terça-feira, 3 de abril de 2007

Washington à beira de um desastre estratégico


Reviravolta no mundo árabe: por tentarem minar o poder dos Estados e estimular divisões internas, os EUA perdem aliados e correm risco de isolamento. Para recuperar terreno, a Casa Branca precisaria abandonar o apoio incondicional a Israel e a demonização dos muçulmanos

Hicham Ben Abdallah El Alaoui

Depois da revolução iraniana de 1979, alguns dirigentes políticos norte-americanos foram seduzidos pela idéia de que as forças islâmicas poderiam ser utilizadas contra a União Soviética. Segundo esta teoria, elaborada por Zbigniew Brzezinski, o conselheiro para assuntos de segurança nacional do presidente James Carter, existia um “arco de crise”, que se estendia do Marrocos até o Paquistão. Dentro desta zona, era possível mobilizar “o arco do Islã” para conter a influência soviética [1]. Durante os anos 1960 e 70, as forças islâmicas conservadoras já haviam sido utilizadas com sucesso, para marginalizar e derrotar partidos de esquerda e movimentos nacionalistas laicos na região — a começar do Irã, em 1953. Será que o fundamentalismo iraniano não poderia se tornar o catalisador de uma insurreição muçulmana no coração da União Soviética?

Mais tarde, os Estados Unidos oscilaram entre diversas políticas no Oriente Médio e na Ásia Central. Tinham apenas dois objetivos: vencer a guerra fria e apoiar Israel. Mas os meios empenhados e os Estados apoiados variaram, por vezes de maneira contraditória. Os Estados Unidos apoiaram oficialmente o Iraque na guerra contra o Irã (1980-1988), no mesmo momento em que permitiam a entrega de armas israelenses ao Irã. Os conservadores próximos de Tel-Aviv trabalhavam ativamente por reviravolta em favor de Teerã. Israel ainda considerava o nacionalismo árabe laico como seu principal inimigo e apoiava os Irmãos Muçulmanos nos territórios palestinos ocupados, para fazer contrapeso à Organização de Liberação da Palestina (OLP). O apogeu desta estratégia foi a aliança entre Washington, a Arábia Saudita e o Paquistão. Nos anos 80, ela permitiu, entre outros fatos, a criação de um exército internacional da “jihad” (guerra santa) para combater a União Soviética no Afeganistão [2].

Em 1990, enquanto a União Soviética estava se apagando, os Estados Unidos construíram uma coalizão internacional com o objetivo de expulsar o exército iraquiano do Kuait. Vários Estados árabes, da Síria ao Marrocos, responderam positivamente a um apelo fundamentado no direito internacional e nas resoluções da ONU. Eles haviam recebido garantias de que não se tratava apenas de salvar uma monarquia petroleira amiga, mas de implantar uma nova ordem, fundamentada na justiça internacional. Uma vez restabelecida a soberania do Kuait, todas as resoluções da ONU deveriam ser implementadas, inclusive aquelas que exigiam a retirada israelense dos territórios palestinos ocupados.

Anos 1990: Washington poupa Saddan e se alia ao talibã

Apesar das pressões, o governo norte-americano optou por não derrubar o regime do presidente Saddam Hussein. “Para derrubar Saddam… era necessário envolver as nossas forças militares. Uma vez livres de Saddam Hussein e do seu governo, nós teríamos sido obrigados a instaurar um novo governo. Mas de que tipo: sunita ou xiita? Curdo ou um regime ligado ao partido Baas? Ou iríamos preferir promover a participação de certos fundamentalistas islâmicos? Por quanto tempo seria preciso permanecer em Bagdá, para manter este governo em segurança? O que seria dele, depois da retirada das forças norte-americanas? Quantas baixas os Estados Unidos poderiam aceitar para tentar instaurar a estabilidade? Em minha opinião… nós teríamos cometido um erro que nos levaria a ficar afundados no atoleiro iraquiano. E a pergunta que me ocorre é quantas perdas norte-americanas suplementares vale Saddam? A resposta é: pouquíssimas [3]". Esta opinião ponderada era a do então secretário de Defesa, Richard Cheney, atual vice-presidente dos Estados Unidos…

Aqueles que recomendavam uma “mudança de regime” em Bagdá puderam tranqüilizar-se com as sanções impostas ao Iraque ao longo de mais de uma década. Mas organizaram-se em grupos de pressão, dentre os quais o Project for the New American Century (Projeto para o novo século norte-americano). Construíram, metodicamente, o apoio político a um futuro ataque contra o Iraque, assim que as circunstâncias fossem favoráveis. Os israelenses, nesse meio-tempo, sentiam-se reconfortados: abandonava-se, progressivamente, a breve tentativa do secretário de Estado James Baker, de fazer (a partir da conferência árabe-israelense de Madri, em outubro de 1991) com que a política norte-americana oficial na Palestina fosse aplicada. Depois de 1996, o “processo de paz” nada mais era que uma cobertura para a duplicação do número de colonos na Cisjordânia.

Mais para o leste no arco de crise, o desfecho do conflito no Afeganistão era decidido entre os senhores de guerra da Aliança do Norte e os talibãs. Com o final da guerra fria, os Estados Unidos passaram a confiar totalmente no Paquistão. Esse, a caminho de se tornar um regime militar islâmico, tinha interesse num Afeganistão islâmico, que lhe oferecia uma profundidade estratégica contra a Índia. A vitória dos talibãs, amplamente favorecida pelos serviços de inteligência do exército paquistanês, permitiu que Islamabad reforçasse os seus laços com o novo regime.

O mundo muçulmano visto como instrumento do Império

Ao longo dessas décadas, os Estados Unidos nunca levaram em conta as aspirações dos povos árabes e muçulmanos. Políticas foram adotadas, exércitos mobilizados, alianças feitas e desfeitas, guerras travadas nas terras muçulmanas e árabes, contra suas populações, sempre por razões vinculadas a outros interesses. Ilustram bem essa tendência as incoerências e reviravoltas das políticas em relação ao Iraque, Irã, fundamentalismos xiita e sunita, ideologia da "jihad", a ditadura, a democracia, a monarquia absoluta, Yasser Arafat e a OLP, as colônias israelenses e o “processo de paz”. Os Estados Unidos mobilizaram-se por seus próprios objetivos – seja para garantir seu abastecimento de petróleo; para ganhar a guerra fria; para afirmar sua hegemonia ou para apoiar Israel. Tão logo uma dessas metas era alcançada, eles se “esqueciam” de todas as preocupações dos árabes e dos muçulmanos às quais haviam se referido para obter o seu apoio.

Não há nada mais insultante para o mundo árabe e muçulmano do que a célebre resposta de Zbigniew Brzezinski, três anos antes dos atentados de 11 de setembro de 2001. Indagado sobre eventuais remorsos pela ajuda norte-americana à implantação de um movimento jihadista, para provocar a invasão soviética do Afeganistão, ele replicou: “Lamentar o quê?... O que é mais importante, no contexto da história do mundo? O Talibã ou a queda do império soviético? Alguns islâmicos excitados ou a liberação da Europa Central e o fim da Guerra Fria [4]?”

Nesse mesmo terreno ocorreram os eventos “que mudaram o mundo” nos últimos cinco anos – dos ataques de 11 de setembro à invasão e a ocupação do Iraque. Em 2003, a única “vitória” norte-americana possível teria sido uma transição rápida rumo a um Estado estável, unificado, democrático, não- teocrático e, sobretudo, não-ocupado. Era uma aposta muito arriscada e foi perdida. Um general norte-americano aposentado a qualificou como o “maior desastre estratégico da história dos Estados Unidos [5]”. Essa derrota é irreversível.

Um Irã fortalecido expande sua influência

O vencedor é evidentemente o Irã. A estratégia norte-americana de desmantelamento do exército e das estruturas baasistas do Estado iraquiano permitiu eliminar o inimigo tradicional de Teerã. Simultaneamente, a confiança dos norte-americanos nos clérigos xiitas ajudou os aliados do Irã no interior do Iraque. Assim, Washington fortaleceu o próprio Estado contra o qual pretendia lutar.

As repercussões são consideráveis, tanto para os Estados Unidos quanto para o mundo árabe-muçulmano. O nacionalismo árabe laico e de esquerda, que havia definido o quadro ideológico da resistência à dominação ocidental, cedeu terreno para correntes islâmicas que canalizam essa resistência para ideologias conservadoras. Os conflitos políticos em torno da independência nacional e das vias de desenvolvimento misturam-se com os enfrentamentos religiosos, culturais e comunitários. No passado, essa mudança de paradigma foi, em certos casos, incentivada pelo Ocidente . Hoje, a derrota norte-americana no Iraque oferece novas oportunidades para Teerã retomar a tocha do nacionalismo árabe sob a bandeira do Islã.

A República islâmica do Irã desponta como o país campeão de uma nova frente de luta. Essa associa o nacionalismo árabe com a onda crescente da resistência islâmica. Para tanto, dispõe de trunfos muito importantes: pode facilitar ou complicar a situação das tropas norte-americanas; ajudar a colocar os israelenses em xeque no Líbano, graças aos seus aliados do Hizbollah; e, até mesmo, estender uma mão benévola em socorro dos palestinos, por meio do seu apoio ao Hamas. A sua influência estende-se até as regiões petrolíferas do Golfo e da Arábia Saudita onde há maioria xiita. E Teerã reúne boas condições para preencher o vazio do poder regional criado pela destruição do Estado iraquiano, pesar sobre o conflito palestino-israelense e transformar a própria natureza das relações seculares entre xiitas e sunitas.

Carta na manga: explorar divisão entre xiitas e sunitas

As ameaças, sobretudo, militares, dos Estados Unidos e de Israel reforçam a importância estratégica do Irã e valorizam o seu status de vanguarda da resistência do mundo árabe-muçulmano. Washington e Tel-Aviv estão presos numa contradição. Estão convencidos da necessidade de uma intervenção armada, ainda que limitada a bombardeios aéreos e a operações das forças especiais. Mas um possível ataque não pode destruir o regime. Será por esta razão que o presidente e o vice-presidente norte-americanos estudam recorrer à utilização da arma nuclear [6]? Com toda certeza, as conseqüências de tal aventura, tanto no plano regional quanto internacional, seriam incalculáveis. Mas, de qualquer forma, os Estados Unidos precisam restabelecer a sua credibilidade e suscitar novamente o medo que qualquer império precisa provocar.

Outra estratégia que vem sendo discutida em Washington consiste em explorar a divisão confessional com a ajuda da Arábia Saudita. Duas tendências contraditórias estão atuando neste contexto. A primeira é a aproximação entre sunitas e xiitas. Essa se deu desde a guerra do Líbano, no verão de 2006, na qual se revelaram as afinidades evidentes que existem entre Teerã e o Hizbollah. Transformou-se, assim, o xeique Hassan Nasrallah (e, numa proporção menor, o Hamas) em heróis do mundo árabe. Num fato sem precedentes, religiosos sunitas respeitados afirmam que, daqui para frente, as diferenças com os xiitas dizem respeito a aspectos menores da religião – antes a detalhes do que a conceitos fundamentais. A segunda tendência são as tensões que a ocupação fez ressurgirem entre as duas famílias do Islã – particularmente no Iraque. Ao longo dos séculos, as populações xiitas, concentradas em regiões estratégicas, foram tratadas freqüentemente com desprezo pelos poderes sunitas. Isso adubou o terreno fértil do seu ressentimento e cólera. Inversamente, as ações das milícias xiitas e a execução vergonhosa de Saddam Hussein atiçam o ódio dos sunitas.

Alguns dirigentes norte-americanos pensam que Riad poderia tornar-se o provedor de fundos de um movimento de resistência sunita aos xiitas desviantes. Com efeito, o regime saudita é muito hostil ao avanço, na região, da teologia xiita e da república islâmica. Já prometeu proteger os sunitas iraquianos caso isso se revele necessário. Será que a Arábia Saudita e as monarquias do Golfo, o Egito, a Jordânia, os curdos, os sunitas iraquianos e libaneses, e o Fatah poderiam deter a influência do Irã xiita, da Síria alauíta do Hizbollah libanês e do Hamas palestino? Para serem críveis, os “moderados” árabes deveriam poder oferecer uma solução eqüitativa e rápida para o problema palestino. Mas, se os Estados Unidos e Israel se lançarem nesta aventura, será para se furtar a todo compromisso sério.

Como Washington produz a "falência dos Estados"

A estratégia de tensão confessional conduziria a uma guerra civil entre muçulmanos. Os participantes seriam considerados como agentes que dilaceram a região a serviço de Israel e dos Estados Unidos. E quais forças muçulmanas receberiam ajuda? As opiniões públicas ocidentais e até mesmo a norte-americana arriscam descobrir com espanto que o seu governo está, novamente, no processo de constituir “exércitos wahhabitas da jihad” – ou seja, a Al Qaeda, sob um outro nome. Tal cenário não iria conduzir à “vitória”, e sim a uma série de novas crises.

Os neoconservadores qualificam esta estratégica de instabilidade construtiva (ou de destruição criadora). Porém, um observador inteligente a batiza, de maneira mais adequada, de destruição dos Estados (“estaticídio” [7]). Os Estados Unidos acabaram aceitando tal orientação no Líbano e na Palestina. Ao examinarmos os resultados, e não as intenções, é possível entender por que os árabes e os muçulmanos concluem que a política de Washington no Oriente Médio não é de salvar “Estados falidos”, e sim de produzí-los.

O ataque contra o Líbano, causador de muitas destruições, terminou com uma derrota: Israel isolou-se na região e no mundo. Militarmente, o Hizbollah nunca perdeu a capacidade de se comunicar com os seus combatentes, de difundir por meio da rádio e da televisão suas mensagens à população, de infligir perdas aos invasores ou de arremessar foguetes contra Israel [8]. Os israelenses não alcançaram nenhum dos seus objetivos declarados. Nem o desarmamento do Hizbollah, nem o retorno dos seus soldados capturados.

A questão para Israel no Líbano, assim como para os Estados Unidos no Irã, é saber se podem aceitar reveses, ou se estarão tentados a “dobrar a aposta”. Serão as derrotas os sinais anunciadores de guerras de nova geração? Ou fatos apenas temporários? Uma coisa é certa: o modelo de vitória com “zero morto”, preconizado durante a primeira guerra do Golfo (1990-1991), ou nos Bálcãs, por meio de bombardeios maciços e utilização de armas de ponta, está em xeque. Daqui para frente, o que connta é o controle e obediência a longo prazo das populações (algo que as forças aéreas não podem garantir e que exige um custo político e humano importante).

No Líbano, o feitiço volta-se contra o feiticeiro

Washington já pagou um preço elevado pelo papel que exerceu nesta pequena guerra. A imagem do primeiro-ministro libanês Fuad Siniora, com lágrimas nos olhos, implorando aos Estados Unidos para que impedissem a destruição do seu país, tornou-se emblemática e pode ser considerada uma guinada importante. O movimento de 14 de Março tomou o poder por meio de uma “revolução do cedro” apoiada pela Casa Branca. Essa revolução foi louvada como exemplo de reforma democrática que o presidente Bush queria incentivar no mundo árabe. Mas, diante da vontade de Israel de infligir uma lição ao Líbano, Fuad Siniora foi abandonado pelos Estados Unidos. Além de impedir qualquer cessar-fogo durante um mês, Washington também abasteceu Israel com armas destruidoras.

Destes desdobramentos resultou aquilo que Fouad Siniora descreve como uma destruição “inimaginável” da infra-estrutura civil libanesa [9], assim como um enfraquecimento do governo em si. Hoje, o Hizbollah exige desempenhar um papel mais importante. No quadro de uma “revolução do cedro” invertida, ele organiza as suas próprias manifestações de rua, maciças, pacíficas e disciplinadas, imitando as mesmas táticas que haviam sido incentivadas pelos Estados Unidos e o Ocidente. “Sem temerem fazer parte” desta luta interna, os Estados Unidos duplicaram a ajuda ao exército libanês e às forças internas de segurança, que intensificam seu recrutamento entre as populações sunita e drusa [10]. Essas políticas, pouco comentadas nos Estados Unidos, são denunciadas na imprensa árabe, israelense e mundial. Depois dessa guerra, vai ser muito difícil convencer o mundo árabe-muçulmano de que os Estados Unidos não estão predispostos a trair qualquer aliado ou qualquer princípio de justiça, com o único objetivo de apoiar Israel.

O processo foi se ampliando. Envolveu a destruição da infra-estrutura civil, o enfraquecimento da sua coerência social e política e a criação de uma lógica que conduziria a um conflito confessional e uma guerra civil. Quando essa dinâmica se acelerou no Iraque, parecia ser uma conseqüência terrível, que não havia sido planejada por Washington. A reaparição dos mesmos elementos no Líbano, ainda poderia ser atribuída a uma espécie de coincidência infeliz. Mas no instante em que uma dinâmica similar voltou a se desenhar na Palestina, muitos observadores não hesitaram mais a falar num “modelo” da estratégia norte-americana.

Os territórios palestinos passam por uma crise humanitária de grande amplitude. Desde a vitória do Hamas nas eleições de janeiro de 2006, os Estados Unidos e a União Européia uniram-se a Israel para tentar sufocar os palestinos e obrigá-los a rejeitar seu governo democraticamente eleito. Os resultados previsíveis desses ataques são a desagregação da ordem social e a evolução progressiva rumo a um conflito civil.

É possível combater o terror gerando ódios?

Um observador norte-americano descreve esta paisagem atormentada da seguinte maneira: “Os palestinos de Gaza vivem trancafiados num gueto sórdido e superpovoado, cercados pelo exército israelense e por uma enorme barreira. Ficaram impossibilitados de sair ou de penetrar na faixa de Gaza. Têm sido alvos de ataques cotidianos. (…) As tentativas israelenses de orquestrar um colapso das leis e da ordem, de semear o caos e provocar uma penúria generalizada, são visíveis nas próprias ruas de Gaza.Os palestinos passam diariamente na frente dos escombros do ministério do Interior, do ministério das Relações Exteriores e do ministério da Economia Nacional; do escritório do primeiro-ministro e de algumas instituições educacionais que foram bombardeadas pela aviação israelense. (…) Enquanto isso, a Cisjordânia vai afundando rapidamente numa crise semelhante à de Gaza (…) Qual vantagem os Estados Unidos e Israel pretendem obter ao fazerem de Gaza e da Cisjordânia uma versão miniatura do Iraque? (...) Acreditam que desta forma conseguirão debilitar o terrorismo, deter os ataques suicidas e instaurar a paz? [11]”.

Uma nova etapa foi transposta com a entrega de armas pelos Estados Unidos, com ajuda de Israel, “para os militantes da Força 17 em Gaza, ligados ao homem-forte do Fatah, Mohammed Dahlan”. “Segundo os representantes oficiais dos serviços de segurança israelenses e palestinos, essas entregas de armas norte-americanas desencadearam uma corrida do armamento com o Hamas [12]". Independentemente das intenções, a lógica de desintegração social e de guerra civil vai se alastrando, por intermédio da política norte-americana, por três países identificados por Israel como setores de resistência às suas ambições regionais. Existe um núcleo duro de sionistas de direita que pretendem sujeitar os palestinos ou removê-los de todos os territórios cobiçados por Israel. Para alcançar este objetivo, querem enfraquecer todos os vizinhos recalcitrantes. É assustador, porém pouco surpreendente, ver tais fanáticos ocuparem posições de poder no governo israelense. É chocante pensar que Washington possa seguir, e até mesmo ser artesão, de tal estratégia destruidora e auto-destruidora, em nome de uma falsa idéia do que vem a ser um amigo de Israel.

Se fossem mesmo amigos de Israel, os Estados Unidos não só deveriam rejeitar este caminho, como compartilhar a seguinte avaliação de uma observadora israelense: “A política de Israel não ameaça apenas os palestinos, mas também os próprios israelenses… Um pequeno Estado judeu de 7 milhões de habitantes (dentre os quais 5,5 milhões de judeus), cercado por 200 milhões de árabes, torna-se o inimigo do mundo muçulmano como um todo. Não há garantia de que tal Estado possa sobreviver. Salvar os palestinos também significa salvar Israel [13].

No Afeganistão, um outro grande atoleiro

Não é só no Oriente Médio que a derrota dos Estados Unidos parece ser possível. Mais a leste, no Afeganistão, sua política também está sendo submetida a uma dura prova. Depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, ninguém duvidava de que Washington tivesse o direto de perseguir Osama Bin Laden e a Al Qaeda. Contudo, a decisão de desencadear uma vasta operação militar envolvendo a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), com o objetivo de reconstruir a infra-estrutura política do país, era arriscada. Para que desse certo, era preciso uma vitória militar decisiva, seguida por um compromisso financeiro e político sólido e de longa duração. Esse visaria uma reforma da sociedade, baseada na cooperação de parceiros locais confiáveis, respeitados e comprometidos no caminho das mudanças.

Os Estados Unidos contaram com os chefes de guerra da Aliança do Norte para obter resultados rápidos, e apostaram num presidente importado para fabricar um arremedo de governo central em Cabul. Eles mostraram-se incapazes de eliminar os chefes da Al Qaeda e dos talibãs, e deixaram o terreno afegão para se dedicar ao Iraque. Bin Laden e Ayman Zawahari continuam difundindo suas fitas de vídeo. Enquanto isso, os talibãs, que mantiveram laços estreitos com as tribos pashtunes dos dois lados da fronteira entre o Paquistão e o Afeganistão, vêm se reunindo e constituem hoje uma real ameaça para as tropas da Otan. Os soldados dessa ficam trancafiados dentro em quartéis e só aparecem para executar bombardeios aéreos [14]. O ministro paquistanês das relações exteriores chegou ao ponto de declarar que a Otan precisava “aceitar a derrota” e que as suas tropas deveriam se retirar.

A tentativa desajeitada de Washington, de conduzir uma batalha clara e nobre contra a Al Qaeda, revelou-se equivocada. Não só diante da complexidade da rede de tribos e chefes de guerra afegãos mas também em razão do jogo perigoso e complicado do Paquistão. Esse, em sua batalha vital pela posse da Caxemira, precisa apostar nos seus próprios grupos islâmicos. É por esta razão que Islamabad pede à Otan e ao governo afegão que aceitem a presença inevitável de “talibãs moderados” no Afeganistão (para os quais cedeu, aliás, o controle de uma das suas províncias – o Vaziristão do Norte). Com isso, instala-se uma base a partir da qual os “talibãs nem tão moderados assim” atacam os soldados da Otan. Agora, passam a recorrer à técnica dos atentados suicidas. Teria a conexão com o Iraque tornado-se uma realidade? A “guerra contra o terrorismo” acabou tornando os Estados Unidos dependentes do Paquistão, que, por sua vez, encontra-se envolvido numa aliança estrutural com o islamismo radical. E se a “paquistanização” da Al Qaeda se transformasse numa “al-Qaedização” do Paquistão? Os meios de comunicação norte-americanos seguem ignorando este fenômeno preocupante…

Para evitar mais derrotas, só uma guinada política

Um arco de crise estende-se, portanto, do Mediterrâneo até o subcontinente indiano. Nos próximos meses, serão tomadas, principalmente em Washington, decisões que irão exacerbar essas crises ou que as encaminharão por novas vias mais, favoráveis a soluções sensatas. Para operar essa guinada, os dirigentes ocidentais deverão compreender que a Al Qaeda, o partido Baas, o Hizbollah, o Hamas, a Síria, assim como o Irã não podem ser classificados todos sob a mesma etiqueta ideológica abstrata de “eixo do mal”. Existem vínculos entre as diferentes crises, mas é preciso procurar distinguir e desarmar seus diversos componentes.

Isso pode ser dito da Síria, um país que não ameaça os Estados Unidos. Ela os ajudou em várias oportunidades, e joga com seus próprios interesses nacionais legítimos. Seria preciso assinar com ela um acordo sobre a retirada israelense do planalto do Golã, cuja ocupação em nada beneficia os Estados Unidos. O mesmo pode ser dito para o Hizbollah no Líbano e o Hamas na Palestina, que agem, sobretudo, em função dos seus interesses nacionais. Agindo assim, os Estados Unidos poderiam livrar-se de um bom número de problemas — E fazer avançar seus próprios interesses, promovendo, inclusive, a derrota do verdadeiro “terrorismo” fanático. Para tanto, eles precisam reconhecer que todos esses grupos não são necessariamente sucursais ou clones da Al Qaeda. Não se transformarão em tais entidades, da mesma forma que o Vietnã não se tornou a ferramenta de um “império do mal”. O fato de estabelecer negociações poderia fazer com que esses Estados ou movimentos transformem-se em adversários com os quais seja possível lidar.

Vozes influentes que emanam do coração do sistema político norte-americano exigem uma mudança de rumo. O relatório Baker-Hamilton é a expressão a mais evidente desta tendência. Por sua vez, o antigo presidente James Carter fez um apelo para que seja aberto um debate honesto sobre a política norte-americana na Palestina. Para reparar os danos já feitos, seria preciso reconhecer que más decisões foram tomadas e fazer correções de rumo muito sérias. Isso implicaria renunciar à idéia de que apenas a utilização da força militar unilateral pode resolver problemas políticos e sociais complexos; abdicar do apoio incondicional a Israel. Sobretudo, exige abandonar a idéia de que as diversas nações e populações do mundo árabe-muçulmano constituem elementos intercambiáveis inscritos em um mesmo esquema ideológico; que são manipuláveis à vontade, em função das necessidades das grandes potências, para atender às ambições territoriais dos colonos israelenses ou para os sonhos de uma “oumma” (comunidade muçulmana unida) imaginária acalentada pela Al Qaeda.

Tradução: Jean Yves de Neufville
jeanyves@uol.com.br



[1] Robert Dreyfuss, Devil’s Game: How the United States Helped Unleash Fundamentalist Islam, Metropolitan Books, Nova York, 2005, p. 240.

[2] Cf. Pierre Abramovici, “Petróleo, política e terrorismo”, Le Monde Diplomatique-Brasil, janeiro 2002.

[3] Sorel Symposium, 29 de abril de 1991.

[4] Le Nouvel Observateur, 15-21 de janeiro de 1998

[5] General (reserva) William E. Odom, “What’s Wrong with Cutting and Running?”, The Lowell Sun, 30 de setembro de 2005.

[6] Jorge Hirsch, “Nuking Iran Is Not Off the Table ”, 6 de julho de 2006. Philip Giraldi, “Deep Background”, The American Conservative, Arlington, VA (Etats-Unis), 1º de agosto de 2005.

[7] Sarah Shields, “Staticide, Not Civil War in Iraq”, Common Dreams.org, 6 de dezembro de 2006.

[8] Alastair Crooke e Mark Perry, “ How Hezbollah Defeated Israel, Parts 1 and 2”, Counterpunch.org, e 13 de outubro de 2006.

[9] “Siniora criticises West for failing model democracy”, Gulfnews.com (em Los Angeles Times-Washington Post), 21 de julho de 2006.

[10] “U.S. Considers New Aid to Lebanese Armed Forces ”, The Chosun Ilbo (Voice of America), 12 de dezembro de 2006. Ver também Megan K. Stack, “Lebanon builds up security forces”, Los Angeles Times, 1º de dezembro de 2006

[11] Chris Hedges, “ Worse than Apartheid ” Truthdig.com

[12] Aaron Klein, “ US Weapons Prompt Hamas Arms Race? ”

[13] Tanya Reinhardt, “ Introduction”, The Road Map to Nowhere – Israel/Palestine since 2003.

[14] Cf. Syed Saleem Shahzad, “Ofensiva de primavera do talibã”, Le Monde Diplomatique-Brasil, setembro de 2006.

Nenhum comentário: