Crise de alimentos Entrevista com Antônio Carlos, professor da USP
Créditos: Professor Edney
Em entrevista ao site da RHBN, Antônio Carlos Robert Moraes, coordenador do Laboratório de Geografia Política da USP, falou sobre assuntos polêmicos, como a conciliação entre agricultura familiar e agronegócio, produtos transgênicos e o crescimento demográfico da China.
RHBN – Malthus continua atual?
Antônio – A teoria malthusiana não contemplava o aprimoramento tecnológico que propiciou um significativo incremento da produtividade agrícola ao longo do século XX e possibilitou um volume de produção da agricultura sem precedentes na história da humanidade. A extensão das áreas cultivadas na superfície terrestre nunca foi tão ampla. A sofisticação das formas de cultivo também atingiu um patamar técnico desconhecido antes.
Contudo, tal progresso material não foi acompanhado de uma maior eqüidade social, e os benefícios desse avanço continuam tão concentrados quanto na época do reverendo Malthus, seja no que tange a países ou a classes sociais. A escassez atual de alimentos é explicável mais pela economia política do que pela demografia, mais pelo modo de apropriação do produto agrícola e pela sua destinação mercantil do que pelo crescimento populacional.
O uso de vegetais para a geração de combustíveis aumentou a sua demanda e elevou seu preço num mercado bastante internacionalizado como o atual, agravando a crise de abastecimento alimentar nas áreas mais pobres da economia-mundo contemporânea. Cabe observar, portanto, que se trata de uma escassez bem delimitada do ponto de vista geográfico e social.
RHBN – Como as crises de fome podem afetar a soberania das nações?
Antônio – A carestia é um elemento potencialmente estimulador de rebeliões e revoltas contra qualquer que seja a ordem estabelecida, estando na base de levantes populares díspares (como a Revolução Francesa e a Guerra de Canudos). Os governos ficam mais inseguros nas situações de carência de alimentos, sendo a abundância de víveres um dos fatores de estabilidade política dos Estados. Os lugares onde grassa a fome constituem terreno fértil para questionamentos do poder reinante e para a doutrinação de luta por mudanças institucionais. No que interessa diretamente a soberania estatal, a escassez de comida pode atuar como motivação de intervenções estrangeiras num país, inclusive com tais ações sendo politicamente legitimadas como ajuda humanitária.
RHBN – É possível conciliar agronegócio e agricultura familiar?
Antônio – Uma política agrária bem estruturada pode – notadamente num país extenso – definir áreas para o exercício de diferentes sistemas agrícolas, cada um com suas peculiaridades técnicas e seus arranjos produtivos próprios. A variedade dos meios naturais (em termos de topografia, fertilidade do solo, acesso a água, etc.) e seus níveis de vulnerabilidade ecológica já fornecem indicadores importantes para a divisão dos espaços agriculturáveis. Diferentes produtos agrícolas demandam variadas formas de produção, gerando mercadorias voltadas a distintos consumos. A monocultura de larga escala (da soja, do milho ou da cana) tende à quimificação e à mecanização do cultivo e visa o consumo industrial e/ou o mercado externo. Já a agricultura de abastecimento interno de alimentos tem vários itens de sua pauta produzidos (alguns com alto nível tecnológico) por agricultores familiares, não raro cooperativados.
Alguns produtos de alto valor mercantil (como certas flores, e mesmo as vinhas) exigem a prática da chamada agricultura de jardinagem, onde o trato individual da planta se faz necessário. Em meio aos vários tipos de produção agrária a questão da propriedade da terra se impõe como essencial. A diversidade de quadros naturais do território brasileiro permitiria a convivência sustentável de diferentes sistemas agrícolas. Contudo, a concentração fundiária e a grilagem de terras públicas emergem como obstáculos para a implantação de um zoneamento agrário de maior variedade de usos e de um modelo de produção mais socialmente integrador na agricultura nacional.
RHBN – E a China? Ela sempre possuiu uma agricultura de base familiar e passou por diversas crises de fome.
Antônio – A estrutura camponesa da China conviveu com um sistema tributário pesado e organizado, não raro pago em espécie pelas comunidades rurais. Além disso, trata-se de um contingente populacional ímpar, bilionário há décadas, o que torna a história chinesa singularíssima e pouco afeita a comparações. No quadro atual do país salientamos a rápida urbanização e a industrialização com grande custo ambiental como elementos que retroagem na vida rural tradicional.
RHBN – E sobre os transgênicos? Eles são uma solução possível?
Antônio – A questão dos transgênicos é complexa e delicada, envolvendo várias dimensões de problemas em seu equacionamento. O tema de sua segurança para o consumo humano é bastante técnico e de difícil debate, e hoje alimenta pesquisas de fronteira no campo científico. A influência dos organismos geneticamente modificados no ambiente já é mais estudada e melhor entendida, havendo riscos de hibridização com espécies nativas passíveis de controle com manejo ambiental adequado.
Por outro lado, as sementes transgênicas são mais fortes, demandando uma menor utilização de produtos químicos (inseticidas e adubos) nas lavouras, e garantido produções mais previsíveis. Finalmente, há o tema propriedade das patentes e do monopólio das espécies aprimoradas em laboratório, ainda carente de consenso no plano das relações internacionais. A Agenda 21, elaborada em 1992, como resultado da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento e Meio Ambiente no Rio de Janeiro, preconiza o “princípio da precaução” no trato de questões ainda envoltas em polêmicas, como a analisada.
O mercado, todavia, impõe forte pressão prática sobre a produção agrícola, animando a inovação técnica na busca pelo aumento constante da produtividade da agricultura. Enfim, a regulação quanto ao uso dos transgênicos emerge como um desafio para os governos e as sociedades contemporâneas. No cenário do mundo atual, relacionar diretamente a superação do déficit alimentar com o uso da agricultura transgênica é estratégia de marketing de empresas multinacionais do setor.
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