Veracidade e adulteração
Neste ano, o início da Segunda Guerra Mundial completa 70 anos. Em 23 de agosto de 1939 foi firmado o pacto Mólotov-Ribbentrop, em 1º de setembro a Alemanha atacou a Polônia. Naturalmente, esse acontecimento sugere uma onda de comentários históricos e histórico-políticos no Ocidente. Como a Rússia deve tratá-los? A crítica da URSS estalinista é “contra a Rússia”, ou não? É preciso discutir essa crítica, mas exatamente como?
Sob o presidente da Rússia foi criada uma comissão para contestar tentativas de falsificação da história em detrimento dos interesses da Rússia. É surpreendente, mas essa ideia foi muito mal recebida pela maioria dos comentaristas russos e estrangeiros. A primeira objeção dos analistas diz respeito ao próprio nome da comissão: contra falsificações “em detrimento dos interesses da Rússia”. Então, quer dizer que somos favoráveis a “falsificações que beneficiem a Rússia”?
Embora o nome da comissão pareça ter duplo sentido, a essência se expressa de forma clara: o Estado é contra, e somente contra falsificações que causem malefícios (principalmente, políticos) ao próprio Estado. Isto não quer dizer que o estado apóie “outras” falsificações que “o beneficiem”.
Não, tudo é bem mais simples: se não houver prejuízo aos seus interesses, o Estado também não se imiscuirá nesses assuntos (por exemplo, se se falsificar a História do Brasil ou se na História da Rússia for falsificado o que diz respeito à correlação entre os Lênin e Armand, etc.). Outra coisa é o que entender a) como “falsificação” e b) como “interesses da Rússia”.
Em certo sentido, toda história tem “falsificação”. Além da constatação elementar dos acontecimentos (“Napoleão nasceu em 15 de agosto de 1769”, “as tropas alemãs atravessaram a fronteira da URSS em 22 de junho de 1941”), as demais são afirmações de cunho histórico mais complexas, e, por isso mesmo, as interpretações são improváveis e irrefutáveis.
Do ponto de vista da mecânica histórica, não há leis universais matematicamente exatas - e quantos historiadores não tentaram aboli-las! A história é feita por pessoas, cujos motivos dos seus atos sempre, em primeiro lugar, até o fim não são conhecidos; e, em segundo lugar, têm sentido diversos, contraditórios e, consequentemente, poderão ser interpretados de formas diferentes. Cada acontecimento histórico, com toda semelhança que tem com outros, independe, individualmente, como e quais pessoas o praticaram.
Finalmente, qualquer acontecimento parece completamente diferente do outro, dependendo do contexto em que seja analisado. Agrupar todos os fatos em um só contexto “objetivo”, em princípio, é impossível. Bem, para isso, a rigor, é preciso um observador completamente objetivo que em busca das causas e das consequências dos acontecimentos deve descrever toda a história da Humanidade, das cavernas até o dia do acontecimento em análise, sem que omita nada.
Se essas condições não forem observadas, cumpri-las também será absolutamente impossível, e a descrição histórica é sempre incompleta e subjetiva. Isto é, pode ser considerada “falsificação”. Falsificações simplesmente costumam ser conscientes e “honestas”.
E nas falsificações da história não é preciso inventar, ou deformar os fatos. Basta simplesmente não mencionar algo. Diga a verdade, e só a verdade, nada além da verdade - mas nem toda a verdade. E não se exige nenhuma outra mentira.
Mas, no que diz respeito às avaliações históricas (a única coisa que, afinal de contas, é do interesse da opinião pública), impera a absoluta arbitrariedade. O que é “progressista” e o que é “reacionário”, sobretudo se, no fim das contas, decorridos entre 200 e 300 anos do acontecimento analisado, pode ser considerado progressista, ou reacionário. Isso se discute tanto acaloradamente como construtivamente, e é como sobre as vantagens comparativas das louras e das morenas.
Da mesma forma, diz respeito, nesse caso, também, à ideia de “interesses da Rússia”. Quantos interessados e quantos interesses. Cada grupo ideológico corporativo trata esses “interesses” de formas diferentes. E, com frequência, de formas diametralmente opostas.
A objeção é evidente: sim, é claro que o pacto de Stálin com Hitler amarrou as mãos deste último e impulsionou a guerra. É também um evidente cinismo dos “protocolos secretos” com a divisão da Polônia e dos países do Mar Báltico. Mas quem de outros países tem o direito de julgar?
O comportamento da Inglaterra e da França é um pouco melhor. “A pacificação do agressor”, a impotência da Liga das Nações, o estímulo de muitos anos ao nazismo, a alimentação de Hitler com a Thecoslováquia, a renúncia a ações resolutas, inclusive da aliança militar com a URSS – todos os países europeus às vésperas da guerra se comportaram insanamente e, até certo ponto, de forma vil. Em geral, a situação para a imagem da política externa russa é complicada. Para ajudá-la de alguma forma a desatar esse nó, foi criada também, segundo me parece, essa comissão.
Mas eu ainda queria chamar a atenção para o seguinte: a Rússia, sua sociedade e seu estado estão grandemente envolvidos com o passado, as suas vitórias e ultrajes, mas muito pouco com o futuro. Ocorrem discussões acaloradas sobre Stálin e Lênin, mas fala-se muito pouco sobre os caminhos do desenvolvimento econômico. Essa preocupação com a história não é casual. Simplesmente a imperial “consciência de defesa” (por causa da URSS) em relação ao mundo contemporâneo também instintivamente se oculta na concha do passado. Mas, ao perder forças em discussões sobre questões do século 20, os russos não poderão responder aos desafios do século 21.
Leonid Radzikhovski é analista político independente, cientista político e candidato a doutor em Ciências Psicológicas. Colabora com uma série de meios de comunicação. Entre 1995 e 1997, foi deputado da Duma de Estado (Câmara Baixa do Parlamento russo); em 1996, escreveu os discursos do candidato a presidente da Federação Russa Aleksandr Liébied.
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