O Decodificador
Há violações da propriedade privada que não causam qualquer comoção social apesar de serem graves, por exemplo, os salários em atraso. No caso dos transgênicos, o tratamento do direito de propriedade apresenta contradições flagrantes.
Boaventura de Sousa Santos
Freqüentemente, um pequeno acontecimento revela aspectos da vida coletiva que, apesar de importantes, permanecem submersos na consciência dos cidadãos e na opinião pública. A destruição de um campo de milho transgênico no Algarve (Portugal) é um desses acontecimentos. Através dele revelaram-se entre outras, as questões da legitimidade das lutas sociais, da propriedade privada, da influência dos interesses econômicos nas legislações nacionais, do papel do Estado nos conflitos sociais, da construção social da periculosidade de certos grupos sociais e da possível nocividade dos organismos geneticamente modificados (OGMs) para a saúde pública.
As lutas sociais são frequentemente compostas de acções legais e ilegais. Os atos fundacionais das democracias modernas foram, quase sem exceção, ilegais: greves e manifestações proibidas, lutas clandestinas, insurreições militares (como o 25 de Abril), atos que hoje consideramos terroristas (como os do "terrorista" Nelson Mandela). Em certos contextos, os ativistas podem escolher entre meios legais e ilegais (como no caso em questão), noutros, não têm outra opção que não a da ilegalidade.
A propriedade privada é um alvo difícil porque as concepções sociais a seu respeito são muito contraditórias e evoluem historicamente. Os primeiros impostos sobre o capital industrial não foram considerados pelos empresários como uma violação do direito de propriedade?
Enquanto, por um lado, a polinização cruzada faz com que culturas convencionais venham a ser contaminadas pelos OGMs, o que, sendo uma violação do direito de propriedade, não levanta nenhum clamor. Por outro lado, um agricultor canadense, vítima de polinização cruzada, foi obrigado a pagar uma indemnização à Monsanto, empresa de sementes, por ter violado o direito de propriedade desta (a patente) ao usar sementes que tinham sido contaminadas contra a sua vontade.
Estas contradições decorrem do fortíssimo lobby das grandes empresas de sementes, cinco ou seis a nível mundial, na legislação e nas políticas nacionais. Só essa pressão explica: que Portugal - durante um tempo visto como refúgio da agricultura biológica e orgânica da Europa – seja hoje um dos seis países a aceitar os transgênicos; que a legislação portuguesa seja tão enviesada a favor dos OGMs que quase parece ter sido redigida pelos advogados das empresas; que o ministro da triste figura faça, de um campo de milho, um campo de batalha a exigir imediata ajuda humanitária; que os técnicos do Estado apaguem, como ciência, os press releases da Monsanto e escamoteiem a questão principal: se os OGMs fazem mal às borboletas e outros animais inferiores porque não accionar o princípio da precaução?
Este lobby encontra no caldo de cultura conservador da opinião pública o contexto ideal para estigmatizar a oposição aos seus interesses. E assim os ativistas são transformados em "ecofascistas" ou "terroristas light".
PS: dedico esta coluna ao Eduardo Prado Coelho
* Publicado originalmente na revista Visão em 30 de Agosto de 2007
Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).
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