Biomassa: um novo olhar
Redação do LeMonde-BrasilPara o WorldWatch Institute, os combustíveis vegetais podem contribuir tanto com o ambiente quanto para reduzir desigualdades. O foco é mudar a atual estrutura agrária
Uma ácida polêmica cerca, há meses, o debate sobre os combustíveis biológicos (ou, para alguns, agrícolas). A produção de etanol seria, como sustentam seus defensores, uma alternativa contra o aquecimento global e uma janela de oportunidade para o Brasil e outros países da América Latina? Ou estaria roubando terra de outros cultivos, inflacionando os preços dos alimentos e pressionando ecossistemas como a Amazônia, apenas para engordar os lucros das transnacionais do agronegócio? Um relatório de 480 páginas (sumário em inglês), que acaba de ser lançado pelo WorldWatch Institute (site global, site brasileiro), propõe uma espécie de síntese entre os dois pontos de vista. Apoiado em uma profusão de dados, ele procura deslocar o debate para algo mais refinado que ser a favor ou contra a cana-de-açúcar e o etanol (álcool). Sugere que, ao invés de “julgar” uma planta ou um combustível, é preciso influir sobre as relações sociais e ambientais que cercam sua produção.
A vantagem ambiental da biomassa em relação ao petróleo é conhecida. Tanto álcool quanto gasolina geram gás carbônico em sua queima. Mas as plantas das quais se extrai o combustível vegetal compensam tal efeito (com folgas, no caso da cana), porque respiram (”seqüestram”) CO2 durante toda sua vida, no processo de fotossíntese.
O WorldWatch acrescenta que pode haver também três ganhos sociais expressivos. 1) A emergência da biomassa está ajudando a reverter a queda livre dos preços de matérias-primas agrícolas. Provocado, entre outros fatores, pelos subsídios concedidos pelos EUA e Europa a suas exportações, o declínio estendeu-se por três décadas (1970-2000) e arruinou agricultores em todo o Sul do planeta. Se for anulado, permitirá revitalizar a agricultura familiar. 2) Os combustíveis vegetais podem livrar dezenas de países pobres da dependência penosa do petróleo. Entre as 47 nações mais empobrecidas do planeta, 38 são importadoras do produto e 25 compram todo o óleo que consomem. A alta dos preços internacionais do produto ameaça quebrá-las. Isso será evitado se puderem comprar de seus próprios agricultores, em moeda local, a energia que hoje importam (com dólares ou euros muito escassos) de mega-empresas. 3) Além disso, muitos países do Sul, que possuem terras e força de trabalho ociosas, poderiam ter na biomassa uma fonte de ocupação e de divisas.
O que o relatório enfatiza é que nenhuma dessas oportunidades será aproveitada se persistirem a concentração internacional de riquezas e a estrutura agrária da maior parte dos países do Sul. Nesse caso, haverá desastres. O mercado mundial de combustíveis forçará os produtores de biomassa a competirem uns com os outros, para oferecer preços mais baixos. Essa disputa estimulará a produção em condições degradantes para os trabalhadores e devastadoras para a natureza. O latifúndio de cana (ou de palma, na África) avançará sobre o cultivo de alimentos, reduzindo a área plantada e provocando altas de preços que podem ser devastadoras.
A importância de uma saída: A grande vantagem do documento do WorldWatch Institute é sugerir uma saída. Combater a produção de etanol, em países como o Brasil, tende a ser tão inviável quanto sugerir que a Arábia Saudita (ou a Venezuela) interrompam sua produção de petróleo, em nome da luta contra o aquecimento global. Dos 142 mil novos postos de trabalho criados pela indústria de São Paulo, no primeiro semestre deste ano, cerca de 100 mil surgiram nas usinas de álcool.
O foco alternativo é intervir no debate sobre as condições em que se a biomassa será produzida. As nações produtoras de álcool podem se articular, tanto para defender preços dignos (como já faz a OPEP, no caso do petróleo), quanto para colaborar entre si. A diplomacia brasileira teria um papel relevante neste esforço. No interior de cada país, é perfeitamente possível medidas para distribuir a riqueza gerada pelos novos combustíveis (por exemplo, assegurando condições dignas de trabalho na lavoura de cana; estimulando a produção de álcool a partir de outras plantas, em cooperativas e pequenas unidades; tributando a exportação das grandes usinas e utilizando a receita para incentivo à agricultura familiar). O movimento ambientalista pode agir, nos planos nacionais e mundial, para exigir que os novos cultivos de biomassa se dêem em áreas agrícolas hoje desaproveitadas, e não ameace os ecossistemas naturais.
A produção mundial de combustíveis vegetais dobrou entre 2000 e 2005. Tudo indica que haverá uma explosão, nos próximos anos e décadas. É mobilizador imaginar que não se trata nem da “salvação da lavoura”, nem de mais uma conspiração do capital — mas de um processo cujo sentido depende de consciência e mobilização social.
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