segunda-feira, 21 de julho de 2008

Crise dos alimentos ou crise do neoliberalismo?



Ariovaldo Umbelino de Oliveira*

Parece não haver mais dúvida nenhuma. As políticas neoliberais aplicadas à agricultura e ao comércio mundial de alimentos é a razão principal de mais esta crise que se abateu sobre os alimentos na atualidade.

A crise alimentar, portanto, é resultado da total incapacidade do mercado para construir uma política mundial de segurança ou mesmo de soberania alimentar. Sua explicação torna-se fundamental, pois com a crise virão os sinais da necessidade de sua própria superação. Vários são os fatores explicativos para se entender a atual conjuntura da falta da produção de alimentos.

Em primeiro lugar, deve-se destacar e colocar no centro da explicação o fato de se estar diante uma crise estrutural no interior do sistema produtivo que o capitalismo adotou no neoliberalismo. Depois da criação da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, a FAO, e do advento da revolução verde, o mundo capitalista adotou um sistema de controle da produção de alimentos baseado no sistema de estoques. Esta sistemática tinha por objetivo garantir excedentes agrícolas alimentares que permitisse simultaneamente, garantir a oferta de alimentos diante o fantasma da fome, e a regulação de seus preços contra as ações especulativas dos jogadores do mercado das bolsas de valores. O sistema adotado é aquele da colocação dos estoques no mercado e do império absoluto do livre comércio. Ou seja, o mercado através da disponibilidade dos estoques seria o regulador da oferta da produção de alimentos. Essa mudança revela neste momento suas conseqüências: a crise.

O fato mais interessante e revelador desta crise é que ela se manifesta em um momento que está crescendo a produção mundial de alimentos. Os indicadores deste crescimento aparecem na safra mundial de 2007/8, por exemplo, na produção de trigo que apresentou um crescimento de 2,3% da safra passada. E também o milho com a taxa de 9,4% e o arroz com 1,8%. A soma dos demais grãos exceto a soja, apresentou elevação da produção em 3,9%.

Entretanto, quanto aos estoques ocorreu exatamente o processo inverso: o decréscimo. Em relação ao trigo, por exemplo, ocorreu uma redução de 9,9%. Os estoques mundiais de milho também caíram 4,8%. Os de soja baixaram em 22%, e os demais grãos, exceto o arroz, também tiveram seus estoques reduzidos em 16,6%. Apenas os estoques de arroz conseguiram crescer 1,2%.

Trata-se, portanto, de uma crise estrutural, do cerne do modo capitalista de produção em sua versão neoliberal. O capitalismo é incapaz de garantir oferta de alimentos para toda a humanidade. Com a crise revela-se o fracasso do império da agroquímica na agricultura com seus agrotóxicos e a falência antecipada da transgenia como alternativa biológica da garantia de aumento crescente da produção de alimentos.

Com a redução dos estoques de alimentos e da elevação de seus preços, os fundos de investimentos passaram a investir no mercado futuro, das commodities (milho, soja, trigo e arroz, principalmente). Este processo meramente especulativo atua no controle privado dos estoques e sobre a possibilidade de oferta de alimentos no mercado futuro. Dessa forma, todas as commodities têm já preços para o final do ano ascendentes.

Em simultaneidade com estes dois processos, articula-se a segunda causa: a opção estadunidense pela produção do etanol a partir do milho, assim como o caminho seguido pelos países da União Européia em produzir o etanol a partir de grãos. Esta causa, que aparece como conjuntural, rapidamente pode se tornar estrutural. É óbvio, que o efeito desta opção dos EUA - hoje o maior produtor mundial de etanol - fez com que uma parte do milho destinado à alimentação humana e à produção de ração animal fosse destinada à produção de etanol. Este aumento rápido do consumo do milho gerou mecanismos especulativos na queda dos estoques. Essa queda, por sua vez, puxou para cima os preços da soja, trigo e arroz. Cabe esclarecer também, que os produtores de etanol nos EUA, não plantam a matéria prima que consomem, compram-na no mercado, inflando os preços.

Os EUA não têm mais terras agricultáveis disponíveis para ampliar sua produção de milho e continuar mantendo igualmente sua produção de trigo e soja. E a essa questão interna dos EUA se soma o aumento do custo de produção, pelo efeito do aumento do preço do barril de petróleo.

Assim, a terceira causa surge. Já há previsões para que o preço do barril de petróleo chegue a 200 dólares. Como todos sabem, toda a produção do agronegócio na revolução verde está assentada no setor agroquímico – que é comandado pela lógica do preço do petróleo. Com a subida do preço do petróleo, sobe os agroquímicos e também o custo da produção agropecuária e, consequentemente, esta pressão atua no sentido do aumento dos preços dos alimentos.

Em quarto lugar, aparece o aumento do consumo de alimentos particularmente devido à melhoria das condições de vida de algumas populações, sobretudo da China e da Índia. Estes dois países, têm ampliado a importação de alimentos. Entretanto é preciso deixar claro que esta não é a razão principal, como se quer fazer crer no Brasil. Desta forma, é preciso ter cuidado ao se apontar este ou aquele país como responsável de aumento do consumo, quando parece estar havendo um aumento geral do consumo de alimentos. E este não é o principal fator da elevação dos preços dos alimentos.

No caso brasileiro, o processo de elevação dos preços dos alimentos tem vínculos estruturais e conjunturais. Como conseqüência da crise mundial e da elevação dos preços internacionais do trigo associado ao bloqueio estabelecido pela Argentina em relação às exportações deste cereal para o Brasil, o preço do trigo e de seus derivados vão aumentar no país. O Brasil é o maior importador mundial de trigo: consome 10 milhões de toneladas, e produz apenas 3 milhões. Em safras passadas, quando o Brasil conseguiu boas colheitas no mercado interno, destinou parte para exportação. É o mesmo que estará acontecendo este ano com o arroz. Como o preço subiu, os arrozeiros querem exportar. O governo chegou a propor o bloqueio, mas voltou atrás, pois assim iria ferir o receituário neoliberal que se aplica somente aqui no Brasil na agricultura.

O Brasil é o único país do mundo onde se prega essa tese maluca do neoliberalismo, de que comida tem que ser oferecida no mercado a quem puder pagar mais, como propõem os economistas neoliberais. Claro que isso tira do país a possibilidade de construir tanto segurança como soberania alimentar. A lógica do neoliberalismo é uma só: manda-se comida a quem paga mais, não a quem tem fome. Nem para o povo do próprio país esta oferta fica assegurada.

É por isso que a crise atual é estrutural e revela a incapacidade da agricultura capitalista em garantir a oferta de alimentos a preços baixos aos brasileiros e à população mundial. Somente uma política agrícola fundada na agricultura camponesa seria capaz de garantir a soberania alimentar às populações dos diferentes países do mundo. A reforma agrária como estratégia de política econômica de produção de alimentos continua, portanto, na agenda política, e, somente ela pode superar crise de alimentos.


*Ariovaldo Umbelino é professor titular de geografia agrária da USP e diretor da Abra (Associação Brasileira de Reforma Agrária).

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