aceitar a Revelação de Deus (na fórmula acima ) o convertido é, e permanece, “muslim”, submetido à Deus. Talvez, não um bom fiel (como também existiriam católicos ou evangélicos relapsos), mas seria, todavia um muçulmano.

O Islam, o Estado e seus valores
Para El-Orra grande parte do sucesso do Islam nas nossas Américas advém de um sentimento cada vez mais presente de crise da família, em especial entre as mulheres. Neste ponto mostra-se claramente rigoroso, sem concessões: a unidade da família, o papel dirigente dos pais na criação dos filhos, a preservação da virgindade das moças, a recusa aos vícios mais comuns entre jovens... Todos estes são itens de clara exigência para um fiel e que colocam em risco sua salvação em caso de transgressão.

Um outro ponto polêmico é a certeza de que não é possível a salvação da alma com descompromisso com as condições materiais do próprio fiel. Assim, um poder político que permita o deboche, os vícios e o relaxamento dos costumes – muito especialmente em relação à família – não poderia, nunca, ser um regime considerado justo pelos muçulmanos.

A idéia, de origem iluminista, datando no Ocidente do século XVIII, de separação entre a esfera da vida pública – onde vigem critérios laicos, de livre escolha e de não intervenção na educação dos filhos ou na gestão doméstica – do âmbito esfera privada – a casa, a família, a religião – não é um dado aceitável para o Islam.

Eis aí as bases de uma forte fratura civilizacional. No Ocidente a emergência da diferenciação entre público e privado foi, exatamente, uma resposta às terríveis guerras de religião que sacudiram a Europa entre 1517 (Proclamação das Teses de Lutero) até o século XVIII. A resposta de intelectuais e políticos (muito especialmente depois dos Tratados de Westphalen, de 1648) foi deixar para esfera das escolhas privadas a questão religiosa.

O Islam, ainda conforme El-Orra, em face dos graves vícios e danos da vida moderna ( mais uma vez a ênfase recai na família ) duvida da resposta gerada no Ocidente e na sua capacidade de forjar pessoas íntegras e felizes. Muito especialmente o divórcio e o adultério são vistos como fontes da infelicidade. El-Orra nos pergunta: os filhos de pais separados são realmente felizes? Sem dúvida é uma questão de difícil resposta.

Islam e Tolerância

Neste sentido o Islam é político e a política (num país convertido) é islâmica. Esta seria a única possibilidade de evitar a perda das pessoas frente a um Estado moralmente relaxado. O Estado laico seria visto como um Estado sem Deus, onde o vício poderia instalar-se livremente. Assim, para o Islam não basta uma alma limpa, mas busca-se junto o corpo limpo! Para o verdadeiro “muslim” deve-se executar as leis Deus na terra, este seria o papel do verdadeiro “muslim”, e não a conformação com as leis dos homens!

O livro, o Alcorão, é a fonte de toda a sabedoria, na verdade “o livro de todas as épocas”, onde os avanços da ciência, da moral, da ética estão presentes e servem de fonte permanente para os fiéis. As “charias” e a Suna – a tradição recolhida da época do Profeta – complementam e ampliam os ensinamentos transmitidos por Deus.

Por fim, El-Orra insiste na compreensão do espírito da sua explanação, e mesmo chega a temer que não consigamos trazer para o público, a verdadeira face do Islam. Deixa claro que considera sua religião a única correta, fonte do conhecimento e da sabedoria. Contudo, com ênfase, insiste no respeita às demais religiões. Fala-nos que a certeza de estar certo, de estar al lado do Único, não permitiria a ofensa ou humilhação dos demais. Recordando uma passagem do Alcorão, quando o Profeta adverte seus seguidores que ameaçavam os defensores derrotados de Meca, contra a impiedade e a arrogância. Ao não convertido não cabe, por parte do “muslim”, ofensas nem por palavras, nem atos, nem pela espada!


Francisco Carlos Teixeira é professor Titular de História Moderna e Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).