No mais completo respeito pela tradição civilizacional judaico-cristã, de reescrever a história, as classes no poder têm recorrido à falsificação, rasura, emenda e truncagem de factos e documentos, na sua tentativa de reescrever à História.
Publicamos hoje um texto sobre o pacto germano-soviético da historiadora francesa Annie Lacroix-Riz, em resposta a um apelo de Bernard Fischer. (Odiario.info)
RESPOSTA A BERNARD FISCHER SOBRE O PACTO GERMANO-SOVIÉTICO E QUESTÕES RELACIONADAS
Caro camarada,
O tambor do pacto germano-soviético começou a soar, depois do de Katyn, há alguns meses e em todas as ocasiões possíveis (não há falta de aniversários e de comemorações). Mme Marie Jégo, cujos dias e noites são assombrados pelos bolcheviques, quer estejam em actividade ou não, ainda ontem ironizava no Le Monde, a propósito de “Moscovo tentado a reabilitar o pacto”, rezando assim : “Assinado em 23 de Agosto de 1939 por Viatcheslav Molotov e Joachim von Ribbentrop, os ministros dos negócios estrangeiros da URSS e da Alemanha nazi, o pacto ”de não-agressão” depressa se tornou numa aliança entre Estaline e Hitler, prontos a desmembrar a Europa de leste e do norte, desde a Finlândia aos países bálticos, passando pela Polónia”. Este discurso tão categórico quanto errado está de acordo com a prosa que o Le Monde há muito oferece aos seus leitores; o seu dossier organizado para o quinquagésimo aniversário da morte de Estaline em Março de 2003 constituiu um dos topos dessa actividade notável do “diário de referência”. Mas não basta que uma funcionária do “diário dos assuntos Vedomosti, a jornalista Andreï Kolesnikov” se entregue ao género psico-trágico (“O cocktail Molotov-Ribbentrop é de detonação lenta. Explode na cabeça das pessoas. Mutila a consciência da nação russa”) para transformar uma jornalista anti-soviética numa historiadora a sério.
Em ‘Le Choix de la défaite : les élites françaises dans les années 1930’, Paris, Armand Colin, 2006, 671 p., reeditado em 2007, e em ‘De Munich à Vichy, l'assassinat de la 3e République’, 1938-1940, Paris, Armand Colin, 2008, 408 p., estudei pormenorizadamente as questões internacionais suscitadas pelo teu e-mail de hoje aquilo a que chamas “a questão das consequências reais [das] relações [germano-soviéticas] do ponto de vista de um determinado número de países europeus geograficamente intermédios como, por exemplo, a Finlândia, a Polónia e a Checoslováquia; é a famosa questão da assinatura dos acordos de Munique e da anexação da região dos sudetas pela Alemanha de Hitler. Na Polónia, há uma questão de verdade histórica importante no que se refere à questão dos massacres de Katyn. Na União Soviética, há a questão das relações entre Estaline e o estado-maior do exército vermelho, por exemplo, um tal Toukhatchevsky”, o qual foi incontestavelmente culpado de traição (ver o índice, e quanto à questão de Toukhatchevski stricto sensu, ‘Le choix de la défaite’, p. 393-399).
Quanto a Katyn, será de ler com proveito a interpretação do meu colega britânico Geoffrey Roberts, em ‘Stalin's Wars: From World War to Cold War’, 1939-1953, New Haven & London : Yale University Press, 2006. Infelizmente, esta obra excelente, tal como todas as que redigiu antes (‘The unholy alliance: Stalin's pact with Hitler’, Londres, Tauris, 1989, e ‘The Soviet Union and the origins of the Second World War. Russo-German relations and the road to war’, 1933-1941, New York, Saint Martin's Press, 1995), não está traduzida em francês, enquanto que todos os livros que arrasam Estaline (desde o seu nascimento até à sua morte) e a sua comitiva foram traduzidos logo no ano seguinte à sua publicação, nomeadamente os disparates horríveis do publicista Simon Sebag Montefiore sobre ‘La cour du tsar rouge ou Le jeune Staline’). Podemos encontrar uma certa repetição na longa re-análise, “Geoffrey Roberts, ‘Stalin's Wars: From World War to Cold War, 1939-1953: un événement éditorial’”, que coloquei no meu site (www.historiographie.info) em 2007, aqui anexa, “Geoffrey Roberts, ‘Stalin's Wars, From World War to Cold War, 1939-1953: un événement éditorial’”.
Também encontrarás no meu artigo “Le PCF entre assaut et mea culpa: juin 1940 et la résistance communiste” (www.historiographie.info) igualmente anexo ao meu e-mail, elementos de resposta à polémica tão infindável como infundada sobre o pacto germano-soviético e as suas consequências sobre o movimento operário internacional, neste caso francês. Este artigo pretendia demonstrar a desonestidade duma operação mediática inimiga destinada a uma enorme confusão, o livro, lamentável pela ausência de informação e de documentação original, de Jean-Pierre Besse et Claude Pennetier: ‘Juin 40, La négociation secrète. Les communistes français et les autorités allemandes’. Venerado pelo Le Monde e pelo Libération (entre outros), alcançou logicamente grande crédito junto do PCF, habituado desde que conquistou a respeitabilidade de membro da “esquerda europeia” (e renunciou ao mesmo tempo à sua identidade comunista) a atirar a culpa para cima do seu muito honroso passado. De Munique a Vichy, fortemente consagrado às questões internas (e em especial à repressão anticomunista), trata do aspecto “francês” do pacto germano-soviético durante o período que precede o do artigo.
Como ainda ontem recordei a um amigo belga que mo pediu a propósito do pacto germano-soviético, não sem antes evocar as “perversões” presumidas do estalinismo (termo intelectual minimal, na gama dos crimes e horrores estalinistas com que a população francesa, “europeia”, etc. é inundada quase quotidianamente), não pude publicar a crítica do importantíssimo livro de Roberts “nos presumíveis Cahiers d'histoire critique, herdeiros (devotados) dos Cahiers d'histoire de l'institut de recherches marxistes, que outrora acompanhei, com a desculpa de que a dita revista crítica não podia correr o risco de “cobrir” a minha indulgência para com os soviéticos: o que eu escrevi sobre a Polónia dos coronéis e o seu papel abominável no período entre-duas-guerras (‘Le choix de la défaite’ e ‘De Munich à Vichy’), o que Roberts, Carley e eu própria demonstramos quanto ao isolamento diplomático e militar da URSS na época da “guerra de inverno” dá toda uma luz diferente à alegada “matança” que a URSS deveria reconhecer e explicar, se é que a executou (conservo uma certa dúvida, dado, por um lado, a natureza da decisão e o seu carácter estritamente excepcional e, por outro lado, a ausência de qualquer informação de arquivo internacional sobre estes acontecimentos no início de 1940 – mas talvez tenha “falhado” os bons correios) ; tal como deveria reconhecer e explicar, pelo menos depois da guerra, o incontestável acordo secreto sobre a “partilha” germano-soviética de 1939 das zonas de influência, incluindo a Polónia)” (extracto de um correio de 29 de Agosto).
Também me referia acima à excelente obra do historiador americano-canadiano Michael Jabara Carley, ‘1939, the alliance that never was and the coming of World War 2’, Chicago, Ivan R. Dee, 1999, felizmente traduzida, ‘1939 : l'alliance de la dernière chance: une réinterprétation des origines de la Seconde Guerre mondiale’, Presses de l'Université de Montréal, 2001, ainda por cima disponível on-line. Carley detesta o comissário do Povo dos negócios estrangeiros Molotov, ao qual, segundo a moda da época, atribui todas as características do horrível estalinista acanhado; lamenta profundamente o seu predecessor Litvinov, que recebeu a paga a 3 de Maio de 1939 por causa do comportamento dos anglo-franceses assim como as suas próprias ilusões quanto a estes últimos; mas reconhece, tal como Roberts (e eu própria), a ausência de responsabilidade dos soviéticos no acontecimento de 23 de Agosto de 1939, e a estrita manutenção da linha externa soviética na era Molotov.
Soube ontem, depois de ter redigido a mensagem acima referida, que as autoridades russas acabavam de publicar uma série de documentos sobre a política externa polaca a partir de 1934. Julguei perceber que esses textos continham os acordos secretos entre Berlim e Varsóvia, na sequência da assinatura do “acordo amigável” germano-polaco de 26 de Janeiro de 1934 (firmado por dez anos). Irei lê-los com um prazer tanto maior quanto os arquivos franceses e alemães (em especial) dos anos 1933-1939 já me forneceram muitos pormenores. Recordemos que, ao lado de Pilsudski, o funcionário polaco das decisões, o coronel Beck era um conhecido assalariado de Berlim segundo os arquivos originais diplomáticos e militares franceses (o que também é claro nos alemães publicados), e que assim se manteve mesmo depois da derrota ignominiosa da Polónia (tão ignominiosa como o desastre francês). Pilsudski nomeara-o chefe da política externa polaca a partir do Outono de 1932, e Beck conquistou em Maio de 1935 a sucessão do seu benfeitor (já morto) na chefia da ditadura. Estes dois oficiais dum exército em ruínas desde a sua origem (ver o texto de arquivos anexos, “L'Armée polonaise au début des années vingt”) eram apenas os mandatários dos privilegiados polacos, como “o príncipe Janusch Radziwill, um dos latifundiários mais importantes não apenas da Polónia, mas de toda a Europa”: unido não só aos Junkers alemães como aos grandes siderúrgicos alemães, este nobre de nascimento alemão foi um dos principais inspiradores de uma política pro-alemã que significava a morte da Polónia enquanto Estado, e de uma ditadura perfeitamente adaptada, sobretudo depois do golpe de estado de Pilsudski de 1926, no “interesse dos grandes proprietários” (EMADB, renseignement militaire Depas 866, 17 de Junho 1935, 7 N 3024; “Principales personnalités que pourra rencontrer” le MAE (Laval, aquando da sua viagem a Varsóvia), nota anexa à carta 247 de Laroche à Laval, Varsóvia, 10 Abril 1935, URSS 1918-1940, 982, arquivos do MAE).
A Polónia do trio infernal Beck-Pilsudski-Radziwill passava por ser um pivot do “cordão sanitário” franco-inglês, o que lhe valera em 1920-1921 a atribuição, graças à ajuda militar francesa, via Weygand (e o seu adjunto de Gaulle), da Galícia oriental, apesar de prometida à Rússia pela “Linha [étnica] Curzon”. Passou a ser o caniche do Reich hitleriano a partir do acordo de 26 de Janeiro de 1934, sem abdicar das suas funções de cão de guarda do “cordão sanitário” útil para todos, incluindo os “Aliados” ocidentais ; mas não de garantia da submissão do povo polaco a uma das ditaduras (regime particularmente conveniente para a missão de “cordão sanitário”) das mais sangrentas no período entre-duas-guerras: na rica panóplia do leste da Europa francês, Varsóvia, quanto a esse respeito, disputava o primeiro lugar com Belgrado e Bucareste; sabe-se, de resto, a importância que, nessa altura tal como hoje, Paris, paladino dos “direitos do Homem” deu à “democracia burguesa” que reinava em Praga. No entanto, o rolo compressor da propaganda repetiu, a partir dos anos 90, que a Europa oriental, com a queda da URSS e a libertação consecutiva das nações escravas satélites, “reencontrara” a “democracia” que perdera “a partir de 1945” (1918-1939, um paraíso democrático; 1939-1945, o nirvana democrático).
Podemos encontrar nas duas obras acima referidas, a confirmação das minhas afirmações que podem parecer brutais e, em especial, informações documentadas sobre a participação directa dos coronéis polacos, com Beck em primeiro lugar, “abutres” ou “hienas”, segundo os amáveis qualificativos dos seus cúmplices alemães, franceses, ingleses, etc., na liquidação da Checoslováquia, na da Petite Entente (teoricamente) anti-alemã que agrupava a Checoslováquia, a Jugoslávia e a Roménia, e na perseguição dos judeus da Polónia. Juntarei factos precisos suplementares e apresentarei novas fontes na minha contribuição destinada ao colóquio internacional de Varsóvia previsto para meados de Outubro sobre a campanha da Polónia de 1939 (“La Pologne dans la stratégie politique et militaire de la France (octobre 1938-août 1939)”, colóquio em que também participará Geoffrey Roberts.
Que a política polaca foi conduzida numa cumplicidade total com o Reich hitleriano não atenua em nada, como demonstram as obras referidas, a esmagadora responsabilidade dos dirigentes económicos e políticos da França, ébrios de anti-sovietismo, tão lestos a baixarem-se diante da Alemanha como os seus homólogos polacos, e actores de primeiro plano desde 1938 quanto à perseguição dos judeus da Polónia refugiados em França (entre outros judeus estrangeiros), questão tratada em ‘De Munich à Vichy’. De notar que os dirigentes “republicanos” deram toda a liberdade aos fascistas italianos e aos nazis alemães para perseguirem os seus inimigos em território francês, respectivamente desde 1922-1923 e 1933 (ver ‘Le choix de la défaite’). Isto também se aplica, evidentemente, aos Apaziguadores de Londres e de Washington. A Polónia era uma pequena potência submetida às grandes potências imperialistas, incluindo a França na altura, e as responsabilidades que os seus dirigentes assumiram 1º nos crimes praticados contra os povos eslavos (incluindo os polacos) e contra os judeus e 2º no seu desaparecimento enquanto Estado, de 1939 a 1945, foram amplamente partilhadas pelos seus tutores estrangeiros. Para citar apenas um exemplo, não era só a Polónia que tinha o poder de impedir a entrada do exército vermelho em território polaco em 1938 (para salvar a Checoslováquia) ou em 1939 (para salvar a própria Polónia) mas também os seus mestres franceses e ingleses, que além disso ainda tinham “garantido” no papel as suas fronteiras em Março-Abril de 1939, e que a encorajaram a tratar Moscovo como “lacaio” segundo a expressão de Jdanov (Junho de 1939). Exactamente do mesmo modo que as elites checoslovacas, com receio de classe e com medo de ver as suas fronteiras salvas pelo exército vermelho, cederam às pressões exercidas por Paris e por Londres para obter delas a destruição do seu próprio Estado.
Os dirigentes russos parecem dispostos, por razões que só eles sabem, a abordar a sua história nacional do período entre-duas-guerras e da Segunda Guerra mundial dum modo mais sério do que até aqui, não só o fim da URSS, mas da era de Khrouchtchev. O qual modo tratava com um alto grau de fantasia a história dos anos 1920-1950, como observou em ‘La Russie en guerre’ o excelente jornalista e escritor britânico Alexander Werth, um russófilo de longa data, pai de Nicolas, o papa francês duma “sovietologia” armada em história dos “crimes de Estaline”. A historiadora que eu sou congratula-se com esta viragem perceptível desde há algum tempo, e aprecia o que se anuncia pelo menos como o fim da fase de intoxicação pura e simples que caracterizou as três últimas décadas no que se refere à URSS e à sua história. A cidadã também. As duas esperam com impaciência saber como é que a ideologia dominante nos vai dar contas em Maio-Junho de 2010 do 70º aniversário do Desastre francês de Maio-Junho de 1940, sobre o qual há tanto a dizer.
Cordialmente.
Annie Lacroix-Riz
30 de Agosto de 2009
Carta de Bernard Fischer a intelectuais comunistas franceses
Camaradas
Podem ver abaixo uma mensagem para o fórum de discussão do site www.comite-valmy.org na sequência da publicação nesse site de uma mensagem de um jornalista russo relativa ao septuagésimo aniversário do pacto germano-soviético.
No dia 3 de Setembro de 1939, faz agora setenta anos, uma semana depois da assinatura do famoso facto germano-soviético, dá-se a invasão da Polónia pela Alemanha de Hitler, é o início da segunda guerra mundial.
Toda a história da segunda guerra mundial é polémica. Passados setenta anos, há um grande número de versões relacionadas com os principais acontecimentos desta guerra, e a assinatura do pacto germano-soviético é efectivamente um acontecimento importante desta guerra. Este ano não aparecerá nenhuma nova versão, nem da Ria Novosti, nem deste site, nem de qualquer outro sítio e nenhum juízo moral seja em que sentido for alterará o que quer que seja à história.
Do meu ponto de vista, as questões mais importantes são as questões das causas da segunda guerra mundial, a questão da situação política na Alemanha entre 1933 e 1939, a questão da luta contra o fascismo, a questão da política do partido comunista alemão entre 1933 e 1939, a questão das relações entre a Alemanha e a União Soviética entre 1933 e 1939 e a questão das consequências reais dessas relações do ponto de vista dos governos de um determinado número de países europeus geograficamente intermédios como, por exemplo, a Finlândia, a Polónia e a Checoslováquia; é a famosa questão da assinatura dos acordos de Munique e da anexação da região dos sudetas pela Alemanha de Hitler. Na Polónia, há uma questão de verdade histórica importante no que se refere à questão dos massacres de Katyn. Na União Soviética, há a questão das relações entre Estaline e o estado-maior do exército vermelho, por exemplo, um tal Toukhatchevsky.
Vocês conhecem certamente essas questões e certamente têm a vossa opinião particular. A minha única pergunta é a seguinte : Quantos historiadores trabalham actualmente nestas questões, na Rússia, na França ou noutros países ? Por exemplo, façamos essa pergunta a Annie Lacroix Riz ou então a Bruno Drweski
Saudações militantes.
Bernard Fischer
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