quarta-feira, 3 de outubro de 2007

E o Irã?

Uri Avnery

UM RESPEITADO jornal norte-americano publicou um furo de reportagem, esta semana: o vice-presidente Dick Cheney, o Rei dos Falcões, arquitetou um esquema maquiavélico para atacar o Irã. Ponto principal do esquema: Israel bombardeará uma instalação nuclear iraniana; o Irã responderá com mísseis contra Israel, e aí estará o pretexto para que os americanos ataquem o Irã.

Fantasioso? Nada disto. É muito parecido com o que aconteceu em 1956. Então, França, Israel e a Grã-Bretanha planejaram secretamente atacar o Egito, para derrubar Gamal Abd-al-Nasser ("troca de regime" no jargão de hoje.) Combinaram que pára-quedistas israelenses saltariam perto do Canal de Suez, e que o conflito gerado por esse ato seria o pretexto para que franceses e britânicos ocupassem a área do canal, para “garantir a segurança” do tráfego de navios. Esse plano foi executado (e fracassou miseravelmente).

O que nos aconteceria, se concordássemos com o plano de Cheney? Nossos pilotos arriscariam a vida para bombardear as instalações iranianas, fortemente defendidas. Depois, choveriam mísseis iranianos sobre nossas cidades. Haveria centenas, talvez milhares de mortos. Tudo isso, para criar um pretexto para que os americanos entrassem em guerra.

Esse pretexto faria algum sentido? Em outras palavras, os EUA são obrigados a entrar em guerra, ao nosso lado, numa guerra causada por nós? Na teoria, a resposta é sim. Os acordos atualmente vigentes entre EUA e Israel obrigam os EUA a socorrer Israel em caso de guerra – seja quem for que comece a guerra.

A notícia que vazou terá algum fundamento? Difícil saber. Mas o vazamento reforça a suspeita de que um ataque ao Irã está mais próximo do que se supõe.

BUSH, Cheney & Co. planejam atacar o Irã?

Não sei, mas a minha suspeita de que sim, eles podem estar pensando nisso, está aumentando.

Por quê? Porque o mandato de George Bush está chegando ao fim. Se as coisas não mudarem muito, Bush será lembrado como péssimo presidente – talvez o pior nos anais da República. O governo Bush começou com a catástrofe das Torres Gêmeas, que nada acrescentou ao prestígio das agências de inteligência; e terminaria com o fiasco no Iraque.

Resta-lhe apenas um ano para fazer alguma coisa que impressione e que salve seu nome para os livros de História. Em situações semelhantes, os líderes tendem a procurar aventuras militares. Se se consideram alguns comprovados traços humanos, de caráter, a opção pela guerra torna-se realmente assustadora.

É verdade, sim, que o exército norte-americano está encalacrado no Iraque e no Afeganistão. Nem Bush e Cheney sequer sonhariam, hoje, com invadir um país quatro vezes maior que o Iraque, com o triplo da população.

Mas é muito provável que os arautos da guerra estejam soprando nos ouvidos de Bush: Por que se preocupar? Não é preciso invadir. Basta bombardear o Irã, como bombardeamos a Sérvia e o Afeganistão. Usaremos bombas inteligentes e os mísseis mais sofisticados, contra dois mil alvos, mais ou menos, para destruir não apenas as instalações nucleares do Irã, mas também instalações militares e a administração do Estado. "Vamos devolvê-los à idade da pedra”, como disse um general norte-americano sobre o Vietnã. Ou “atrasaremos 20 anos os relógios deles”, como disse o general Dan Halutz, da Força Aérea israelense, sobre o Líbano.

A idéia é tentadora. Os EUA só teriam de usar sua poderosa Air Force, mísseis de todos os tipos e os gigantescos porta-aviões, que já foram deslocados para o Golfo Persa/Árabe. Toda essa força pode ser rapidamente posta em ação, a qualquer momento. Para um presidente fracassado, cujo mandato aproxima-se do fim, a idéia de uma guerra fácil, curta, pode ser imensamente atraente. E o mesmo presidente já mostrou o quanto lhe é difícil resistir a tentações deste tipo.

SERÁ MESMO uma operação tão fácil, "piece of cake", na gíria norte-americana?

Duvido.

Por mais ‘inteligentes’ que sejam, bombas matam. Os iranianos são orgulhosos, resolutos e estão altamente motivados. Já disseram que, em dois mil anos, jamais atacaram qualquer país, mas que, nos oito anos da guerra Irã-Iraque, comprovaram amplamente a determinação de defenderem-se quando atacados.

A primeira reação dos iranianos contra um ataque norte-americano será fechar o Estreito de Hormuz, porta de entrada para o Golfo. Com isso, será cortado o suprimento de petróleo para grande parte do mundo – o que causará crise econômica sem precedentes. Para reabrir o Estreito (supondo que seja possível), o exército dos EUA terá de conquistar e manter sob seu domínio grandes áreas do território iraniano.

A guerra curta e fácil transformar-se-á em longa e duríssima. O que significa isto para nós, em Israel?

Ninguém duvida de que, se for atacado, o Irã responderá, como já avisou: bombardeará Israel com foguetes que já estão em preparação para esse específico alvo. Não chegam a ameaçar a existência de Israel, mas não será agradável.

Se os ataques norte-americanos transformarem-se em longa guerra de atrito (ou “guerra de desgaste”), e se o público norte-americano passar a vê-la como um desastre (como está acontecendo hoje, na aventura do Iraque), não faltará quem culpe Israel. Não é segredo que o lobby pró-Israel e aliados – neoconservadores (a maioria dos quais são judeus) e os Cristãos Sionistas – tentam empurrar os EUA para esta guerra, como já empurraram para a guerra ao Iraque. Na política israelense, os ganhos esperados dessa guerra podem converter-se em perdas enormes – não só para Israel, mas também para a comunidade dos judeus norte-americanos.

Se o presidente Mahmoud Ahmadinejad não existisse, seria inventado pelo governo de Israel.

Ahmadinejad é tudo que se pode desejar, como inimigo. Fala demais. Vangloria-se. Gosta de provocar escândalo. Nega o Holocausto. Profetiza que Israel “será varrido do mapa” (embora jamais tenha dito, como noticiou-se, que ele varreria Israel do mapa.)

Esta semana, o lobby pró-Israel organizou grandes manifestações contra a visita de Ahmadinejad a Nova Iorque. As manifestações foram enorme sucesso – para ele, que realizou o sonho de ser o centro das atenções em todo o mundo. Deram-lhe oportunidade para repetir seus argumentos contra Israel – alguns ofensivos, alguns válidos – para audiências planetárias.

Mas Ahmadinejad não é o Irã. É verdade, sim, que foi eleito em eleições populares, mas o Irã é como os partidos ortodoxos em Israel: os políticos não contam; o que conta são os rabinos. Os líderes religiosos xiitas tomam as decisões e comandam as forças armadas, não são de falar demais, não se vangloriam nem gostam de escândalo. Sabem ser cautelosos.

Se o Irã estivesse tão empenhado em construir uma bomba nuclear, estaria trabalhando em total segredo, sob total sigilo (como Israel fez). Ahmadinejad e sua fala de falastrão prejudicariam esse projeto, mais do que qualquer inimigo do Irã.

Não é confortável pensar em uma bomba atômica em mãos iranianas (nem em quaisquer outras mãos). Deve-se impedir que isso chegue a acontecer, por negociação e/ou por sanções. Mas ainda que aconteça, não será o fim do mundo nem será o fim de Israel. Nessa área, mais do que em todas as outras, Israel tem imenso poder de defesa e retaliação. Nem Ahmadinejad arriscará uma troca de rainhas – a destruição do Irã em troca da destruição de Israel.

NAPOLEÃO DISSE que, para entender a política de um país, basta examinar o mapa.

Se examinamos o mapa, vemos que não há razão objetiva para guerra entre Israel e Irã. Ao contrário: por muito tempo acreditou-se, em Jerusalém, que os dois países fossem aliados naturais.

David Ben-Gurion pregou uma "aliança da periferia". Estava convencido de que todo o mundo árabe era inimigo natural de Israel, e que, portanto, devia-se buscar aliados nas franjas do mundo árabe – Turquia, Irã, Etiópia, Chad etc. (Também buscou aliados no mundo árabe – comunidades não sunitas-árabes, como os maronitas, os coptas, os curdos, os xiitas e outros.)

No tempo do Xá, houve estreitas conexões entre Irã e Israel, umas positivas, outras negativas, outras muito sinistras. O Xá ajudou a construir um oleoduto de Eilat até Askelon, para transportar o petróleo iraniano até o Mediterrâneo, ultrapassando o Canal de Suez. O serviço secreto de Israel (Shabak) treinou os agentes iranianos (Savak). Israelenses e iranianos atuaram juntos no Curdistão iraquiano, auxiliando os curdos contra os opressores sunitas-árabes.

A revolução de Khomeini, no início, não desfez essa aliança, que se tornou clandestina. Durante a guerra Irã-Iraque, Israel forneceu armas ao Irã, baseado na idéia de qualquer um que combata árabes seria nosso amigo. Ao mesmo tempo, os norte-americanos forneceram armas a Saddam Hussein – um dos raros momentos de clara divergência entre Washington e Jerusalém. A divergência foi superada no caso dos Contras, no Irã, quando os norte-americanos ajudaram Israel a vender armas aos aiatolás.

Hoje, os dois países estão separados por uma guerra ideológica, mas que é lutada principalmente no plano retórico e demagógico. Arrisco-me a dizer que Ahmadinejad não dá um figo pelo conflito Israel-Palestina, que usa apenas para conquistar simpatias no mundo árabe. Se eu fosse palestino, não confiaria nele. Mais dia menos dia, a geografia falará mais alto, e as relações Israel-Irã voltarão ao que foram – esperemos que sobre bases muito mais positivas.

UMA COISA posso prever com certeza: quem pregar a guerra contra o Irã, logo lamentará o que fez.

Há aventuras nas quais se entra com facilidade e das quais não se sai facilmente. O último a descobrir isso foi Saddam Hussein.

Saddam pensou que atacar o Irã seria um passeio – afinal, Khomeini havia matado quase todos os oficiais e, sobretudo, os pilotos do exército do Xá. Supôs que bastaria um ataque rápido, para que o Irã entrasse em colapso. Depois, lamentou oito anos de guerra.

Ambos, nós e os norte-americanos, corremos o risco de descobrir, mais depressa do que supomos, que a lama do Iraque é creme Chantilly, comparada ao concreto armado iraniano.


*COPYLEFT.SoWhatAboutIran?(Emhttp://zope.gush-shalom.org/home/en/channels/avnery/1191034415/,
tradução de Caia Fittipaldi

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