domingo, 7 de dezembro de 2008

Uma boa leitura para o domingo....

A valsa das borboletas

As narrativas de José Cardoso Pires e Jean-Dominique Bauby funcionam de modo a resgatar a dignidade do homem diante de situações que teriam tudo para reduzi-lo à condição de simples joguete do destino, de “ser” impotente diante de uma condição que lhe escapa à compreensão

Luís Fernando Prado Telles


É com desconforto e uma certa dose de temor que acompanhamos os relatos dos pouco volumosos, e nem por isso leves, De profundis, valsa lenta, do escritor português José Cardoso Pires (1925-1998), e O escafandro e a borboleta, do jornalista francês Jean-Dominique Bauby (1952-1997).

José Cardoso Pires, autor de vasta obra, em que se incluem os indispensáveis O hóspede de Job (1963) e O delfim (1968), e Jean-Dominique Bauby, ex-redator chefe da revista Elle, foram vítimas do que a medicina denomina de acidente vascular cerebral e os seus relatos constituem-se como testemunhos dessa dolorosa experiência. O ano fatídico para ambos foi o de 1995. Para Cardoso Pires a reviravolta se deu numa manhã de quinta feira, em janeiro daquele ano; para Bauby, o golpe ocorreu em dezembro, mais precisamente no dia 8, uma sexta-feira. O Escafandro e a borboleta foi concluído em 1996, já o De profundis, valsa lenta, só foi escrito em 1997. Os dois relatos foram publicados no mesmo ano de 1997, respectivamente na França e em Portugal. No Brasil, o relato de Cardoso Pires só foi publicado em 1998, pela Bertrand Brasil, e veio precedido por um prefácio em forma de carta escrito pelo médico João Lobo Antunes, amigo de Cardoso Pires e irmão do também médico e renomado escritor António Lobo Antunes. Já o livro de Bauby teve a primeira edição de sua tradução brasileira publicada ainda no ano de 1997, pela Martins Fontes. Houve uma segunda tiragem dessa edição, agora, em 2008; o que coincidiu com o lançamento, no Brasil, do filme homônimo baseado no livro.

O temor que sentimos diante dos dois relatos tem a ver com a experiência dolorosa da alteridade que neles é encenada. Em ambos, os narradores vêem-se como outros, distintos do que foram a vida toda. Enxergam-se reféns de uma situação sobre a qual não têm controle e, desse modo, conduzem-nos a nos colocarmos diante da incerteza de nosso próprio futuro, diante de nossa tragédia em aberto.

A memória da desmemória

O título do relato de Cardoso Pires é composto a partir do início do salmo (“De profundis clamavi ad te Domine”) que costuma ser utilizado na liturgia católica dos funerais. Este salmo é também conhecido como o “cântico da esperança”, e é declamado em forma de súplica. Em vez de cântico, o “De profundis” de Cardoso Pires é caracterizado como uma “valsa lenta”. Uma valsa de que participam um “eu” e um “ele” do escritor português, um “eu” que tenta lentamente recuperar do mais profundo de si as lembranças de um “ele” desmemoriado.

O acidente vascular cerebral de Cardoso Pires o conduziu ao que ele chamou de “morte branca”, um estado mental em que se viu destituído da memória e da capacidade de articulação da linguagem, fosse ela falada ou escrita. A ironia de tal “acidente” não podia ser maior, visto que privou o escritor daquilo que lhe era essencial. Conforme nos conta João Lobo Antunes, “o José Cardoso Pires sofria de uma afasia fluente e grave, ou seja, não era capaz de gerar as palavras e construir as frases que transmitissem as imagens e os pensamentos que algures no seu cérebro iam irrompendo” (p. 12). Diante da impossibilidade de linguagem e de reter nomes e identificá-los às coisas e pessoas, Cardoso Pires nos conta que durante todo o período em que esteve doente via-se como um estranho, não se reconhecia como um “eu”, permanecia como um constante desconhecido de si próprio, já que não sabia o seu nome e nem o seu passado, como diz: “me transferi para um Outro sem nome e sem memória” (p. 26).

Talvez seja esse o dado mais terrível que nos salta aos olhos do relato de Cardoso Pires, a perda da memória, da identidade e das relações afetivas. Seu relato se abre com a cena do café da manhã daquela quinta-feira, em que o vemos acompanhado por sua esposa Edite. A primeira fala que Cardoso Pires dirige a sua companheira é “Como é que tu chamas?”. A esposa, depois de responder, pergunta ao escritor o seu nome, ao que ele responde, “Parece que é Cardoso Pires”. A cena seguinte à do café da manhã é bastante simbólica: ao se barbear, diante do espelho, o escritor já não se reconhecia na própria imagem refletida: “A partir de então, tudo o que sei é que me pus ao espelho da casa de banho a barbear-me com a passividade de quem está a barbear um ausente – e foi ali. Sim, foi ali. Tanto quanto é possível localizar-se uma fracção mais que secreta da vida, foi naquele lugar e naquele instante que eu, frente a frente com a minha imagem no espelho mas já desligado dela, me transferi para um Outro sem nome e sem memória e por conseqüência incapaz da menor relação passado-presente, de imagem-objeto, do eu com outro alguém ou do real com a visão que o abstracto contém.” (p. 26-27) Essas duas cenas iniciais demarcam a modificação na forma de o escritor relacionar-se com o mundo. A sua imagem não era mais sua, da mesma forma que a fala sobre si também já não era sobre uma primeira pessoa, mas sobre uma terceira. Tal como relata, o que mais chamou sua atenção daquela fala dirigida à mulher não foi apenas a incerteza expressa pela palavra “parece”, mas o uso do verbo na terceira pessoa, “é”, para se referir ao seu nome. O resultado dessa alienação de si, comenta o escritor, é que se perde a memória e sem ela “esvai-se o presente que simultaneamente já é passado morto. Perde-se a vida anterior. E a interior, bem entendido, porque sem referências do passado morrem os afectos e os laços sentimentais. E a noção do tempo que relaciona as imagens do passado e que lhes dá a luz e o tom que as datam e as tornam significantes, também isso. Verdade, também isso se perde porque a memória, aprendida por mim, é indispensável para que o tempo não só possa ser medido como sentido.” (p. 27)

A própria existência do relato de José Cardoso Pires talvez se justifique enquanto resposta a essa condição. Só por meio do relato o “eu” de Cardoso Pires pôde evitar que aquele seu “outro” se perdesse. Além disso, a narrativa tem o poder de unir o que antes parecia irreconciliável e de dar uma ordenação ao que parecia caótico. Por meio dela, José Cardoso Pires vai tentando incluir no curso da vida de seu “eu” recuperado aquele “outro” acidental. Isso garante, de certo modo, uma identidade àquele “outro” no sentido de que ele pode ser, em vários momentos, ainda identificado ao “eu”. Recuperar o traçado da desmemória faz com que aquele período da vida do escritor deixe de ser um hiato sem sentido e passe a se constituir como uma experiência. Desse modo, se, por um lado, há a constante demarcação da distinção entre um “eu” e um “outro”, por outro, este só é possível de ser recuperado pela busca de identificação com aquele. Assim, ao mesmo tempo em que o “eu” de Cardoso Pires se vê espantado diante das criações lingüísticas do seu “outro” (tais como a palavra “simosos” para se referir aos mais vários objetos como os “óculos” ou uma “gilete”, ou a palavra “cachimbo” sendo usada para identificar os chinelos), também consegue reconhecer-se naquele “outro” em alguns momentos. É o caso, por exemplo, quando o “eu” comenta o episódio de um teste de raciocínio por que passara o seu “outro”. De certo modo, comemora a ironia construída numa resposta dada à neurologista quando da aplicação do teste. À simples pergunta feita pela médica “Onze menos nove quantos são?”, o “outro” responde “Nada, senhora doutora. Qualquer coisa noves fora é nada”. Por essa resposta ingênua e brincalhona, Cardoso Pires reconhece ressurgir naquele “outro” o “eu” de sua infância: “O segredar da infância a assaltar-me numa brincadeira de tabuada, apetece-me anotar neste ponto da minha narração. Eu há anos, há séculos, na Escola Primária do Largo do Leão, em Lisboa, a declamar o ’nove, noves fora, nada`.” (p. 39) Por estas franjas de memória Cardoso Pires vai tentando alinhavar o “outro” ao seu “eu”, tal como quando relata o estranhamento daquele quando percebe a palavra “banhos” escrita de modo invertido numa placa do hospital; ou quando revê a sua “letra” nos testes de fala e de escrita e admite que em sua “caligrafia enlouquecida” o “J se mantém reconhecível”, o “J de José”.

São estes resquícios do “eu” no “outro” que permitem a Cardoso Pires traçar os liames de sua narrativa, a qual acaba pontuando o momento do “reconhecimento” de sua tragédia, uma vez que promove a experiência antecipada de seu desfecho: “No escuro, junto a dois homens adormecidos, tento ver para trás do meridiano da morte que acabei de dobrar esta manhã, mas só encontro névoa luminosa. Dentro de uma ou duas horas, com as recordações da Edite e dos amigos em visita, vou continuar o reconhecimento da geografia sonâmbula por onde naveguei e que não era mais do que uma transfiguração do universo do meu quarto e de uns tantos passos à margem dele. Serão, rapaz, os teus últimos passeios do exílio, daí em diante saúde e baile é que é preciso”.(p. 59)

A “data de borboletas”, esta é a metáfora da morte extraída por Cardoso Pires da conversa de “loucos” que se dá entre Martinho e Ramiro, os “dois homens adormecidos” que lhe faziam companhia no quarto do hospital. Essa metáfora é transformada em alegoria pela reprodução de uma imagem (uma montagem fotográfica) que o escritor chama de “mariposa-caveira”, uma espécie de borboleta que tem o corpo formado por um esqueleto humano. Infelizmente, pouco tempo de “saúde e de baile” teve o escritor após ter saído do “exílio”, conforme diz. Não muito tempo depois da publicação desse seu relato em Portugal, José Cardoso Pires veio a ser acometido novamente por acidente vascular cerebral que o levou a um coma profundo e a conhecer, em 26 outubro de 1998, a sua “data de borboletas”.

A voz silenciosa

Se a Cardoso Pires foram linguagem e memória que faltaram, a Jean-Dominique Bauby seriam estas que garantiriam ainda uma sobrevida minimamente suportável. O acidente vascular cerebral que acometeu Bauby conduzira-o a uma imobilidade quase que total, não fora pelas pálpebras do olho esquerdo: o único movimento que conseguia realizar era o de piscar esse olho. Assim, Bauby deixa o seu corpo para passar a habitar o que ele chama de seu “escafandro”, apenas acompanhado por suas memórias, suas imaginações, fantasias e sua linguagem, mesmo que silenciosa. A história toda que lemos no livro de Bauby é a transcrição de um relato lento e doloroso “contado” por meio das piscadas de seu olho esquerdo. Uma única piscada significava “sim”, duas significavam “não”. Foi por esse código que Bauby pôde selecionar as letras que lhe eram ditadas e que acabaram por formar as páginas de seu livro.

O escafandro e a borboleta é formado por vinte e oito capítulos cuidadosamente lapidados, compostos mentalmente na íntegra antes de serem escritos, letra a letra. No prólogo, Bauby nos dá uma idéia do imenso trabalho de que resultaram os capítulos: “Na minha mente, remôo dez vezes cada frase, elimino uma palavra, junto um adjetivo e decoro meu texto, parágrafo após parágrafo”. (p. 9-10) Todos os capítulos são intitulados e cada um tem a sua autonomia. Mas, se, por isso, podem ser lidos separadamente, como contos; não deixam de constituir uma unidade, como um romance. A melhor definição, contudo, para os relatos que compõem o livro é a que é dada, ainda no prólogo, pelo próprio autor: “cadernos de viagem imóvel”. (p. 9)

A história dessa “viagem imóvel”, tal como numa narrativa épica, não é contada a partir de seu início, mas começa com o seu herói já dentro do hospital de Berck, saído do coma de vinte dias e sendo apresentado pela primeira vez à sua cadeira de rodas. O primeiro capítulo, intitulado, “A cadeira”, é bem simbólico daquela experiência dolorosa da alteridade. A cadeira passa a representar a sua nova realidade, à qual se vê estranhamente identificado: “não imaginava que relação poderia existir entre mim e uma cadeira de rodas”. (p. 11) Assim, ao longo dos capítulos vamos testemunhando o aprendizado de Bauby em reconhecer-se outro. Conforme diz no início do segundo capítulo, “o choque da cadeira foi salutar”, pois “as coisas ficaram mais claras” e passou a deixar de “fazer castelos no ar”; ou seja, deixara de lado a ilusão de voltar a ser quem era. Assim, se, de início a cadeira de rodas lhe é estranha, aos poucos passa, ironicamente, a ser um meio de criação de identidade. A imagem da cadeira volta a aparecer no capítulo doze, quando Bauby reconhece-se numa personagem sinistra de Alexandre Dumas, o velho Noirtier de Villefort, de O conde de Monte Cristo: “Descrito por Dumas como um cadáver de olhar vivo, homem já quase totalmente afeiçoado para o túmulo, esse inválido profundo não faz sonhar, porém estremecer. Depositário impotente e mudo dos mais terríveis segredos, passa a vida prostrado numa cadeira com rodinhas, e só se comunica por piscar de olhos: uma piscada significa sim; duas, não. Na verdade, o paizinho Noirtier, como o chama a neta com afeição, é o primeiro caso de locked-in syndrome, e até hoje o único, a aparecer em literatura. [...] Desde que meu espírito saiu da bruma espessa em que o tal acidente o mergulhou, pensei muito no paizinho Noirtier”. (pp. 51-52)

É assim, ironicamente, que Bauby acaba por se descrever ao descrever a personagem de Dumas. Aliás, a ironia marca a maioria dos capítulos. É ela que dá o tom, por exemplo, ao terceiro capítulo, quando fala das religiões e de todas as preces já a ele oferecidas, ou do quarto capítulo, em que narra a tarefa homérica do seu banho semanal e justifica a sua vontade de deixar as vestimentas do hospital e voltar a vestir as suas velhas roupas: “Já que é para babar, que seja em cashimere”. (p. 21) Além da ironia, comentários como estes guardam também uma certa dose de humor, por eles o autor nos permite rir, com ele, do inusitado de sua condição. Isso ocorre, por exemplo, quando comenta sobre as dificuldades de seu novo método de comunicação e o efeito que tem a formação de palavras inesperadas: “entendi a poesia desses trocadilhos no dia em que, como eu pedisse meus óculos (lunettes), alguém me perguntou com grande elegância o que eu queria fazer com a lua (lune)...” (p. 26). Esse tom irônico e bem-humorado se mantém em vários momentos do relato, tais como no capítulo em que fala do estranhamento dos demais pacientes do hospital (os quais denomina de “turistas”, visto que lá estavam de passagem) em relação a ele. Ou então quando explica, no capítulo intitulado “O legume”, ter resolvido escrever para os seus amigos para mostrar a eles que ainda não havia se transformado num vegetal, que ainda podia diferenciar-se de um salsão.

Contudo, se, por um lado, a ironia de seu relato aponta, em vários momentos, para uma certa autoderrisão, em vários outros o efeito irônico faz ressaltar o tom trágico. É o que se vê, por exemplo, no belo capítulo intitulado “A Imperatriz”, em que Bauby parece flertar com o busto “em mármore branco” da imperatriz Eugênia, esposa de Napoleão III, madrinha do hospital de Berck, o qual visitara em 1864. O reconhecimento trágico da alteridade se dá quando o flerte é interrompido, como diz, por uma “figura desconhecida que veio a intrometer-se” entre os dois: “Num reflexo da vitrina apareceu um rosto de homem que parecia ter pernoitado em barril de dioxina. A boca era torta, o nariz amarrotado, o cabelo desgrenhado, o olhar apavorado. Um olho estava costurado, e o outro arregalado como o olho de Caim. Por um minuto fixei aquela pupila dilatada sem entender que simplesmente era eu mesmo. [...] Fui tomado pelo acesso de riso nervoso que o acúmulo de catástrofes sempre acaba por provocar quando decidimos tratar o último golpe do destino como piada. Meus estertores de bom humor inicialmente desconcertaram Eugênia, até que ela cedeu ao contágio de minha hilaridade. Rimos até chorar. A fanfarra municipal começou então a tocar uma valsa, e eu estava tão alegre que até me levantaria para convidar Eugênia a dançar se isso fosse de molde”. (p. 29) Surpreendentemente, Bauby consegue criar movimento a partir da imobilidade, tanto a da estátua da imperatriz quanto a sua.

Vários capítulos poderiam ser citados para ilustrar a beleza do relato de Jean-Dominique Bauby. Indispensável, contudo, se faz a menção ao capítulo intitulado “O anjo da guarda”. Este é o modo como se refere à “ortofonista” Sandrine, a responsável por resgatá-lo da incomunicabilidade de seu escafandro. Deste anjo se vale, como diz, “para ouvir a voz de algumas pessoas da família e assim apanhar no ar fragmentos de vida, como quem caça borboletas”. (p. 45) Essas borboletas, uma vez capturadas, são cultivadas no silêncio do seu escafandro: “posso ouvir as borboletas voando pela minha cabeça. É preciso muita atenção e até certo recolhimento, pois o seu adejar é quase imperceptível. Uma respiração mais forte basta para abafá-las”. (p. 105)

Essa fragilidade do som das borboletas representa, aqui, a fragilidade da própria vida, a qual, num átimo, pode ser mudada de rumo ou simplesmente interrompida. Daí talvez a importância da fixação de uma data no relato, a do dia em que foi acometido pelo acidente. Curiosamente, o relato deste dia, o início de tudo, é reservado ao penúltimo capítulo, o qual vem intitulado pelo nome de uma canção dos Beatles: “A day in the life”. Tal canção era a que tocava no rádio da BMW que Bauby dirigia naquela sexta-feira em que resolvera ir pegar o seu filho Théophile para passarem o final de semana juntos, final de semana este que nunca chegou. Os versos de “A day in the life” vão sendo entremeados à narrativa do capítulo e, de certo modo, marcam o seu ritmo. Além do caráter rítmico da introdução dos versos, há que se destacar o fato de que estes funcionam como comentários à própria história que está sendo narrada, como se fossem as vozes de um coro que tem por função preparar o leitor para o fato trágico que está por vir. De certa maneira, esse capítulo nos reenvia ao começo do livro, em que se inicia, como vimos, o relato dos dias que se seguiram a esse “day in the life”. Simultaneamente, nos prepara também para o final do relato, que vai acontecer no capítulo seguinte e do qual não conseguimos sair ilesos.

*

Tanto Cardoso Pires quanto Bauby foram conduzidos à experiência da incomunicabilidade, a qual foi vencida por ambos, prova disso são os seus relatos. O primeiro lançou-se ao desafio paradoxal de contar as memórias de um tempo sem memória; já o segundo teve de encontrar um meio de comunicar-se a partir de dentro de seu escafandro. A força dos relatos de Cardoso Pires e de Bauby, além das razões acima já enumeradas, está no fato de haver neles um certo tom de sacrifício que comove e constrange aquele que ousa aventurar-se por suas linhas, visto que estas não existiriam sem o sofrimento daqueles que as escreveram. As narrativas funcionam de modo a resgatar a dignidade do homem diante de situações que teriam tudo para reduzi-lo à condição de simples joguete do destino, de “ser” impotente diante de uma condição que lhe escapa à compreensão.

A narrativa tem o poder de conferir sentido ao que aparentava não ter. Curiosamente, as narrativas de Cardoso Pires e de Bauby apontam para uma mesma imagem, a das borboletas. Na do primeiro, a borboleta é morte; na do segundo, vida. Em ambas as narrativas, o que se encena é uma valsa dessas borboletas.

Referências bibliográficas:

BAUBY, Jean-Dominique. O escafandro e a borboleta. Tradução Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 1997. (2ª tiragem 2008).

PIRES, José Cardoso. De profundis, valsa lenta. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.

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