Esquerda, volver... ma non troppo.
Depois de uma década de pequenos sucessos e grandes derrotas, em toda Europa social-democratas e socialistas tentam reencontrar-se com seu passado. Chegou a vez da Alemanha, onde novas lideranças prometem “corrigir o rumo” do Partido Social-Democrata (SPD, conforme a sigla alemã). Será que vai funcionar?
Flávio Aguiar
Os resultados pífios dos social-democratas nas recentes eleições na Suíça e na Polônia, onde decididamente não estiveram entre as figuras relevantes para as decisões, parecem ter acendido uma luz vermelha (a cor é adequada) no SPD alemão, como também já vinha ocorrendo em outros países, entre os partidos descritos como de centro-esquerda.
O SPD alemão é o partido mais antigo do país, e dos mais antigos da Europa e do mundo, com seus respeitáveis 114 anos de história. Mas passa por dificuldades gritantes. Depois da queda do muro de Berlim, em 1989, e da subseqüente dissolução da União Soviética, o Partido Social-Democrata alemão tornou-se exemplar no que toca à ventania política que levou todos os partidos do gênero, na Europa, a se moverem para a direita.
O líder desta virada na Alemanha foi Gerard Schröder, que chegou a ser primeiro ministro no começo do século XXI. Schröder, seguindo vaga mundial, fez uma série de reformas no sistema social alemão, adequando-o aos tempos de liberalismo requentado (também chamado de neo-liberalismo...) que marcaram esse momento. Basicamente isso consistia, como alhures, em desconstruir direitos trabalhistas e fazer do Estado o vigilante dessa batida em retirada e restrição do campo social.
Aparentemente, isso devia assegurar uma nova popularidade ao partido, com um sucesso eleitoral duradouro. Não foi o que aconteceu. Derrotas eleitorais em eleições provinciais levaram Schröder a antecipar as eleições gerais, e o resultado foi algo surpreendente, pois a líder da conservadora União Democrata Cristã (CDU), Ângela Merkel, tornou-se a primeira ministra quando seu partido venceu o pleito, ainda que por estreita margem.
Merkel leu corretamente o resultado, e diante de um eleitorado dividido praticamente pela metade, chamou o SPD para uma coalizão, e a cúpula deste partido aceitou o chamado. Novamente, o plano era um, mas o resultado foi outro. A aproximação com Merkel afastou ainda mais a base da cúpula do partido.
A própria Ângela Merkel surpreendeu o eleitorado e a Europa. Eleita com um discurso conservador, prometendo arrancar mais direitos sociais, Merkel fez um movimento considerado brilhante pelos analistas políticos convencionais na Alemanha. Compensou seu discurso com uma preocupação assistencialista com os idosos, os doentes e aqueles que podem ser descritos como “padecendo de fragilidade social” (mulheres em necessidade, jovens mães, por exemplo). Tendo ao lado vizinhos que brandem discursos ferozmente eurocêntricos, como Nicolas Sarkozy na França e Cristoph Blocher na Suíça (este último beirando o racismo explícito), Merkel caracterizou-se por uma fala bem mais branda com relação aos imigrantes, embora mantenha uma posição dura em relação ao Irã e ao que aqui é chamado de “extremismo islâmico”. Para completar, Merkel compreendeu rapidamente o “fator Al Gore” na cena mundial,e num país onde existem leis rígidas e amplas em relação aos direitos do consumidor, e o meio-ambiente é uma preocupação permanente e em escala mundial (nada deixa um humanista alemão com maior brilho no olhos do que falar em “Amazônia”, por exemplo), ela tornou-se uma campeã do tema.
Na reunião do G-8 (os sete países mais industrializadas do hemisfério norte mais a Rússia), em junho deste ano, realizada em Rostok, no norte da Alemanha, Merkel agitou suficientemente a questão ambiental, o efeito estufa, e temas associados, para considerar-se na imprensa que ela de fato enfrentou a indiferença a respeito sempre manifesta pelo governo Bush.
Essa ofensiva de Merkel roubou a cena aos social-democratas e até mesmo, em parte, ao Partido Verde. Para completar o cenário difícil, uma parte dos dissidentes do SPD uniu-se a uma parte dos remanescentes comunistas e fundaram um novo partido, Die Linke, literalmente A Esquerda.
Acossados pelos dissidentes, por Merkel, pelos Verdes, que atraem uma parte do eleitorado jovem e/ou também de esquerda, o SPD ameaçava soçobrar na perda completa de identidade. Entretanto um novo fator, chamado Kurt Beck, apareceu no horizonte, galvanizando o temor das numerosas bases do partido, ainda remanescentes, de que o SPD se tornasse apenas um partido conservador com umas pintas róseas, mais do que vermelhas, no passado.
Enfrentando a resistência dos spedistas que estão no governo, inclusive a do atual ministro do Trabalho, Franz Münfering, Beck conseguiu reverter algumas das posições cristalizadas no partido desde o tempo de Schröder. Recentemente o pleno do SPD decidiu abraçar a proposta de ampliar direitos sociais, como: passar o tempo de salário-desemprego pleno de 18 para 24 meses, no caso de quem tenha mais de 55 anos; aumentar a pensão dada aos trabalhadores de mais de 60 anos que continuem trabalhando; opor-se à proposta de que a idade de aposentadoria passe de 65 para 67 anos (na Alemanha o cidadão se aposenta no dia em que completa 65 anos, sem consideração de outros fatores). Fala-se até em discutir uma proposta de salário mínimo!
Será possível que isto interrompa o que vem sendo descrito na imprensa como a “hemorragia de perda de votos” que vem atingindo o partido? Não se sabe. Beck é um líder ousado, toma atitudes aqui descritas como “populistas”, freqüentando festas populares, tirando fotos com marcas de beijos na bochecha, e assim por diante. Conseguiu, é certo, galvanizar o descontentamento interno do partido. Se o fará em relação ao eleitorado, cavando espaço entre Merkel, os Verdes e a Die Linke, é outra história.
Ele tem a seu favor a percepção pessimista do eleitorado quanto a sua situação econômica, pois é grande a descrença na população de que vá ter melhorias de vida nos próximos tempos. Além disso, há certas condições de vida que estão piorando. O sistema de saúde está com problemas no país.
Recentemente há um outro fato que desperta preocupações. Outro dia minha companheira ao sair de casa de manhã cedo tropeçou (literalmente)... numa raposa. O animal se escondeu logo no jardim de uma escola próxima. O fato pitoresco na verdade é sintoma de um problema grave. As raposas estão invadindo as cidades alemãs. O que isso significa? Isso significa que os campos próximos não estão mais lhes oferecendo condições adequadas de sobrevivência. E por outro lado, isso significa que nas cidades está havendo uma proliferação de ratos. Ratos e raposas conjugados transmitem pelas fezes doenças incuráveis para os seres humanos... Bom, além de uma preocupação sócio-ambiental, isto já é tema para o flautista de Hamelin.
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