terça-feira, 3 de julho de 2007

Sob o domínio dos bancos

Fiquei abismado ao descobrir que os bancos abocanham uma porcentagem de todas as transações que antes se faziam com dinheiro e hoje se fazem com cartões. Está aí um dos nexos importantes entre a revolução da microeletrônica e a financeirização da sociedade.

Dias atrás, ao comprar um agasalho perto de casa, surpreendi-me com a revelação de que o banco ficaria com 5% do pagamento com cartão. Disse à dona da pequena malharia que, nesse caso, pagaria com cartão de débito. Tanto faz, disse ela, se é de crédito ou débito. Os bancos ficam com 5%. Só as grandes empresas ou as cadeias de lojas conseguem negociar um pagamento menor, de uns 2%.

Fiquei abismado. Então os bancos abocanham uma porcentagem de todas as transações que antes se faziam com dinheiro e hoje se fazem com o plástico? Estava aí um dos nexos importantes entre a revolução da microeletrônica e a financeirização da sociedade. Imaginem ficar com 5% de todas as transações, ou que sejam 3%, sem fazer nada, sem nenhum risco, sem ter que emprestar dinheiro. Só porque a transação passa pelos computadores dos bancos. (nota 1)

Estava explicado porque os bancos ultimamente vêm nos bombardeando com cartões, violando a lei que proíbe o envio não solicitado de cartões, e nos oferecendo brindes e descontos para usar o seu cartão, e não o do outro banco. Ficou explicado o genial truque de colocar no velho cartão magnético de acesso ao caixa eletrônico também a bandeira de um cartão de crédito e a função débito direto em conta corrente.

Devido a esses truques, explodiram as transações com cartões magnéticos no Brasil, somando R$ 23,9 bilhões em maio, um crescimento de 16% em um ano, puxado pelo cartão de débito. Já há nas mãos dos brasileiros 396 milhões de cartões magnéticos que substituem o dinheiro. (nota 2)

Foi pensando nisso tudo que li o importante artigo do Financial Times, traduzido pelo jornal Valor Econômico do último dia 28, em que Martin Wolf proclama o surgimento de um “novo capitalismo financeiro”. Uma nova etapa do capitalismo em que se dá o “triunfo do mundial sobre o nacional, do especulador sobre o administrador, do financista sobre o produtor”.

Martin Wolf argumenta que o volume de recursos financeiros no mundo explodiu de uma proporção de 50% do PIB agregado mundial em 1970 para 330% em 2004. Um estoque em escala astronômica de US$ 140 trilhões. Somente no ano passado os fundos de investimentos captaram US$ 432 bilhões.

O artigo é muito bom, mas deve ser lido com cuidado crítico. Martin Wolf não disfarça sua admiração pela capacidade do capitalismo se transformar. E, ao descrever os mecanismos da globalização financeira, seu raciocínio de repente vira tautológico, atribuindo a explosão no volume de recursos às novas formas que ela toma, tais como novos atores e novas modalidades de aplicação financeira.

Martin Wolf naturaliza os processos econômicos. Isso numa era em que até mesmo mudanças climáticas já são estudadas como resultado da ação humana. E mistura causas com conseqüências. Por exemplo: dá com uma das causas da globalização financeira a desregulamentação dos mercados financeiros. Ora, a desregulamentação, assim como a privatização dos bancos estatais na maioria dos países periféricos, já é o resultado da pressão expansionista do capital financeiro, e não a causa dessa expansão. A primeira etapa da atual globalização financeira deu-se em resposta à limitação dos juros sobre os depósitos nos Estados Unidos, um reforço na regulamentação, e não sua desregulamentação. Assim surgiu o Eurodólar, que o próprio Martin Wolf menciona, sem perceber a contradição do seu argumento. O dólar gerado pela multiplicação de pagamentos intracompanhias, a maioria delas multinacionais norte-americanas, fugiu dos Estados Unidos criando seu próprio mercado extraterritorial e a primeira globalização do pós-guerra.

Também não é rigorosamente verdade que só hoje existe a globalização financeira. A Libra Esterlina era meio de pagamento, de reserva e unidade de valor em escala mundial, quando o Império Britânico dominava meio mundo. O problema é que Martin Wolf não trabalha com o conceito de imperialismo. Não digo a palavra “imperialismo”, fora de moda, mas o conjunto de fenômenos ligados às necessidades de realização de lucros de uma economia em expansão, fora dela mesma. O mais perto que ele chega disso é vincular prosaicamente a globalização financeira à disseminação da língua inglesa pelo mundo (assim Hong Kong, de língua inglesa, e não Tóquio, seria o principal centro financeiro do Oriente).

Mesmo reconhecendo que as maiores fortunas deste processo se formam dentro dos Estados Unidos, Martin Wolf não vincula a globalização financeira à expansão do império americano. Ao contrário, sua tese é a do “triunfo do mundial sobre o nacional”. Um supranacional metafísico e que pressupõe a perda de funções do Estado Nacional numa era em que vemos a ação agressiva de Estados Nacionais tentando elevar sua alavancagem através da estratégia dos blocos econômicos, e não sendo substituídos pelos blocos econômicos. É isso que está na base do fracasso de Doha. Martin Wolf ignora a expansão imperial dos Estados Unidos nos quatro cantos do Planeta, secundada pela Europa.

Daí ignorar o uso do dólar pelos Estados Unidos, como instrumento de expansão imperial, a partir dos empréstimos de guerra, na Segunda Guerra Mundial. Ignora o modo como o governo americano tentou dar sobrevida ao dólar quando sua moeda entrou em crise depois da guerra do Vietnã. Ignora as decisões unilaterais do Federal Reserve, até o extremo da denúncia unilateral do Tratado de Bretton Woods, resultando no colapso de toda a arquitetura do Sistema Monetário Internacional.

Com o fim do padrão dólar-ouro, da necessidade das moedas terem lastro, e da paridade estável entre moedas, estava criada a desordem monetária internacional, necessária à sobrevida de um dólar sem lastro e, ao mesmo tempo, propícia à especulação.

Do rígido padrão ouro, dos tempos do Império Britânico, no qual a moeda circulante valia seu próprio conteúdo em ouro, e a moeda papel tinha lastro de 100% em ouro, caímos no extremo oposto, em que não é preciso ter lastro nenhum, e o câmbio flutua o tempo todo como giram sem parar as roletas dos cassinos. Os principais mercados financeiros de hoje são exatamente os que apostam em variações de taxas de câmbio. Vislumbrando esse potencial, a Reuters e a Dow Jones inventaram nos anos 80 a ferramenta de informática que permitiu ao assinante de serviços de informação financeira fechar uma aplicação no mesmo ato de consulta da cotação. Assim nasceu a roleta do cassino. E o meio de informação sobre virou o próprio mercado.

Martin Wolf não usa a palavra cassino. Mas é como se usasse, ao descrever a forma como “especuladores financeiros ganham bilhões de dólares, não durante uma vida inteira, mas num único ano”. Sua descrição da especulação financeira, que em todo o mundo fez com as rendas migrassem do trabalho para o capital, é excelente. Pena que ele não tenha conseguido explicar de modo mais consistente os nexos entre a acumulação do capital financeiro em escala mundial e o processo simultâneo de expansão imperial dos Estados Unidos.


Notas
(1) É pior que os ganhos de “seignorage”, auferidos pelo Rei e senhores feudais, quando cunhavam moedas para que os súditos realizassem suas transações. A seignorage se dava uma vez só, quando os súditos recebiam as moedas, em troca de bens materiais, como galinhas, cereais, tonéis de vinho e o que seja. O mesmo se dá quando o Federal Reserve americano fornece dólares para algum país se dolarizar (como o Equador) em troca de bens materiais. No caso dos cartões de débito, a seignorage vira uma taxa de serviços se incide em cada transação, eternamente.
(2) Seg. Agência Folha de 28/06/07.


Bernardo Kucinski, jornalista e professor da Universidade de São Paulo, é colaborador da Carta Maior e autor, entre outros, de “A síndrome da antena parabólica: ética no jornalismo brasileiro” (1996) e “As Cartas Ácidas da campanha de Lula de 1998” (2000).


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