As CPIs andam precisando recorrer à UTI para uma cirurgia reparadora. Agem como delegacia em inquérito policial. Fulanizam denúncias de corrupção, como se meter a mão em dinheiro escuso decorresse apenas de desvios de caráter. Esquecem que a ocasião faz o ladrão, e não questionam as instituições nem a própria legislação do país, pela qual os parlamentares são responsáveis.
A exposição televisiva das CPIs fez delas uma espécie de Big Brother legislativo. O público fica de olho para ver quem vai para o paredão. Na onda do voyeurismo que assola o país, há uma perversa atração pelo espetáculo de humilhados e ofendidos por deputados que disputam a tapa as atenções da platéia de modo a angariar prestígio e votos. Prova disso é que poucos demonstram preparo para inquirir. Não investigam, não lêem relatórios, atuam movidos pelo ímpeto de destruir o partido adversário e blindar o próprio.
Uma casa legislativa não merece ser confundida com delegacia. Não condiz com a sua natureza pressionar os interrogados até que, sob tortura psicológica, passem à condição de réu. O ônus da prova cabe a quem acusa. A menos que o interrogado tome a iniciativa de admitir sua culpa, como ocorreu com vários acusados.
Não se pode reduzir a ética ao comportamento individual, como se fosse ele o único responsável pela corrupção. Há que levar em conta a teia de relações sociais e conexões institucionais configuradoras de realidade. Não basta identificar o corrupto, é preciso ir às causas da corrupção. Este o papel que distingue uma CPI de um inquérito policial.
Cabe ao Legislativo normatizar as instituições nacionais, imprimir-lhes legalidade, estabelecer seus direitos, deveres e limites, e também pesquisar as brechas na legislação que favorecem a corrupção. Como as empresas burlam o fisco e fazem caixa dois? Por que a facilidade em remeter fortunas ao exterior? O que dificulta a transparência na contabilidade dos partidos? Onde estão os furos nos financiamentos de campanhas? Por que tantas fraudes em licitações? Isso, sim, é legislar.
Uma CPI não deveria jamais encerrar seus trabalhos apresentando à nação um rol de suspeitos. Para não correr o risco de falso testemunho, melhor não nomeá-los se não há provas convincentes e contundentes. Toda pessoa, cuja honra é maculada levianamente em poucos minutos está fadada a passar o resto da vida tentando limpar o seu nome.
Cabe ao Ministério Público e à polícia investigar, apontar e punir os que comprovadamente infringiram a lei. As CPIs deveriam sobremaneira debruçar-se sobre o desempenho do Congresso e apurar as causas da corrupção, da malversação, da quebra do decoro parlamentar. E essas causas muitas vezes deitam raízes na própria legislação que rege as nossas instituições e que mais parece um queijo suíço, tantos os buracos pelos quais se introduz a ação criminosa. E a legislação tem sua origem no Congresso. Legislar é a função precípua dos que são eleitos parlamentares.
O povo tem o direito de fazer tudo que a lei não proíbe; contudo, as autoridades só deveriam fazer o que a lei permite. É desalentador ver uma CPI desaguar num mar de ilações, quando se esperava que, alertado por ela, o Congresso tomasse a si a tarefa de apressar a reforma política. O que é feito para impedir que partidos incorram novamente em maracutaias?
Desde que me entendo por gente observo que certas palavras resumem os paradigmas que mobilizam a nossa vida política. Nos anos 50/60, o tema era desenvolvimento; nos anos 70/80, democracia; nos anos 90, modernização; agora, ética.
A ética resvala para o moralismo udenista quando desvinculada da produção de sentido. Note-se que a moral tende a cair no moralismo, mas sequer existe o vocábulo ‘eticismo’. Porque a ética, tão bem enfatizada nas obras de Aristóteles, implica princípios universais, perenes, norteadores dos grandes projetos humanos. É ela que nos fornece os elementos para o “discernimento militante”, como diz Emmanuel Mounier.
Se os nossos partidos políticos perdem de vista as estratégias históricas, trocam o projeto de nação pelo de eleição, deixam de produzir sentido à nação, e se tornam meros consórcios de disputa de poder, então a ética volatiliza-se na abstração dos discursos demagógicos e os políticos resvalam para o terreno da hipocrisia. Hipócrata era o ator que, no antigo teatro grego, fazia parte do coro que proclamava o contrário do que de fato ocorria no palco.
Mais grave que a corrupção é uma eleição desancorada de consistentes projetos capazes de fazer o Brasil não ter vergonha de si mesmo, de suas crianças consumidas pelo narcotráfico, de multidão deambulando sem-terra, enfim, projetos que alterem o mais grave de nossos problemas nacionais: a desigualdade social. Não é a um candidato que o eleitor quer dar o seu voto, é à esperança.
Frei Betto é escritor, autor de A mosca azul – reflexões sobre o poder (Rocco), entre outros livros.
A exposição televisiva das CPIs fez delas uma espécie de Big Brother legislativo. O público fica de olho para ver quem vai para o paredão. Na onda do voyeurismo que assola o país, há uma perversa atração pelo espetáculo de humilhados e ofendidos por deputados que disputam a tapa as atenções da platéia de modo a angariar prestígio e votos. Prova disso é que poucos demonstram preparo para inquirir. Não investigam, não lêem relatórios, atuam movidos pelo ímpeto de destruir o partido adversário e blindar o próprio.
Uma casa legislativa não merece ser confundida com delegacia. Não condiz com a sua natureza pressionar os interrogados até que, sob tortura psicológica, passem à condição de réu. O ônus da prova cabe a quem acusa. A menos que o interrogado tome a iniciativa de admitir sua culpa, como ocorreu com vários acusados.
Não se pode reduzir a ética ao comportamento individual, como se fosse ele o único responsável pela corrupção. Há que levar em conta a teia de relações sociais e conexões institucionais configuradoras de realidade. Não basta identificar o corrupto, é preciso ir às causas da corrupção. Este o papel que distingue uma CPI de um inquérito policial.
Cabe ao Legislativo normatizar as instituições nacionais, imprimir-lhes legalidade, estabelecer seus direitos, deveres e limites, e também pesquisar as brechas na legislação que favorecem a corrupção. Como as empresas burlam o fisco e fazem caixa dois? Por que a facilidade em remeter fortunas ao exterior? O que dificulta a transparência na contabilidade dos partidos? Onde estão os furos nos financiamentos de campanhas? Por que tantas fraudes em licitações? Isso, sim, é legislar.
Uma CPI não deveria jamais encerrar seus trabalhos apresentando à nação um rol de suspeitos. Para não correr o risco de falso testemunho, melhor não nomeá-los se não há provas convincentes e contundentes. Toda pessoa, cuja honra é maculada levianamente em poucos minutos está fadada a passar o resto da vida tentando limpar o seu nome.
Cabe ao Ministério Público e à polícia investigar, apontar e punir os que comprovadamente infringiram a lei. As CPIs deveriam sobremaneira debruçar-se sobre o desempenho do Congresso e apurar as causas da corrupção, da malversação, da quebra do decoro parlamentar. E essas causas muitas vezes deitam raízes na própria legislação que rege as nossas instituições e que mais parece um queijo suíço, tantos os buracos pelos quais se introduz a ação criminosa. E a legislação tem sua origem no Congresso. Legislar é a função precípua dos que são eleitos parlamentares.
O povo tem o direito de fazer tudo que a lei não proíbe; contudo, as autoridades só deveriam fazer o que a lei permite. É desalentador ver uma CPI desaguar num mar de ilações, quando se esperava que, alertado por ela, o Congresso tomasse a si a tarefa de apressar a reforma política. O que é feito para impedir que partidos incorram novamente em maracutaias?
Desde que me entendo por gente observo que certas palavras resumem os paradigmas que mobilizam a nossa vida política. Nos anos 50/60, o tema era desenvolvimento; nos anos 70/80, democracia; nos anos 90, modernização; agora, ética.
A ética resvala para o moralismo udenista quando desvinculada da produção de sentido. Note-se que a moral tende a cair no moralismo, mas sequer existe o vocábulo ‘eticismo’. Porque a ética, tão bem enfatizada nas obras de Aristóteles, implica princípios universais, perenes, norteadores dos grandes projetos humanos. É ela que nos fornece os elementos para o “discernimento militante”, como diz Emmanuel Mounier.
Se os nossos partidos políticos perdem de vista as estratégias históricas, trocam o projeto de nação pelo de eleição, deixam de produzir sentido à nação, e se tornam meros consórcios de disputa de poder, então a ética volatiliza-se na abstração dos discursos demagógicos e os políticos resvalam para o terreno da hipocrisia. Hipócrata era o ator que, no antigo teatro grego, fazia parte do coro que proclamava o contrário do que de fato ocorria no palco.
Mais grave que a corrupção é uma eleição desancorada de consistentes projetos capazes de fazer o Brasil não ter vergonha de si mesmo, de suas crianças consumidas pelo narcotráfico, de multidão deambulando sem-terra, enfim, projetos que alterem o mais grave de nossos problemas nacionais: a desigualdade social. Não é a um candidato que o eleitor quer dar o seu voto, é à esperança.
Frei Betto é escritor, autor de A mosca azul – reflexões sobre o poder (Rocco), entre outros livros.
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