|
Meu nome é miséria. Comprometo, hoje, a vida de cerca de 1,5 bilhão de pessoas, sobretudo crianças desnutridas, vulneráveis à morte precoce.
Tinha esperança de que na reunião em Londres, no início de abril, o G-20, que reúne as 20 maiores economias do planeta, se lembrasse de mim. Hoje, devido à indiferença dos que governam o mundo, ameaço a maioria da população da África, cuja situação é agravada por cerca de 25 milhões de pessoas contaminadas pelo HIV. Em menor proporção, estou presente também na Ásia e na América Latina.
No Brasil, sou encontrada a olhos vistos no Vale do Jequitinhonha (MG), na fronteira entre Alagoas e Pernambuco, no interior do Maranhão e do Pará, nas tribos indígenas e entre a população quilombola. E, de modo aberrante, nas favelas que circundam as grandes cidades.
Os governantes do G-20 sofrem de hiperopia, o contrário da miopia: enxergam muito mal de perto. Em vez de debaterem como livrar o mundo da minha presença, decidiram destinar US$ 1,1 trilhão para "salvar o mercado", entenda-se, FMI, BID, Banco Mundial, grandes empresas e bancos - os responsáveis pela crise. O capitalismo neoliberal deu um tiro no próprio pé. Agora apela aos cofres públicos para socorrer os "pobres" miliardários que costumam transformar a injeção de recursos em bônus astronômicos aos executivos de empresas sob risco de falência. Que decepção o G-20! Pensei que daria fim aos paraísos fiscais. Em vez de fechar o bordel, decidiu divulgar o nome de seus frequentadores. Viva o império dos laranjas! Já deve ter gente abrindo empresas capazes de dividir a grana do narcotráfico e da corrupção em porções mais palatáveis. Por que o G-20 não proibiu governos, empresas e pessoas físicas de terem ativos em paraísos fiscais ou de se associarem a instituições ali estabelecidas? A resposta é óbvia: encarregou a raposa de manter fechado o galinheiro... Vários países europeus são verdadeiros Éden para as finanças escusas: Suíça, Luxemburgo, Bélgica, Áustria, a City de Londres etc. Quem garante que esses feudos de riqueza ilícita (no mínimo, sonegadora de impostos em seus países de origem) vão mesmo quebrar o sigilo bancário de seus clientes, como quer o G-20? E por que entregar toda essa fortuna de US$ 1,1 trilhão ao FMI, de triste memória? Todos sabemos tratar-se de uma instituição atrelada à Casa Branca e à política exterior usamericana; mete o nariz nas finanças dos países que lhe tomam dinheiro emprestado; impõe medidas econômicas que favorecem privatizações, aumento da desigualdade social, oligopolização de empresas e bancos etc. Em suma: os contribuintes, ou seja, o povo, que mais paga impostos, está compulsoriamente convocado a canalizar fortunas para tentar aplacar a crise financeira dos donos do mundo. Estes temem que, sem crédito, os países emergentes deixem de comprar produtos manufaturados das nações ricas, aumentando o desemprego, e sigam o exemplo do Equador, que decretou moratória enquanto durar a crise. Antes de pensar em contribuir com US$ 10 bilhões para a "vaquinha" do FMI, o Brasil deveria curar-se da hiperopia e olhar um pouco mais para mim: com esse recurso eu seria progressivamente erradicada e haveria aqui mais educação, menos violência urbana e, portanto, mais qualificação profissional e menos desemprego. [Autor de "Calendário do Poder" (Rocco), entre outros livros.
Nenhum comentário:
Postar um comentário