A tentativa de manipulação dos resultados das eleições presidenciais de 2006 não é o único caso escabroso que justifica a reflexão crítica sobre o papel da TV Globo, agora em discussão devido ao fim do prazo da sua concessão pública em 5 de outubro. Na sua longa história, esta poderosa emissora já cometeu várias outras barbaridades ao cobrir importantes fatos políticos. Com base num levantamento do professor Venício de Lima, exposto no livro Mídia, crise política e poder no Brasil, selecionamos três episódios reveladores do péssimo jornalismo praticado por esta corporação midiática, sempre a serviço dos interesses das classes dominantes.
Por Altamiro Borges*
Marinho: “Sim, eu uso o poder"
Como aponta o autor na abertura do ensaio, o que distingue a TV Globo de outras redes privadas e comerciais é que, “sob o comando de Roberto Marinho, ao longo dos anos da ditadura militar, ela se transformaria em uma das maiores, mais lucrativas e mais poderosas redes de televisão do planeta. Outorgada durante o governo de Juscelino Kubitschek (1958) e inaugurada em 1965, a TV Globo do Rio de Janeiro, junto às suas outras concessões de televisão, viria a constituir uma rede nacional de emissoras próprias e afiliadas que, não só por sua centralidade na construção das representações sociais dominantes, mas pelo grau de interferência direta que passou a exercer, foi ator decisivo em vários momentos da história política do Brasil nas últimas décadas”.
“Sim, eu uso o poder [da TV Globo], mas eu sempre faço isso patrioticamente, tentando corrigir as coisas, buscando os melhores caminhos para o país e seus estados”, dizia Roberto Marinho.
O primeiro caso lembrado por Venício de Lima ocorreu em 1982, já na fase de agonia do regime militar. Leonel Brizola, que retornou do seu longo exílio em 1979, candidatou-se ao governo do Rio de Janeiro. Sua candidatura não agradou à ditadura nem à direção da TV Globo – conforme denunciou um ex-executivo da empresa, Homero Sanchez. Segundo ele, Roberto Irineu Marinho, filho do dono e um dos quatro homens fortes da corporação, havia assumido compromisso com o candidato do regime, Moreira Franco. Foi montado um esquema para fraudar a contagem dos votos através da empresa Proconsult, cujo programador era um oficial da reversa do Exército.
Nesta trama, a TV Globo ficou com o encargo de manipular a divulgação da apuração. Mas, já prevendo a fraude, foi montado um esquema paralelo de apuração, organizado por uma empresa rival, o Jornal do Brasil. A armação criminosa foi desmascarada, Leonel Brizola foi eleito governador e a poderosa Rede Globo ficou desmoralizada na sociedade. Até o jornal Folha de S.Paulo criticou “esta grave e inédita” maracutaia. “O verdadeiro fiasco em que se envolveu a Rede Globo de Televisão durante a fase inicial das apurações no Rio de Janeiro torna ainda mais presentes as inquietações quanto ao papel da chamada mídia eletrônica no Brasil”, alertou.
Passadas as eleições, mesmo desmoralizada, a Globo continuou a fazer campanha feroz contra o governador Leonel Brizola, democraticamente eleito pelo povo. Ela procurou vender a imagem de que ele era culpado pelo aumento da criminalidade e, sem provas, tentou associá-lo ao mundo do crime. Numa entrevista ao jornal The New York Times, em 1987, o próprio Roberto Marinho confessou essa ilegal manipulação. “Em determinado momento, me convenci de que o Sr. Leonel Brizola era um mau governador. Ele transformou a cidade maravilhosa que é o Rio de Janeiro numa cidade de mendigos e vendedores ambulantes. Passei a considerar o Sr. Brizola daninho e perigoso e lutei contra ele. Realmente, usei todas as possibilidades para derrotá-lo”.
Em 1983, com a ditadura já cambaleante, cresceu a rejeição dos brasileiros contra a excrescência do Colégio Eleitoral, que escolhia de forma indireta e autoritária o presidente da República. O jovem deputado federal Dante de Oliveira apresentou uma emenda constitucional fixando a eleição direta a partir de 1985. Os militares reagiram. “A campanha pela eleição direta reveste-se, agora, de caráter meramente perturbador”, esbravejou o presidente-general João Batista Figueiredo. Apesar desta reação aterrorizante, milhões de pessoas começaram a sair às ruas para exigir o democrático direito de votar, na campanha que ficou conhecida como das Diretas-Já.
A TV Globo, totalmente ligada à ditadura, simplesmente ignorou as gigantescas manifestações. Chegou a rejeitar matéria paga sobre o protesto das Diretas-Já em Curitiba. Até duas semanas antes da votação da Emenda Dante Oliveira ela não divulgou nenhum dos eventos da campanha, que reunia centenas de milhares de brasileiros. No comício de São Paulo, em 25 de janeiro de 1984, ela só aceitou noticiar o ato, que juntou 300 mil pessoas, após conversa reservada entre o presidente do PMDB, Ulysses Guimarães, e o chefão Roberto Marinho. Mesmo assim, registrou o comício de maneira distorcida, como se fosse parte da comemoração do aniversário da cidade.
Somente quando percebeu o forte desgaste na sociedade, com os manifestantes aos gritos de “o povo não é bobo, fora Rede Globo”, a emissora começou a tratar da campanha – já na reta final da votação da emenda, em 25 de abril. Novamente, Roberto Marinho confessou seu crime numa entrevista. “Achamos que os comícios pró-diretas poderiam representar um fator de inquietação nacional e, por isso, realizamos apenas reportagens regionais. Mas a paixão popular foi tamanha que resolvemos tratar o assunto em rede nacional”. O “Deus Todo-Poderoso” foi obrigado a ceder.
Venício de Lima também relata o curioso episódio da nomeação do ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega, em 1988, o que confirma o poder da Rede Globo para indicar e derrubar autoridades e interferir, de maneira indevida e inconstitucional, nos rumos do Brasil. Numa entrevista à revista Playboy, Maílson descreveu que a sua indicação foi fruto de uma negociação entre Roberto Marinho e o presidente da República José Sarney – que, por acaso, já controlava a mídia no Maranhão, possuindo uma afiliada da TV Globo no estado. Ainda como secretário do governo, num cargo subalterno, Maílson da Nóbrega recebeu um telefone emblemático.
“No dia 5 de janeiro, o presidente me ligou perguntando: ‘O senhor teria problemas em trocar umas idéias com o Roberto Marinho?’. Respondi: ‘De jeito nenhum, sou um admirador dele e até gostaria de ter essa oportunidade’... A Globo tinha um escritório em Brasília. Fui lá e fiquei mais de duas horas com o doutor Roberto Marinho. Ele me perguntou sobre tudo, parecia que estava sendo sabatinado. Terminada a conversa, falou: ‘Gostei muito, estou impressionado’. De volta ao ministério, entro no gabinete e aparece a secretária: ‘Parabéns, o senhor é o ministro da Fazenda’. Perguntei: ‘Como assim?’. E ela: ‘Deu no plantão da Globo [no Jornal Nacional]”.
Da mesma forma como indicou, o poderoso Marinho também derrubou o ministro, segundo sua interpretação. “Um belo dia, o jornal O Globo me demitiu. Deu na manchete: ‘Inflação derruba Maílson, o interino que durou vinte meses”, descreve o ex-ministro, que arremata. “Isso teve origem num projeto de exportação de casas pré-fabricadas, para pagamento com títulos da dívida externa, que o Ministério da Fazenda vetou. O doutor Roberto Marinho tinha participação neste negócio... O fato é que O Globo começou a fazer editoriais contra o Ministério da Fazenda”.
No livro Roberto Marinho, escrito pelo bajulador Pedro Bial, alguns entrevistados, inclusive o ex-presidente José Sarney, afirmam que era comum o dono da TV Globo ser consultado sobre a escolha de ministros. Pedro Bial, como fiel servidor da emissora, considera “natural que, na hora de escolher seus ministros, o presidente [Tancredo Neves] submeta os seus nomes, um a um, ao dono da Globo”. No recente livro “Sobre formigas e a cigarras”, o ex-ministro Antonio Palocci também relata que consultou a direção da empresa sobre a famosa Carta aos brasileiros, de 2002, na qual o candidato Lula se comprometia a não romper os contratos com as corporações capitalistas.
Na prática, este império interfere ativamente na vida política nacional, seja através de coberturas manipuladas ou de negociadas de bastidores – nas quais ameaça com o seu poder de “persuasão”. Além dos três casos escabrosos, Venício de Lima cita outras ingerências indevidas da TV Globo: “papel de legitimadora do regime militar”; “autocensura interna na cobertura da primeira greve de petroleiros, em 1983”; “ação coordenada na Constituinte de 1987/1988”; “apoio a Fernando Collor de Mello, expresso, sobretudo, na reedição do último debate entre candidatos no segundo turno de 1989”; “apoio à eleição e reeleição de FHC”; “até seu papel de ‘fiel da balança’ na crise política de 2005-2006”, contra o presidente Lula. A lista é bem extensa.
* Jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB, editor da revista Debate Sindical e autor do livro As encruzilhadas do sindicalismo (Editora Anita Garibaldi).
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