O tipo de lista adotado nas eleições brasileiras se tornou, ao longo do tempo, uma matriz de reprodução das mais escabrosas distorções da nossa cultura política. A tal lista “não ordenada” é de tal forma aberta que nem mereceria, a rigor, o nome de lista, mas de “ajuntamento de candidatos”.
O eleitor vota no candidato individual e tal voto é tido como intransferível. Mesmo não sendo inteiramente verdadeiro, esse é o princípio que nomeia o “non-transferable vote” (NTV). Seu argumento básico é a prerrogativa do eleitor, por sobre o partido, na escolha do mandatário, individualizado na cédula de votação. Por outro lado, esse dado originário define o perfil da campanha eleitoral, que se estrutura em torno de uma multidão de candidaturas.
São raros, no mundo, os países que se utilizam deste tipo de lista; e são muitos, no Brasil, os efeitos deletérios de sua aplicação. Nele, na realidade, o candidato só precisa de partido como cartório para registrar a candidatura. Eleito e diplomado, ele é o dono absoluto do mandato e opera como tal. Entre as decorrências disto está o troca-troca infernal de legenda, que em algumas legislaturas chega a superar 50% dos eleitos.
Como o voto é na pessoa e não no partido, a disputa eleitoral não se estrutura em torno de programas, mas de preferências personalizadas. E o ambiente de campanha se estabelece como guerra entre candidatos que disputam o mesmo espaço político, sendo mais acirrada muitas vezes a competição entre candidatos de um mesmo partido. Há um forte incentivo para a personalização do voto e da reputação individual sobre a partidária, com a eleição de personalidades em vez de propostas e programas. Quanto mais candidato melhor, qualquer tipo serve, daí o descuido dos partidos com a qualidade da “lista” e o número excessivo de candidatos, com repercussões no custo das campanhas e na babel da propaganda política.
Alem dos defeitos a ele associados em nossa cultura política, o mecanismo da “NTV” não cumpre na prática o que o seu princípio promete. Embora se defina como baseado na intransferibilidade do voto do cidadão, a experiência mostra que o voto migra para outros candidatos que não o escolhido pelo eleitor. Vai para outros candidatos do mesmo partido ou, mais grave, pode migrar para partidos diferentes com a possibilidade, existente entre nós, das coligações nas eleições proporcionais.
Analisando dados da eleição de 1990 para deputado federal no Rio de Janeiro, o professor Renato Lessa elaborou uma tabela que pode ser aplicada a qualquer outro pleito com resultados semelhantes. Todos os votos dos candidatos derrotados (naquela eleição, 39% dos votos) contam para a legenda do partido. Os poucos candidatos muito bem votados, que ultrapassaram o quociente exigido para a obtenção de uma vaga, fornecem esta sobra para a legenda (naquela eleição, 7%). Se somarmos estes votos (46%), que foram para destino diferente do indicado pelo eleitor, aos votos dados diretamente na legenda (naquela eleição, 21%), teremos uma maioria definida fora do princípio que norteia o modelo. Segundo Lessa: “um estranho fenômeno, produzido por um mecanismo que apresenta, como sua principal virtude, a maximização da liberdade de escolha do eleitor”.
O mecanismo da “NTV” é o pior possível para a expressão autêntica do princípio da representação proporcional, entendida como manifestação ordenada das diferenças programáticas existentes na sociedade. Para os que lutam pelo aperfeiçoamento do voto proporcional, o primeiro passo é sair do pântano da “NTV”.
Fonte:correio da cidadania
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