Abusos invisíveis
Cristovan Buarque
Nos últimos dias, o sistema judiciário fez duas
descobertas: existem algemas no Brasil e o uso
delas é um abuso, ainda mais grave quando na
frente da televisão.
A descoberta tem uma explicação: as algemas
eram invisíveis enquanto os presos eram pobres e
sem camisas. Descobriram que há abuso no uso
de algemas. Pena que não estejamos descobrindo
outros abusos, porque eles ainda não chegaram
aos ricos.
Durante séculos, nosso país utilizou o seqüestro
de africanos para servirem como trabalhadores
em nossa agricultura e ninguém via como seqüestro.
Se um único brasileiro branco e livre
fosse seqüestrado na África e levado para outro
continente, a elite empresarial brasileira daquele
tempo logo descobriria que havia um abuso na
retirada de uma pessoa de sua casa para levá-la
e vendê-la para o trabalho forçado. Esses mesmos
escravos eram sujeitos à tortura, às penas de
trabalho forçado, e à venda de seus filhos, como
também às chibatadas. Mas era com os pobres,
excluídos, que o abuso ficava invisível. Não era
visto. O sistema judiciário daquele tempo ainda
não tinha descoberto que isso acontecia.
No século 21 ainda existem prisões diferenciadas
para pessoas que cometeram o mesmo tipo
de crime. Quando, raramente, um criminoso rico
vai preso e fica preso, tem direito a uma prisão
especial, diferente das infernais prisões onde são
jogados os criminosos pobres. Por isso, não é visto
ainda como abuso colocar um preso pobre nas
condições das prisões comuns. Se algum dia, um
rico for preso e não tiver um diploma superior,
provavelmente o sistema judiciário brasileiro vai
fazer outra grande descoberta: o abuso da má
qualidade das prisões do brasileiro comum. *Senador
Cerca de 15 milhões de adultos não sabem ler e
outros 30 milhões não entendem o que lêem, porque
os analfabetos, todos eles, são filhos de famílias
humildes. Se um dia aparecesse um rico analfabeto,
certamente o sistema judiciário faria a grande
descoberta de que o poder público é omisso ao
deixar que isto aconteça no Brasil. Mas, os analfabetos
são pobres, invisíveis.
Estima-se que a cada minuto de ano letivo (200
dias, com 4 horas) 60 crianças abandonam a escola.
Isso não é visto como abuso. Porque o abuso
não é visto. Se uma única criança rica fosse impedida
de estudar, o abuso seria rapidamente descoberto
e provavelmente tratado. Como acontece
quando faltam remédios para as doenças que vitimam
os ricos e os pobres, mas sem qualquer
criminalização das autoridades quando os hospitais
públicos ficam superlotados.
As autoridades do Poder Judiciário têm duas
desculpas para explicar a invisibilidade dos abusos.
A primeira, é que só podem agir quando
provocadas por um advogado, e estes só trabalham
para os ricos. O Poder Judiciário, portanto estaria
isento. Não teria culpa de que os defensores
públicos sejam poucos, e de que os advogados mais
competentes não trabalhem para os pobres. Esquecem
de dizer que além da competência, influi também
a rede de conexões que o advogado tem. A
segunda justificativa é que a culpa é do Poder
Legislativo que faz leis imperfeitas.
A culpa é de todos nós que aceitamos um país
onde há dois tipos de pessoas: os incluídos,
beneficiários da lei, e os excluídos, vítimas da lei:
A culpa é de todos que toleramos os abusos invisíveis.
descobertas: existem algemas no Brasil e o uso
delas é um abuso, ainda mais grave quando na
frente da televisão.
A descoberta tem uma explicação: as algemas
eram invisíveis enquanto os presos eram pobres e
sem camisas. Descobriram que há abuso no uso
de algemas. Pena que não estejamos descobrindo
outros abusos, porque eles ainda não chegaram
aos ricos.
Durante séculos, nosso país utilizou o seqüestro
de africanos para servirem como trabalhadores
em nossa agricultura e ninguém via como seqüestro.
Se um único brasileiro branco e livre
fosse seqüestrado na África e levado para outro
continente, a elite empresarial brasileira daquele
tempo logo descobriria que havia um abuso na
retirada de uma pessoa de sua casa para levá-la
e vendê-la para o trabalho forçado. Esses mesmos
escravos eram sujeitos à tortura, às penas de
trabalho forçado, e à venda de seus filhos, como
também às chibatadas. Mas era com os pobres,
excluídos, que o abuso ficava invisível. Não era
visto. O sistema judiciário daquele tempo ainda
não tinha descoberto que isso acontecia.
No século 21 ainda existem prisões diferenciadas
para pessoas que cometeram o mesmo tipo
de crime. Quando, raramente, um criminoso rico
vai preso e fica preso, tem direito a uma prisão
especial, diferente das infernais prisões onde são
jogados os criminosos pobres. Por isso, não é visto
ainda como abuso colocar um preso pobre nas
condições das prisões comuns. Se algum dia, um
rico for preso e não tiver um diploma superior,
provavelmente o sistema judiciário brasileiro vai
fazer outra grande descoberta: o abuso da má
qualidade das prisões do brasileiro comum. *Senador
Cerca de 15 milhões de adultos não sabem ler e
outros 30 milhões não entendem o que lêem, porque
os analfabetos, todos eles, são filhos de famílias
humildes. Se um dia aparecesse um rico analfabeto,
certamente o sistema judiciário faria a grande
descoberta de que o poder público é omisso ao
deixar que isto aconteça no Brasil. Mas, os analfabetos
são pobres, invisíveis.
Estima-se que a cada minuto de ano letivo (200
dias, com 4 horas) 60 crianças abandonam a escola.
Isso não é visto como abuso. Porque o abuso
não é visto. Se uma única criança rica fosse impedida
de estudar, o abuso seria rapidamente descoberto
e provavelmente tratado. Como acontece
quando faltam remédios para as doenças que vitimam
os ricos e os pobres, mas sem qualquer
criminalização das autoridades quando os hospitais
públicos ficam superlotados.
As autoridades do Poder Judiciário têm duas
desculpas para explicar a invisibilidade dos abusos.
A primeira, é que só podem agir quando
provocadas por um advogado, e estes só trabalham
para os ricos. O Poder Judiciário, portanto estaria
isento. Não teria culpa de que os defensores
públicos sejam poucos, e de que os advogados mais
competentes não trabalhem para os pobres. Esquecem
de dizer que além da competência, influi também
a rede de conexões que o advogado tem. A
segunda justificativa é que a culpa é do Poder
Legislativo que faz leis imperfeitas.
A culpa é de todos nós que aceitamos um país
onde há dois tipos de pessoas: os incluídos,
beneficiários da lei, e os excluídos, vítimas da lei:
A culpa é de todos que toleramos os abusos invisíveis.
Nenhum comentário:
Postar um comentário