"Creio que o Partido Pirata terá um papel importante ao dar forma ao futuro digital, tanto online como offline. A sociedade digital é algo que estará impregnado na estrutura da nossa vida cotidiana, e até agora o único partido que se deu conta disso, na Suécia ou em qualquer outro lugar, foi o Partido Pirata." |
Por Thalita Pires, de Londres, pra revista Fórum
Reforma das leis de copyright, o fim do sistema de patentes e a garantia à privacidade online e offline a todos os cidadãos. Com essa plataforma e objetivos bem definidos, o Partido Pirata sueco cresceu vertiginosamente, especialmente entre pessoas com menos de 30 anos, e tornou-se o terceiro partido político da Suécia, com mais de 50 mil membros. Nas eleições do ano passado, os piratas ficaram muito próximos de chegar ao parlamento. Mas foi nas eleições europeias que eles conseguiram as primeiras vitórias.
Hoje, a coordenadora internacional do partido e estudante de economia Amelia Andersdotter, 21 anos, está próxima de ser a segunda representante da agremiação no Parlamento Europeu. A confirmação de sua vaga depende do plebiscito irlandês programado para outubro, que decidirá se o país aceita os termos do Tratado de Lisboa. Essa brecha jurídica é no mínimo curiosa. Os países membros da União Europeia mudaram, com o Tratado de Lisboa, as regras que definem o número de representantes de cada país no Parlamento continental. O único país que ainda não ratificou o Tratado é a Irlanda. O problema é que não houve medidas transitórias entre uma regra e outra, e até agora os 16 deputados que estariam eleitos pela nova regra esperam em seus gabinetes. Foram apelidados de “deputados fantasmas”.
Amelia, uma das fantasmas do Parlamento, não se importa com a indefinição. “É de certa forma divertido que seja possível a existência de ‘deputados fantasmas’”, brinca. Ela continua se dividindo entre a universidade e a militância política. Na entrevista abaixo, ela explica melhor as pretensões de seu partido.
Fórum - O Partido Pirata nasceu com o intuito de preencher um vazio nos programas de partidos tradicionais no que diz respeito a questões levantadas pela internet. De que maneira essas forças políticas falharam em temas como copyright, troca de arquivos, privacidade online e outros?
Amelia Andersdotter - Os outros partidos se dividiram na resposta às mudanças legislativas da sociedade e da economia digitais. Eles têm algumas opiniões favoráveis a mudanças, mas a parte deles que realmente governa sempre acaba defendendo visões conservadoras em relação aos direitos digitais e à propriedade intelectual.
Nosso partido está unido em busca de uma visão benéfica e adequada ao futuro em relação à sociedade digital, à economia digital e às leis que serão ou não necessárias. Portanto, o que queremos fazer, basicamente, é reformar drasticamente a propriedade de direitos intelectuais e garantir acesso pleno à internet e serviços online relacionados, assim como exigir um tratamento balanceado às informações dos cidadãos, que devem ter a privacidade garantida.
Fórum - O Partido também tem no programa o fim das patentes, especialmente na indústria farmacêutica. Qual é a alternativa sugerid0a ao modelo atual de pesquisa?
Amelia - É bastante claro que o sistema de patentes não funcionou como um sistema de incitamento. Essa é uma idéia sustentada largamente por pesquisas independentes. Em vez de encorajar a inovação, o atual sistema estimula os inovadores a contornar as patentes. Isso acontece em todas as indústrias, mas é especialmente prejudicial à sociedade no caso da indústria farmacêutica. Enquanto temos 15 medicamentos ligeiramente diferentes para a síndrome das pernas inquietas (cada uma com apenas uma molécula diferente da substância original), ainda há falta de drogas para, por exemplo, a malária.
Nós defendemos um sistema alternativo de financiamento. Talvez um fundo para dar prêmios, no qual o inventor ganha uma quantia fixa pela invenção. Cada fundo teria um critério específico (“fabrique um remédio contra a malária e ganhe US$ 10 mil”, por exemplo). Esse tipo de premiação era bastante popular na era pré-patentes, e poderia funcionar outra vez. Há variações nesse modelo de prêmios. O cientista poderia receber uma quantia fixa por algum tempo depois de ter realizado a sua descoberta. Qualquer pessoa que desenvolva essa descoberta no futuro (mudando algo da fórmula, por exemplo) teria que pagar uma pequena quantia em royalties para o primeiro cientista, para mostrar respeito ao seu trabalho. Mas deveria, também, ganhar uma quantia, pois fez com que a descoberta anterior evoluísse.
Fórum - As novas redes podem também criar novos modelos econômicos?
Amelia - Certamente, embora ainda não seja possível saber de que modo. Na internet tudo é possível. Já vimos diversas inovações nas atividades online, e isso continuará ocorrendo.
Fórum – Outro problema enfrentado nessa área é o receio de os artistas terem piores condições de trabalho e serem menos remunerados num ambiente disperso como a internet. Como você vê esse debate?
Amelia - Talvez possamos esperar um fortalecimento da cena local (performances ao vivo ou em lugares próximos do próprio artista), mas ao mesmo tempo uma base de fãs global, já que a tecnologia possibilita a difusão do trabalho criativo ao redor do mundo. Isso pode levar ao desenvolvimento de divisões mais especializadas da indústria do entretenimento, para atender a necessidades que serão muito mais pessoais do que geográficas. Em relação à remuneração, uma alternativa é aumentar o número de apresentações ao vivo, em que, além dos ingressos, o artista possa vender seu material.
Fórum - A internet de fato propicia uma liberdade de comunicação antes impensável. Mas, hoje, são poucas as empresas que controlam a rede física da internet. Isso não é um risco à liberdade de informação? Como essa concentração pode ser resolvida?
Amelia - Estranhamente, isso não é um problema na Suécia. Temos um mercado muito competitivo aqui, onde muitas empresas têm redes. E essas empresas não são as mesmas que proveem o acesso à internet. Além disso, nossa legislação responsabiliza claramente as empresas em caso de falhas na rede. Acredito na eficácia de uma lei que garanta a competição para balancear a propriedade desigual da rede e dos servidores, e talvez ainda uma regulação que deixe claro quais são as responsabilidades e deveres dos proprietários da infraestrutura e dos servidores.
Fórum - Vocês já alcançaram alguma mudança na legislação da Suécia? E com outros países, como é a interação com grupos políticos semelhantes?
Amelia - Nós já incomodamos em grandes debates, mas até agora o único avanço foi tornar menos invasiva uma proposta em relação à vigilância de dados. Penso que temos ótimas relações com muitos atores diferentes, em vários países. Existe uma rede internacional de partidos piratas, bem como conexões com grupos ativistas autônomos, com quem fizemos algumas campanhas.
Fórum - A rede, apesar de suas várias possibilidades, tem também os seus gigantes, especialmente o Google, que parece estar presente em cada uma das atividades online. Isso pode ser danoso ao espírito da internet?
Amelia - Sim e não. O Google oferece uma série de bons serviços, e isso é bom por definição. Ao mesmo tempo, a internet se orgulha de ser muito descentralizada. Mas assim como vemos a Microsoft ser lentamente substituída pelo Ubuntu Linux, veremos o Google ser superado pelo mercado.
Fórum - Você acredita que ainda haverá espaço para grandes empresas de entretenimento num futuro sem copyright?
Amelia - É uma pergunta difícil para mim. Mas acredito que pode haver espaço para essas empresas se elas desenvolverem modelos de negócios online. De outra forma, não.
Fórum - O presidente francês Nicolas Sarkozy tentou aprovar a proibição do peer to peer. No Brasil, há uma proposta de lei que exige que os provedores guardem informações sobre todos os usuários, para futuras investigações. Como você encara a tentativa de alguns países de criminalizar a troca de arquivos e de instalar uma vigilância online?
Amelia - No limite, isso é contraproducente. Isso prejudica tanto os servidores como os cidadãos e desestimula a cooperação com a lei. Seria melhor que o Estado, na luta contra o crime, focasse nos indivíduos que são de fato suspeitos do que ter carta branca para vigiar toda a população. E quando os dois lados – cidadãos e empresas – são afetados, pode se instalar um clima de não-cooperação que certamente prejudicaria investigações.
Fórum - Apesar de a luta contra o copyright ser difícil, o futuro aponta para um mundo com menos controle sobre bens culturais. Se e quando isso acontecer, qual será o papel do Partido Pirata? Vocês têm uma agenda alternativa?
Amelia - Creio que o Partido Pirata terá um papel importante ao dar forma ao futuro digital, tanto online como offline. A sociedade digital é algo que estará impregnado na estrutura da nossa vida cotidiana, e até agora o único partido que se deu conta disso, na Suécia ou em qualquer outro lugar, foi o Partido Pirata.
Fórum – Como classificar seu partido dentro da divisão ideológica direita e esquerda?
Amelia - Nós nos movemos em uma área nova, ainda cinzenta. A divisão entre direita e esquerda é remanescente dos antigos conflitos da época da industrialização. O Partido Pirata age no espaço que concerne à digitalização. É um campo completamente diferente, que vai requerer novas escalas.
Fórum - Alcançar o Parlamento Europeu significa que o Partido Pirata é reconhecido como uma força real na Suécia. Você esperava que isso acontecesse tão rápido?
Amelia - Para ser honesta, talvez não. Até há pouquíssimo tempo (abril deste ano) nós não parecíamos ter muito sucesso, mas então vieram as eleições e chegamos ao Parlamento. Foi uma surpresa muito agradável.
Fórum - Como você encara a falha jurídica que colocou você e outros candidatos na posição de parlamentares fantasmas?
Amelia - É de certa forma divertido o fato de que é possível que haja parlamentares fantasmas. Sinto-me estranha nessa situação, mas ao mesmo tempo é fácil. Continuo estudando nesse semestre, a vida continua a mesma. Então me parece que minhas atividades políticas e pessoais continuarão praticamente do jeito que eram antes.
Essa matéria é parte integrante da edição impressa da Fórum de agosto. Nas bancas.
Thalita Pires, de Londres
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