sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Um voto democrático de desconfiança

Um voto democrático de desconfiança

Amira Hass

Uma greve dos funcionários públicos na Palestina, como a que começou ontem e prossegue hoje, é tipicamente considerada em Israel como “assunto interno da Palestina”, sem importância jornalística.

Mas, além do fato de que a modéstia das exigências salariais são resultado direto da política de bloqueio econômico pela potência ocupante – Israel –, a greve é desafio considerável à estabilidade e ao poder do governo do primeiro ministro Salam Fayyad e comprova evidente desgaste de credibilidade.

O setor público sempre foi tradicional base de apoio da Autoridade Palestina. Muitos dos servidores públicos na Cisjordânia apóiam o Fatah e o representam nos sindicatos.
Enquanto a ravina que separa os governos de Ramállah e de Gaza fez aumentar o prestígio da Autoridade Palestina nos países ocidentais, a disputa entre os servidores públicos e o governo de Ramállah reduz a capacidade da Autoridade Palestina para cumprir acordos firmados com países e entidades apoiadores, especialmente o Banco Mundial.

Dentre outros, estes acordos obrigam a reduzir o item “salários” no orçamento (mediante demissões e cortes nos salários) e a cobrar impostos, a serem pagos às prefeituras, pelo consumo de eletricidade e água. Em outras palavras, a luta dos servidores públicos contra o governo de Salam Fayyad – servidores dos quais depende a legitimidade do mesmo governo – pode também ameaçar a avaliação do governo, aos olhos dos representantes da economia global.

Os funcionários públicos palestinos fazem três principais reivindicações: que os salários sejam reajustados pelo custo de vida; aumento real no item “despesas de viagem” dos salários (sem reajuste desde 1999, apesar de os preços de passagens terem duplicado e triplicado em função dos bloqueios das estradas e do aumento do preço do combustível); e fim da exigência, recentemente implantada, de apresentação de um ‘certificado de honestidade’ que confirme “pagamento de todas as dívidas”.

O governo decidiu condicionar a prestação dos serviços públicos, a partir deste mês, a apresentação deste certificado, obrigatório em todas as prefeituras e empresas fornecedoras de eletricidade e água. A exigência afeta todos os serviços básicos, como emissão de carteiras de identidade, passaportes, licenças para dirigir e autorização para comerciar (exclui a licença para viajar, fornecida pela administração pública israelense).

O governo também planeja descontar o pagamento de dívidas diretamente dos salários dos funcionários públicos. Não surpreende que os representantes sindicais já falem do renascimento de métodos adotados pela ocupação israelense, que condicionava a emissão de alvarás para trafegar e construir, ao pagamento de vários tipos de dívidas. Mas a oposição dos servidores públicos ao governo não tem só causas simbólicas. Os sindicatos acusam o governo de implantar regras ilegais, pois pressupõem que o cidadão palestino seja culpado até que prove que é inocente.

Segundo dados do Banco Mundial, os residentes e conselhos locais palestinos começaram a acumular dívidas a partir de 2002, por não pagarem as contas de água e eletricidade. Em 2007, estas dívidas já estão estimadas em cerca de 512 milhões de dólares. Israel, principal fornecedor de eletricidade e água, abate estes pagamentos diretamente do montante de taxas e impostos cobrados dos palestinos, nas fronteiras e portos, antes de transferir o saldo para o Tesouro da Autoridade Palestina. Este fato justifica, na opinião de Fayyad, que o governo exija dos funcionários públicos o pagamento das contas devidas.

Os porta-vozes do governo, inclusive o próprio Fayyad, têm falado repetidamente contra uma “cultura de não pagar contas”, retratando os palestinos como devedores contumazes. Com isto, faz aumentar a animosidade contra seu governo. O governo da Autoridade Palestina também não paga o que deve aos funcionários, a instituições e a empresas privadas, e pede que se considere “a situação econômica”. As regras agora impostas ignoram os muitos anos de crise econômica, ao longo dos quais os palestinos perderam fontes tradicionais de renda e de poupança.

Muitas das forças políticas da OLP (Organização de Libertação da Palestina), inclusive o movimento Fatah, já manifestaram apoio ao movimento dos trabalhadores da administração pública palestina, e oposição ao ‘certificado de honestidade’. Nos últimos dias, a ação coletiva contra o governo começou a dar frutos: as autoridades começam a falar em alterar as novas regras, de modo a que não estigmatizem todos os palestinos como ‘devedores contumazes’.

A greve do funcionalismo público palestino – e toda a discussão pública e interna que a acompanham – é uma fascinante lição de o quanto os palestinos ainda sabem usar o seu poder coletivo; de como se opõem a uma política econômica liberal de ocupação e colonização. Assim, estão impondo hoje um voto democrático de desconfiança contra o governo e a classe dirigente.

* Democratic suspicion. © Haaretz, Jerusalém, 6/2/2008, em http://www.haaretz.com/hasen/spages/951534.html.

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