terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

O luto pelos mortos e desaparecidos da ditadura brasileira







Inês Virgínia Prado Soares



No curso da vida humana, os ritos funerários e o luto estão dentre os modos de viver mais simbólicos e resistentes à dinâmica inerente às relações sociais e culturais, estão também entre as manifestações culturais mais praticadas e perpetuadas pelo ser humano no curso de sua trajetória pela terra. E mais: o luto é uma manifestação que integra a memória coletiva da humanidade e, especificamente, a memória da comunidade à qual pertencia o morto.

Mas cabe o tratamento do luto como bem cultural? A resposta é sim. A Constituição, no art. 216, diz que integram o patrimônio cultural brasileiro os bens culturais materiais ou imateriais que sejam portadores de valores de referência ligados à memória, à identidade ou à ação dos grupos formadores da sociedade brasileira. A sociedade brasileira adota - quase que de modo hegemônico - o rito fúnebre de velar e enterrar (ou cremar) seus mortos. Como manifestação cultural, o exercício do luto se dá no plano privado e no coletivo, muitas vezes com previsão legal específica de tutela. O desrespeito aos mortos é considerado crime e o Código Penal estabelece a punição para o impedimento ou perturbação de cerimônia funerária, a destruição, a subtração ou ocultação de cadáver e o vilipêndio do cadáver ou de suas cinzas.

No plano privado, pode-se mencionar a exigência de concordância da família, em documento escrito, para extração dos órgãos de falecido, mesmo que, em vida, a pessoa tenha feito a válida manifestação como doador. Há ainda o direito de afastamento do trabalho por dias, sem prejuízo de auferir remuneração, para enterrar o parente falecido e para lidar com a dor dos primeiros dias de luto; e o direito da família de escolher entre o sepultamento e a cremação, sem que caiba ao Estado uma intervenção na escolha, dentre outros. No plano coletivo, a manifestação cultural do luto fica evidenciada na percepção social da importância do exercício do rito fúnebre, da manifestação de despedida do morto pelos familiares e amigos, enfim, do luto. Se a fruição da manifestação de despedida afeta sobremaneira a sociedade, de modo difuso, a ausência de garantia, pelo Estado, de acesso e fruição a essa manifestação cultural atinge e desestabiliza de maneira mais perversa os sujeitos indeterminados, já que antecipa a dor e a angústia de não poder enterrar seu morto. Assim, o luto é uma manifestação cultural difusa relativa aos direitos transindividuais, de natureza indivisível.

Neste artigo será abordado um exemplo de luto como patrimônio cultural imaterial brasileiro: o luto decorrente dos mortos e desaparecidos políticos no período da última ditadura no Brasil (1964-85). O valor de referência é atribuído a esse bem (luto) não somente pela sociedade, mas também pelo Estado, por meio de ações como: a publicação da Lei dos Desaparecidos (Lei n.9.140/95); o pagamento efetivo de indenizações aos familiares dos mortos e desaparecidos; a produção histórica recente, que inclui a publicação (em agosto de 2007) pelo Estado de um livro intitulado Direito à Memória e à Verdade, com a história de todos os casos que passaram pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e entrevistas com seus integrantes; a existência de movimentos e organizações sociais formados por familiares das vítimas que buscam informações sobre seus mortos, por estudiosos de diversas áreas de humanidades que produzem trabalhos acadêmicos, seminários, oficinas sobre o tema no Brasil e no exterior, dentre outros.

O luto decorrente das vítimas mortas e desaparecidas se caracteriza como patrimônio cultural brasileiro, primeiro, porque se pauta nos valores democráticos estabelecidos na Constituição brasileira e serve de elo entre o passado e o presente do país, numa perspectiva de fixar a identidade cultural e a memória coletiva diante da fragilidade da vida em um Estado de Direito que desconsiderou os valores de igualdade e de liberdade. Segundo, porque o luto decorrente do desaparecimento e morte de um preso político, além de ser uma necessidade individual ou da comunidade, tem a função coletiva de proporcionar, no tempo presente, o conhecimento e a reflexão da sociedade acerca da importância dos valores democráticos para uma sociedade. Terceiro, porque o luto propicia a continuidade digna da vida pelas pessoas que são ligadas aos mortos, ao mesmo tempo em que transfere às gerações presente e futuras a responsabilidade não só de ser vigilante em relação às práticas que afrontem os direitos fundamentais, mas, principalmente, de exigir do Poder Público o respeito ao direito à vida e à memória coletiva, bem como aos pilares democráticos que sustentam o respeito à vida, aos modos de viver e à verdade.

O Decreto nº 3.551/2000 criou o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e instituiu o registro de bens culturais que constituem o patrimônio cultural brasileiro. Tomando por base o que escrevemos nesse artigo, o luto pelos mortos e desaparecidos da ditadura pode ser registrado como tal e adquirir o título de bem cultural brasileiro. O registro seria para o luto um instrumento administrativo específico para sua tutela e serviria para a formação e consolidação de uma memória coletiva democrática no Brasil.

Inês Virgínia Prado Soares é Procuradora da República em São Paulo, Mestre e Doutora em Direito pela PUC/SP, Presidente do IEDC, coordenadora da Revista REID (www.iedc.org.br/REID).

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