Fernando Marcelino no CORREIO DA CIDADANIA |
O ciclo hegemônico neoliberal do capitalismo, que começou nos anos 1970, agora está em todo o mundo, no mínimo, capengando.
Podemos dizer que o “neoliberalismo realmente existente” começou a
tomar maiores desdobramentos com o fim do sistema de Bretton Woods, na
crise dos anos 1970, com a liberalização e desregulamentação dos
mercados financeiros, os ataques ao papel intervencionista do Estado na
formação de preços e políticas de privatização e flexibilização das
relações de trabalho.
Além disso, as políticas neoliberais compreendiam a financeirização
das corporações e a especulação financeira como elementos importantes na
maximização dos lucros, e a segmentação dos elos das cadeias produtivas
das corporações e sua re-localização em países e regiões que
oferecessem melhores condições de mão-de-obra barata, infra-estrutura
menos onerosa e estabilidade política e social. Nesse período a
ortodoxia neoliberal passou a dominar as instituições financeiras
internacionais, como o FMI e o Banco Mundial, tornando-se os principais
agentes na promoção das políticas de “ajustes estruturais”.
Já no final da década de 1980 a “onda neoliberal” parecia perder o
ímpeto, em razão de sua incapacidade de transformar as conquistas
iniciais na consecução de seu principal objetivo programático: promover
uma reanimação do capitalismo avançado mundial. Com o fim da URSS e o
colapso do socialismo real o neoliberalismo ganhou um novo respiro, com
uma possibilidade de expansão única num período de “fim da história” em
que “não há alternativa”. Sua ideologia se disseminou: a vitória do
Ocidente na guerra fria, com o fim da URSS, não foi o triunfo de
qualquer capitalismo, mas do “capitalismo neoliberal”.
Neste momento o neoliberalismo encontrou uma conjuntura social tão
favorável que lhe foi permitido espalhar-se rapidamente por todas as
regiões (e quase todos os países) do mundo: além de reafirmar sua
hegemonia nos países capitalistas avançados, tomou de assalto o Leste
Europeu, a América Latina, África e parte da Ásia. Foi precisamente
neste período que ocorreu a consolidação do neoliberalismo, a vitória do
pensamento neoliberal no plano político-ideológico.
Na década de 1990, os países latino-americanos, em sua grande
maioria, adotaram práticas de cunho neoliberal em seus sistemas
sócio-econômicos, políticos e ideológicos. Além do Chile, Bolívia,
México, Argentina e Venezuela, países pioneiros na implantação do
regime, o neoliberalismo surgiu no Brasil em momento crítico à política
nacional-desenvolvimentista. Após a crise da dívida, diversas tentativas
de estabilização inflacionária, fracassos dos planos econômicos, o
projeto neoliberal foi ganhando espaço político no país. No Brasil, o
neoliberalismo nasceu associado à abertura econômica e à democratização,
culminando com a derrota do protecionismo e com a diminuição dos
direitos trabalhistas provenientes do populismo. As orientações
neoliberais foram acolhidas por amplos setores da sociedade brasileira,
de governantes e empresários a lideranças do movimento popular e
sindical, além de intelectuais. Embora desde a década de 1980 as medidas
neoliberais tenham sido aplicadas no Brasil, a ofensiva maior ocorreu
durante o governo de Fernando Henrique Cardoso.
Na América Latina, o século XXI começou com um período de prolongada
instabilidade frente ao esgotamento do neoliberalismo e as dificuldades
de construção de projetos alternativos. O ciclo de crises regionais, da
crise mexicana de 1994, brasileira em 1999 e argentina em 2000,
configuraram a ampla crise ideológica do neoliberalismo – diferentemente
do que está ocorrendo agora na Europa.
A expansão descontrolada do neoliberalismo na América Latina
precipitou rapidamente sua crise de legitimação pela desregulamentação
dos mercados de trabalho, entreguismo e privatização generalizada de
setores estratégicos da economia nacional, ataques aos movimentos
sociais combativos e sucateamento estatal.
Da crise de legitimidade prematura do neoliberalismo periférico
latino-americano abriram-se diversos espaços de disputa política para a
construção de alternativas “pós-neoliberais”.
Para Emir Sader, existem duas vertentes do campo pós-neoliberal na
América Latina: Brasil, Argentina, Uruguai por um lado, e Venezuela,
Bolívia e Equador por outro. Na primeira existiriam governos
anti-neoliberais, cujas políticas buscam a superação desse modelo; na
segunda existiriam governos também com a pretensão de ser
anticapitalista. Para ambas vertentes, o principal eixo político da
América Latina seria o enfrentamento entre o neoliberalismo e o
pós-neoliberalismo. Comentando este processo a partir do Brasil, Sader
escreve:
“Sem uma estratégia pré-definida, Lula buscou avançar pelas
linhas de menor resistência. Centrou seu governo em dois eixos
fundamentais, que o diferenciou dos governos neoliberais e o aproximou
dos novos governos latino-americanos. Eixos que representam os elos mais
frágeis do neoliberalismo: a prioridade das políticas sociais ao invés
da do ajuste fiscal e a prioridade dos processos de integração regional
em lugar dos Tratados de Livre Comércio com os Estados Unidos. São essas
as duas características comuns aos governos latino-americanos que
podemos caracterizar como pós-neoliberais. É o caso da Venezuela, do
Brasil, da Argentina, do Uruguai, da Bolívia e do Equador, que em seu
conjunto mudaram a fisionomia do continente e se constituem no único
núcleo regional atual de resistência ao neoliberalismo”.
Atualmente existem governos pós-neoliberais na maioria dos países
sul-americanos e nos países centro-americanos. Portanto, por mais que o
neoliberalismo permaneça hegemônico em grandes partes do mundo, o
pós-neoliberalismo já apresenta amostras em alguns países
latino-americanos, seja pelo viés do pós-neoliberalismo lulista ou pelo
viés (ainda incipiente) anticapitalista.
No caso de Venezuela, Bolívia e Equador, esses governos, em maior ou
menor grau, optaram por políticas de confronto explícito com o ideário e
os agentes neoliberais, colocando em marcha políticas de caráter
anti-neoliberal e politizando setores que eram excluídos da cena
política, incentivando amplos processos de transformação social. Essa
experiência, assim como todas da humanidade, não está livre de
contradições. O “pós-neoliberalismo bolivariano” executado na Venezuela,
por exemplo, depende do lucro do
comércio do petróleo para o financiamento do Estado, conferindo à
economia do país um elevado grau de volatilidade, devido às flutuações
do mercado internacional. Por não haver diversificação do aparelho
produtivo nacional, o país continua refém das oscilações do preço do
petróleo para a efetivação dos programas sociais. Entretanto, o
“pós-neoliberalismo bolivariano” é marcado pela intervenção estatal na
politização e mobilização das favelas, organizando unidades militares,
incentivando a organização política nas bases da sociedade,
diferentemente do “pós-neoliberalismo lulista” que amplia o descrédito
do espaço político e cultural, considerando o desenvolvimento do
capitalismo como foco principal no desenvolvimento da América Latina.
No caso do Brasil, o governo pós-neoliberal seria capaz de dar o
salto estratégico para aumentar o controle dos capitalistas e do mercado
impulsionando novas polarizações políticas, sociais e culturais rumo ao
encontro com um novo horizonte latino-americano? Afinal, é compatível
articular estas transformações sem fazer mudanças que limitem o poder
dos capitalistas e da “canalha ilustre” do Estado, mantendo a dívida da
“governabilidade de coalizão”? Haveria disposição política de fazer isso
e colocar em jogo a conciliação de classes existente para impulsionar
tal tipo de reformas pós-neoliberais? Teriam os governos de
centro-esquerda na região capacidade de enfrentar os monopólios e
oligopólios capitalistas e dar um salto estratégico do
pós-neoliberalismo ao socialismo?
Se for correto utilizar o termo “pós-neoliberalismo” para as
experiências dos novos governos progressistas que subiram ao poder
principalmente pelo vazio político constituído pelo esgotamento social
da hegemonia neoliberal, é decisivo encontrar os limites e contradições
destas experiências. Minimizar tais contradições é um profundo erro
político, um verdadeiro desvio na articulação de um projeto de
emancipação popular.
Estes complexos processos pós-neoliberais, que ainda necessitam
demonstrar porque podem ser alternativas reais considerando as possíveis
formas de regresso do neoliberalismo, não devem ser confundidos com uma
transição pós-capitalista.
Nossa pergunta é: quando vamos conseguir tocar na questão de fundo de
qualquer transformação pós-capitalista, no caso, os meios de produção?
Em nosso momento, é urgente colocar na ordem do dia um caminho de
desenvolvimento que não seja exclusivamente capitalista para o
pós-neoliberalismo, uma transição que afete as estruturas oligárquicas e
que avance na criação de formas de propriedade que possam se
transformar em formas socialistas.
Um projeto do pós-neoliberalismo ao socialismo depende de
potencializar a descentralização e a autonomia das empresas e unidades
produtivas e, ao mesmo tempo, que faça possível a efetiva coordenação
das grandes orientações da política econômica. Um socialismo que promova
diversas formas de propriedade social, desde empresas cooperativas até
empresas estatais e associações destas com capitais privados, passando
por um amplo leque de formas intermediárias nas quais trabalhadores,
consumidores e técnicos estatais se combinem de diversas formas para
engendrar novas relações de propriedade sujeitas ao controle popular,
sem confundir propriedade pública com propriedade estatal.
A dinâmica das diversas formas de propriedade num processo de
transição socialista deve deixar claro que a propriedade privada não
seria o fator determinante numa economia de mercado predominantemente
socializada.
Para lidar com o mercado se impõe um nível de planejamento mais
flexível, mas que delimita progressivamente o comportamento do setor
privado na economia pela modernização da propriedade estatal e
cooperativa. O Socialismo de Mercado, assim, não é para o mercado manter
suas relações caóticas e anárquicas, mas para utilizar os mecanismos
dos mercados numa melhor alocação dos recursos e estimular a competição
entre os capitais, visando alcançar os limites do capitalismo junto com
uma transição socialista que prevê o controle da reprodução social pelos
produtores associados de diversas formas que se sustentem
reciprocamente. O objetivo é uma transição em que o capital se oponha a
este processo com uma posição historicamente retrógrada e insustentável
devido ao dinamismo das propriedades públicas, estatais e não estatais,
com um sistema orgânico entre produção e distribuição, descentralização
do poder político e radical transgressão da divisão social hierárquica
do trabalho.
Esse “socialismo de mercado com características latino-americanas”
seria uma forma de superar o neoliberalismo aprofundando a coexistência
de formas de propriedade estatal, pública não-estatal, cooperativas,
empreendimentos de economia solidária e de propriedade privada com
diversos mecanismos de controle dos trabalhadores, consumidores e
técnicos, descentralizando os poderes de decisão e a produção/circulação
de conhecimentos de forma material e imaterial. Superar a antinomia
falsa entre planificação socialista e o mercado faz parte deste processo
de transição, ainda mais quando os objetos veiculados pelo mercado são
materiais e imateriais. Qualquer socialismo de mercado depende de ampla e
complexa planificação. Um socialismo de mercado não é uma convivência
pacífica com o mercado dominado pelo capitalismo. Não devemos confundir
mais capitalismo ou “livre iniciativa” com mercado.
Qualquer socialismo demanda formas de controle dos elementos que
produzem o mercado. Devemos mostrar que é possível um mercado sem a
dominação da propriedade privada. Claro que um dos objetivos do
socialismo é suprimir o mercado, mas isso não se dará de maneira
imediata por decreto, estatização total ou isolamento num só país, mas
pelas próprias contradições do mercado mundial. É a partir daí que
podemos buscar elementos mínimos para elaborar o projeto de um
socialismo com características latino-americanas que, felizmente, ainda
está trilhando apenas seus primeiros passos. Obviamente, não se trata de
um experimento simples.
Fernando Marcelino é economista.
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Um blog de informações culturais, políticas e sociais, fazendo o contra ponto à mídia de esgoto.
quinta-feira, 10 de maio de 2012
Depois do pós-neoliberalismo: um socialismo com características latino-americanas?
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