Ignorância ou hipocrisia?
Mino Carta
O Ato Institucional nº 5 desabou sobre o Brasil faz 40 anos, o aniversário cai neste dia 13 de dezembro. Com ele, a ditadura tirou a máscara? Foi ato de pura formalidade, as premissas já estavam fincadas, como estacas inabaláveis.
Somos imbatíveis neste jogo das aparências, nós, do privilégio. E também somos bandeirolas ao vento da conveniência contingente. Até ontem lia e ouvia da mídia nativa que o regime de exceção de 21 anos resultou de uma revolução. Agora fala-se em ditadura militar. Permito-me ainda contestar o adjetivo militar.
Leio entre atônito e perplexo o suplemento de O Estado de S. Paulo sobre a edição do AI-5. O título de abertura informa a platéia que o edito assassinou a liberdade. E já não fora assassinada no dia 1º de abril de 1964, quando o golpe derrubou o presidente democrática e constitucionalmente eleito? E que esperar, a partir de então, daquele gesto de inaudita prepotência, invocado pelos inesgotáveis donos do poder e sua mídia, e praticado por seus gendarmes, convocados para executar o serviço sujo?
Diz o Estadão no seu suplemento que a sociedade brasileira apoiou o golpe. Que sociedade, caras-pálidas? Agrada-me, entre parênteses, usar o lugar-comum, tão apropriado, no entanto, para acentuar a palidez dos rostos privilegiados. Sim, a sociedade dos clubes faustosos, dos bairros elegantes, das redações abastadas, e do seu time aspirante, sequioso de ascensão. Enfim, dos democratas da democracia sem povo.
O golpe, é do conhecimento até do mundo mineral, foi invocado e estimulado para interromper a subversão em marcha, esta que espero em vão até hoje, com a inestimável colaboração da CIA e do embaixador dos Estados Unidos, Lincoln Gordon. Agora me pergunto: as manifestações midiáticas na comemoração do AI-5 são fruto de ingenuidade ou de desfaçatez, da ignorância ou da hipocrisia?
Algo está certo na apresentação do Estadão. A afirmação de que não houve outro diário atingido pela censura nascida do AI-5, como Palas Athena dos joelhos de Zeus. Justo lembrete, no mesmo momento em que os jornalões não hesitam em falar em ditadura fardada e anos de chumbo. Tamanha capacidade de vestir a roupa nova é de comover, ou estarrecer, como preferirem.
Nada de surpresas. Cabe, porém, estabelecer outras diferenças, a bem do futuro. O qual será melhor se a memória for preservada. A da censura e da feroz perseguição política e da tortura, crimes contra a democracia e a humanidade, praticados em conseqüência do golpe de 1964 e do golpe dentro do golpe de 1968.
A censura deu-se em três diferentes patamares, é verdade factual. O Estadão, que no seu suplemento se atribui o papel de líder na resistência à censura, contou de fato com concessões que outros não tiveram. Foi censurado na redação, foi autorizado a preencher espaços cortados com versos de Camões (e receitas de bolo no caso do Jornal da Tarde) e ficou livre dos censores no dia do seu centenário, dia 4 de janeiro de 1975, no quadro de evidente homenagem da ditadura a uma casa que na origem militara integralmente ao seu lado.
A censura no Estadão foi o desfecho de uma briga em família, a mesma que acabou por cassar Carlos Lacerda, favorito da família Mesquita à sucessão presidencial. Acima dos militares havia quem não concordasse com isso, e os rebeldes foram punidos, embora, lá pelas tantas, pudessem ser recebidos de volta como filhos pródigos.
Outro patamar para Veja, que eu então dirigia, primeiro censurada na redação por militares, depois por policiais civis e finalmente, de abril de 1974 a abril de 1976, obrigada a remeter diariamente o material para as dependências da Polícia Federal em São Paulo e, aos sábados, para o domicílio dos censores. Por algumas edições, não mais que seis, colocamos em lugar dos espaços cortados gravuras de gárgulas medievais. Os titulares das tesouras enfim entenderam, e os diabinhos foram proibidos.
No pior dos patamares ficou a imprensa alternativa, apresentada como nanica por quem se supõe gigantesco, e que eu chamaria de “tendência”. Sem exclusão do Pasquim e de O São Paulo, jornal da Cúria Metropolitana de São Paulo, ré por ser a casa de dom Paulo Evaristo Arns. Tinham estes desafetos que remeter o material para a sede central da PF, em Brasília, os semanários toda terça-feira.
O primeiro a ser liberado foi o Estadão. A censura só deixou os demais entre abril de 1976 e meados do ano seguinte. Ao celebrar seu centenário, o jornal da família Mesquita trouxe um suplemento bem mais volumoso do que aquele referido acima. Contava a sua história desde o começo e dedicava largo capítulo ao renascimento depois da encampação sofrida durante o Estado Novo.
Foi então que se deu a primeira reforma importante de um jornal brasileiro, iniciada sob a influência decisiva de meu pai Giannino em 1948 e assumida nos anos 50 por Claudio Abramo. No suplemento de 4 de janeiro de 1975 falava-se de um certo cavalheiro muito bem-educado de sobrenome Carta que andava pela redação sem propósitos melhor especificados. Quanto a Claudio Abramo, era simplesmente ignorado.
Não foi aquele um dia sem censura, conquanto faltassem os censores da ditadura. Se um marciano surgisse subitamente em cena, não conheceria toda a história. Assim como hoje, o mesmo marciano não saberia, a basear seu conhecimento na exclusiva leitura do Estadão, como de fato se deu a censura e qual foi o papel desde as preliminares do golpe de 1964.
Receio que no Brasil atual haja espaço para inúmeros marcianos, e não somente entre os leitores do Estadão. Dedico este texto ao planeta Marte.
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