“Mas que mulher indigesta, indigesta! / Merece um tijolo na testa”. Com essas palavras, Noel Rosa (1910-1937) abre um de seus tantos sambas que imprimiram a crônica de toda uma época. Muito mais que a opinião individual, a letra de Mulher indigesta (1932) expressa a posição comum à sociedade dos anos 30. Embora o movimento feminista crescesse pelo menos desde a década de 1910 e a mulher brasileira tivesse conquistado o direito ao voto nesse mesmo ano de 1932, as regras do jogo eram dirigidas pelos homens. Noel, assim, apenas deixa ecoar um machismo que, se dava mostras de abrandamento, mantinha a velha estrutura patriarcal há séculos comprimindo os anseios da individualidade feminina. A voz poética da canção –é verdade que em tom de zombaria – sublinha o esforço, às vezes automático de tão enraizado na cultura, de manter a mulher em seu lugar de dominada.
Clarice Lispector (1925-1977) surge como presença feminina e escritora “indigesta” em pelo menos duas acepções do termo. Em princípio, chamamos de “indigesto” algo que não se pode digerir com facilidade ou que, concretamente, causa indigestão. Ao lado de Cecília Meireles (1901-1964), Rachel de Queirós (1910-2003) ou Lygia Fagundes Telles (1923-), Clarice contribuiu para que a mulher passasse a desempenhar papéis antes quase exclusivamente exercidos pelos “homens de letras”. Como jamais visto no Brasil, cada uma a seu feitio, essas quatro estrelas levaram o sexo já não tão frágil assim ao sucesso no mercado editorial, no jornal, na crítica, na Academia Brasileira de Letras e no imaginário público. Tiveram o mérito de abrir os portões da profissão de escritor e de formador de opinião para a personalidade feminina.
Papéis masculinos e femininos
Esse movimento em direção à voz própria foi, porém, lento e paciente. Para uma sociedade e um público leitor regidos pelos valores masculinos, era difícil engolir os sentimentos daquelas antes vistas apenas como dona de casa, esposa, mãe, objeto de desejo e, quando muito, professorinha primária. Mesmo as senhoras e as moças, às vezes pareciam mais machistas que os rapazes. Como absorver as entranhas ou os gritos há muito tempo presos no seio feminino? Não faltaram, evidente, iniciativas para calar o jorro expressivo de escritoras, de intelectuais, de militantes e de mulheres anônimas como a personagem de Noel Rosa. Na penúltima estrofe, o eu lírico procura coibir a fala feminina mediante a ameaça por violência física: “E quando se manifesta / O que merece é entrar no açoite / Ela é mais indigesta do que prato / De salada de pepino à meia-noite”.
Exprimir-se como mulher foi gesto natural para Clarice, mas também um ato de conquista talvez até pouco planejado por ela. O normal era escrever como homem. Numa curiosa inversão, quem imaginaria que, anos depois, compositores como Chico Buarque (1944-) e, sobretudo, Gonzaguinha (1945-1991) encarnariam a feição feminina num sem número de canções?
A literatura de Clarice Lispector apresenta, de fato, mulheres clamando pelo ser que lhes é de direito. Em um de seus contos – “Amor”, de Laços de Família (1960) – assistimos ao dia em que uma dona de casa problematiza suas tarefas diárias, incluindo as de mãe exemplar. Para se tornar uma grande dama do lar, Ana calou a sensibilidade. Sua percepção incomum e até artística do mundo não chega a florescer, porque ela desemboca a vida “num destino de mulher”. Entenda-se: uma rotina maquinal, uma função para qual pouco teve escolha e que, de repente, levanta-se contra ela como redoma de vidro asfixiante. No bonde, a visão de um cego mascando chiclete é a motivação para a personagem sair do centro, da mesmice, da vida que “apaziguara tão bem” e “cuidara tanto para que esta não explodisse”.
O grito de liberdade, em vez de loucura ou violência, ocasiona um lirismo sobre-humano. Ao tomar consciência que vive anestesiada em seu cotidiano, Ana redescobre os cinco sentidos sedentos por sensações inusitadas. No parque, na rua ou em casa a realidade macro e microscópica explode a sua atenção. Arguta, Clarice escapa da facilidade de colocá-la apenas como vítima da sociedade machista; a heroína possui, sim, seu doloroso quinhão de responsabilidade. Ao final, o marido afasta Ana “do perigo de viver”, mas é ela quem apaga a esperança de mudança, soprando “a pequena flama” desse dia extraordinário. Na encruzilhada do amor irracional com o burguês, ela escolhe o seguro.
Escrita dura de roer
Assumindo papéis sociais previamente determinados, algumas mulheres de Clarice tentam acordar da anestesia, ainda que – deliberadamente, como Ana – para continuarem na mesma posição. Mas ninguém como Macabéa – personagem principal de A hora da estrela (1977), novela publicada há exatos trinta anos – surge tão inconsciente de sua condição de mulher, de migrante, pobre e proletária explorada. Trata-se de uma virgem de dezenove anos, desafortunada até na aparência, “teleguiada”, “ignorante” e sem fazer “falta a ninguém”. Excluída de uma “cidade toda feita contra ela”, Macabéa é engrenagem substituível na ordem social. Só ganhará alguma transcendência prestes à morte. A narrativa demora a tomar fôlego graças a um narrador que, desejando ser simples e pouco intelectualizado, acaba se exibindo demais. Como não se comover com a desgraça crônica dessa jovem? Desde o nascimento, sua existência é um chute no escuro, sem que ela saiba.
Mesmo a serventia animal de fêmea está interditada para Macabéa. Embora lasciva, ela não serve nem para irradiar sua humanidade, uma vez que possui “ovários murchos como um cogumelo cozido”. Das brutalidades que Macabéa passa a vida a ouvir, nenhuma supera a que termina por negar a própria essência de mulher. Tanto pior que seja proferida por Olímpico, o namorado que supostamente deveria desejá-la: “Você, Macabéa, é um cabelo na sopa. Não dá vontade de comer”.
Em outro sentido, “indigesto” qualifica algo que soe confuso e desconexo. Alguma coisa difícil de entender à primeira vista, podendo, por isso mesmo, aborrecer ou entediar. Parte substancial da produção de Clarice Lispector gera tal sensação, em conexão com certa prosa experimental do século 20. Na trilha de James Joyce (1882-1941), Virginia Woolf (1882-1941) ou Oswald de Andrade (1890-1954), os traços convencionais da narrativa (enredo, personagens, tempo, espaço e ponto de vista) são refundidos numa escrita não raro dura de roer, principalmente para leitores desabituados aos fluxos intermináveis de consciência, às tramas pouco lineares, a espaços fragmentários, às fusões nauseantes entre narrador e objetos descritos, à mistura de gêneros. Quando comparada, por exemplo, ao estilo compacto de Graciliano Ramos (1892-1953), a linguagem de Clarice pode parecer anormal ou doentia.
Desagregação vertiginosa
No conto “A Imitação da Rosa”, também de Laços de Família, a escritora apresenta Laura. Em lugar de escancarar a personagem central, ficamos cientes do seu passado, de seus desejos e de sua angústia pela fresta da porta. Só alguns pontos do conflito e da ambientação surgem claramente. Quase tudo acontece, como é freqüente em Clarice, num apartamento de classe média carioca. Sabemos objetivamente, ainda, que Laura acabara de atravessar um período de crise psicológica e física. No entanto, é em geral nos longos parágrafos que alguns elementos típicos da narrativa se desestabilizam. Precisamos estar alertas para distinguir o narrador de Laura, ou o passado do presente. Dramatiza-se o conflito de mandar ou não as flores para Carlota quase que em tempo real. O narrador se mistura à Laura, arrastando a escrita em conexão com uma decisão que deveria ser simples. Algumas frases entre aspas representam o monólogo da personagem ou as tentativas de conselho de quem narra. Essa ação enguiçada faz brotar o incômodo no leitor que espera a resolução sem desvios da história. Aqui é preciso calma, porque Clarice desenha essa mulher aos poucos. Pontilhando sua fragilidade, revela aos pedaços seus sintomas sem transformá-la numa caricatura, como às vezes fará com Macabéa.
Essa segunda forma de indigestão, que nada impede vir unida à primeira, aparecerá radicalizada naquela tida como sua grande obra, o romance A paixão segundo G. H. (1964). É quando a individualidade e o discurso narrativo sofrem, como jamais visto em Clarice Lispector, uma desagregação vertiginosa, ao ponto do próprio gênero romanesco ameaçar um colapso em suas mãos. Quanto à existência e aos propósitos femininos, são aqui indagados com amargor terrível: “Minha sobrevivência futura em filhos é que seria minha verdadeira atualidade, que é, não apenas eu, mas minha prazerosa espécie a nunca se interromper”. Em primeira pessoa e se comparando ao um animal repugnante, essa narradora-mulher desce aos infernos de sua condição: “Aquela barata tivera filhos e eu não”.
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