“Quando você abre a torneira e sai
água suja, o que você faz? Reclama para o órgão responsável pela
qualidade da água. E quando você liga a televisão ou o rádio e recebe
conteúdos ‘sujos’, de má qualidade, o que pode ser feito? Praticamente
nada”.
Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação.
Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação.
“A
luta pela democratização da mídia se insere em uma luta mais ampla,
pela garantia ao direito humano à comunicação e, conseqüentemente, por
uma sociedade justa e democrática, onde os direitos dos trabalhadores e
de toda a população sejam respeitados”.
Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.
Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.
A
batalha pela democratização dos meios de comunicação não comporta
ilusões e, muito menos, omissões. Diante do enorme poder da mídia
hegemônica, que manipula informações e deforma comportamentos, a luta
por mudanças profundas neste setor adquire um caráter estratégico. Não
haverá avanços na democracia, na mobilização dos trabalhadores por seus
direitos e na própria luta pela superação da barbárie capitalista, sem
enfrentar e derrotar a ditadura midiática. Hoje, esta batalha comporta
três desafios, que se inter-relacionam e se complementam.
O primeiro é o da denúncia da “imprensa burguesa”. Não há como democratizar os veículos sob o comando ditatorial dos Marinhos, Civitas, Frias e demais barões da mídia. Eles serão sempre aparelhos privados de hegemonia do capital. Qualquer ilusão neste campo seria desastrosa para as forças políticas e sociais de esquerda. O segundo desafio é o da construção e fortalecimento de veículos próprios das forças engajadas na luta pela superação de todas as formas de exploração e opressão. Sem construir instrumentos contra-hegemônicos de qualidade não será possível vencer a disputa de idéias, de projetos e de valores numa sociedade tão complexa como a brasileira.
Na contracorrente da lógica capitalista
Estes dois desafios não negam, porém, a urgência de um terceiro: o da luta pela democratização dos meios de comunicação. Na contracorrente da lógica capitalista, é possível erguer barreiras ao poder da mídia burguesa e construir políticas públicas que incentivem a diversidade e pluralidade informativas e culturais, conforme apontam recentes avanços na América Latina. Neste sentido, a Conferência Nacional de Comunicação, antiga demanda dos movimentos sociais, pode ser uma alavanca. Além de envolver amplos setores da sociedade neste debate, num processo pedagógico sem precedentes na história, ela pode propor medidas concretas que coíbam a ditadura midiática.
Várias entidades progressistas estão inseridas nesta luta. O Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), criado em 1991, nasceu das mobilizações por avanços na Constituição de 1988 e agrega várias entidades [1]. O Coletivo Intervozes, fundado em 2003, reúne militantes voluntários com reconhecida capacidade de elaboração. Já o Fórum de Mídia Livre, lançado em março de 2008, articula jornalistas, acadêmicos e veículos progressistas. A Federação Nacional de Jornalistas (Fenaj) e a Federação de Trabalhadores em Empresas de Rádio e Televisão (Fitert) não limitam sua atuação à defesa dos interesses corporativos. Destacam-se, ainda, a Associação Brasileira das Rádios Comunitárias (Abraço) e a Associação Mundial das Rádios Comunitárias (Amarc), entre outras organizações que priorizam a luta pela democratização da comunicação.
Os partidos de esquerda também estão se dando conta da importância desta frente de atuação. O PT, que sempre contou com renomados intelectuais da área, realizou em 2008 sua 1ª Conferência Nacional de Comunicação e apontou os caminhos para uma mídia democrática [2]. Já o PCdoB aprovou, em novembro de 2007, resolução específica com propostas concretas para o setor [3]. “A luta pela democratização da mídia faz parte da jornada pela ampliação da democracia como forma de alavancar a própria luta pela emancipação dos trabalhadores”, explica Renato Rabelo, presidente do PCdoB. No caso do PSB, vale citar a corajosa ação da deputada Luiza Erundina; já no PSOL, o deputado Ivan Valente se destaca por suas denúncias das manipulações midiáticas.
Há consenso entre estas forças políticas e sociais que não basta somente o diagnóstico sobre os efeitos nocivos da mídia hegemônica. Que ela não serve aos anseios dos trabalhadores, a história comprova de maneira cabal. Que ela é altamente concentrada e manipuladora, os fatos também evidenciam. Mais do que diagnosticar, é urgente avançar na formulação de propostas concretas que visem superar esta deformação na sociedade. Neste esforço, algumas proposições adquirem força catalisadora, capaz de unir amplos setores na luta pela democratização da comunicação. Na seqüência, apresento algumas delas, não como pacote fechado, mas como um roteiro de reflexão.
1- Fortalecer a radiodifusão pública
Como descrito no terceiro capítulo, a radiodifusão brasileira adotou o modelo privado made in EUA, diferentemente de várias nações nas quais a rede pública tem forte influência. O caso mais famoso é o da BBC de Londres, que se projetou na II Guerra Mundial, é gerida por um conselho autônomo e produz programas de qualidade [4]. Na França, quatro redes integram o seu sistema público. Na Alemanha, ARD e ZDF têm 14 emissoras locais e o seu conselho, com 77 membros, reúne partidos e movimentos sociais. Mesmo nos EUA, a PBS possui um conselho independente com 27 membros e congrega 354 retransmissoras. Já a APT, segunda maior rede pública do país, tem um orçamento de US$ 2 bilhões e retransmite a sua programação para 356 emissoras locais.
No Brasil, o modelo público nunca vingou. A única iniciativa mais ousada neste campo ocorreu no governo de Getúlio Vargas com a criação da Rádio Nacional, que teve expressiva audiência. O espectro eletromagnético, um bem público e finito, tornou-se um bem privado dos barões da mídia, autênticos “latifundiários do ar”. No caso da TV, o setor privado detém cerca de 80% das emissoras, 90% da audiência e 95% das receitas publicitárias. Principal veículo de comunicação de massas, sua influência na sociedade é arrasadora. Censo do Ibope de 2005 revelou que 93,1% dos domicílios no país tinham aparelhos de televisão, número superior aos lares com geladeiras. Apontou ainda que 81% dos brasileiros assistem TV diariamente, passando 3,9 horas diárias, em média, presos às telinhas.
Fruto do ascenso democrático, o artigo 223 da Constituição de 1988 fixou a complementaridade dos sistemas privado, público e estatal. Na prática, porém, nunca houve investimento nos setores não comerciais. Nos anos do neoliberalismo, ainda houve o desmanche do pouco que existia. Em 1995, com a aprovação da Lei da TV a Cabo, as redes privadas foram obrigadas a reservar cinco canais estaduais para o uso do Executivo, Legislativo, Judiciário, um canal comunitário e outro universitário. Mesmo assim, eles padecem da falta de recursos e foram excluídos da TV aberta. “O espaço conquistado está esvaziado, falido, pouco qualificado ou mesmo reproduzindo a lógica mercantil das grandes emissoras” [5].
Só após sofrer brutal bombardeio midiático na eleição de 2006, o presidente Lula decidiu investir na construção de uma rede pública nacional de televisão e rádio. A criação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), que gerencia a TV Brasil, oito emissoras de rádio e uma agência noticiosa, sinalizou uma mudança de postura do governo. Inaugurada em dezembro de 2007, a TV Brasil dá os primeiros passos na construção de uma emissora sem fins lucrativos. Seu conselho curador é presidido pelo economista Luiz Gonzaga Belluzzo; já sua ouvidoria, dirigida pelo jornalista Laurindo Lalo Leal Filho, é um mecanismo de fiscalização da sociedade. Ela também constrói a sua própria rede nacional, fortalecendo as estruturas de 95 emissoras estaduais.
Exatamente por seu papel democratizante, a EBC sofre o cerco dos donos da mídia e ainda corre riscos. Tudo é feito para limitar o seu alcance e asfixiar seu financiamento. Antes mesmo de ser lançada, ela foi alvo de intensa oposição. A Folha de S.Paulo, por exemplo, publicou uma série de artigos para desqualificá-la e seu editorial arrematou: “Lula e o PT querem deixar sua marca particular no telecoronelismo criando um canal do Executivo; a proposta é descabida” [6]. Os ataques visaram confundir os conceitos entre rede estatal e pública, e contaram com a descarada ajuda do ministro Hélio Costa, ex-funcionário da TV Globo e porta-voz dos radiodifusores [7].
A EBC é uma conquista das forças progressistas na luta contra a ditadura midiática. Ela deve ser fortalecida e aperfeiçoada. Isto não a exime dos problemas, que decorrem da sua própria origem conflituosa no interior do governo e de impasses no seu projeto editorial, entre outras lacunas. Os seus recursos são escassos, menos de 5% na comparação com a receita da Rede Globo, e a TV Brasil sequer é transmitida em canal aberto. Seu conselho curador, indicado pelo presidente Lula, não contempla a diversidade dos movimentos sociais. Estes e outros problemas comprometem a sua autonomia de gestão e de financiamento, marcas que distinguem a rede pública da estatal, e dificultam que ela tenha maior visibilidade na sociedade. Mudanças são necessários e urgentes.
As propostas unitárias apresentadas pelos movimentos sociais no 1º Fórum de TVs Públicas, em maio de 2007, continuam atuais: instalação de um “conselho representativo, plural e autônomo, com maioria da sociedade civil, como instância decisória”; “igualdade de participação e respeito à diversidade (regional, mulheres, negros) no seu conselho”; “fomento à produção independente, ampliando a presença desses conteúdos na sua grade de programação”; maior disponibilidade de “verbas do orçamento público no seu financiamento e proibição da publicidade comercial, mas garantido as produções compartilhadas, o apoio cultural e a publicidade institucional”; “que os canais públicos, que hoje são garantidos pela Lei do Cabo, estejam em sinal aberto”.
2- Revisar os critérios das concessões
Desde o início das transmissões de rádio, em 1922, e de televisão, nos anos 1950, o processo de concessão de outorgas às emissoras sempre foi influenciado pelo poder econômico dos donos da mídia e por suas relações promíscuas com o Estado. Concedidas sem qualquer critério objetivo, as outorgas beneficiaram os mesmos grupos empresariais, o que reforçou a propriedade cruzada e a concentração no setor. Nesta longa trajetória monopolista, as redes privadas desrespeitaram as tímidas legislações existentes. Na prática, os barões da mídia exercem uma autêntica ditadura midiática, ficando acima das leis, das normas constitucionais e do próprio Estado de Direito.
A Constituição de 1988, por exemplo, proíbe a formação dos monopólios, exige a produção de conteúdos regionais, obriga que as emissoras tenham finalidades educativas, culturais e artísticas e determina que elas expressem a diversidade de pensamento na sociedade. Como nunca foram regulamentados, estes princípios progressistas viraram letra morta. O atual processo de outorga e de renovação das concessões, com prazo de 15 anos para as TVs e de dez anos para as rádios, é uma verdadeira caixa-preta. A sociedade não exerce qualquer controle sobre este bem público. O Congresso Nacional, que a partir da Constituição de 1988 virou co-responsável pelas concessões e renovações, não cumpre seu papel, submetendo-se à pressão e chantagem dos barões da mídia.
Qualquer questionamento a estas distorções é tachado como “atentado à liberdade de imprensa” pela mídia hegemônica. Ela omite que vários países exercem o direito democrático, inclusive, de não renovar concessões que ferem sua legislação. Até os EUA, nação badalada pela mídia servil, controlam os seus meios de comunicação de massas. A Administração Federal de Comunicações (FCC) cancelou 141 concessões de rádio e TV entre 1934 e 1987. Em 40 desses casos, ela nem esperou que expirasse o prazo da concessão. Já o governo britânico revogou a licença da OneTV, em agosto de 2006; da StarDate, em novembro de 2006; e do canal de televendas Auctionword, em dezembro de 2006. A Espanha revogou, em julho de 2005, a concessão da TV Católica. E a França cancelou a licença da TF1, em dezembro de 2005, por ela ter negado o Holocausto.
Na defesa da democracia e da autêntica liberdade de expressão, o país necessita ser mais rigoroso na análise das concessões e renovações das outorgas. É preciso exigir o cumprimento das normas constitucionais e das leis vigentes. Várias redes privadas desrespeitam o limite mínimo de tempo de 5% para o jornalismo e máximo de 25% para a publicidade. Ainda veiculam merchandising, o comercial disfarçado, o que vetado pelo Código de Defesa do Consumidor. A maioria não exibe o conteúdo educativo exigido pelo Constituição; quando exibe é em horários de baixa audiência. O lobby da mídia também sabotou a classificação indicativa, medida essencial para o resguardo do Estatuto da Criança e dos Adolescentes. Num desrespeito à legislação, várias emissoras de rádio e televisão são dirigidas por “laranjas” de políticos com mandato.
Diante destes e outros abusos, é inadmissível que as outorgas e renovações sejam dadas de forma automática, sem consulta à sociedade. Em vários países existem ouvidorias públicas para receber críticas e analisar as concessões; muitos promovem audiências sobre o tema. Em casos extremos, diante do desrespeito às leis, vários governos simplesmente revogam as concessões. A não renovação é um ato democrático, como admite a União Internacional das Telecomunicações (UIT), que “reconhece em toda sua amplitude o direito soberano de cada Estado de regulamentar o setor, devido à importância crescente das telecomunicações na salvaguarda da paz e do desenvolvimento econômico e social” [8].
3- Rever os critérios da publicidade oficial
A publicidade é a principal fonte de recursos da mídia hegemônica. O faturamento com anúncios publicitários, que superou R$ 21,4 bilhões em 2008, garante os investimentos neste setor de alta tecnologia e os lucros dos empresários, reforçando os impérios midiáticos. Nada é dado de graça, como costuma tergiversar a Associação Brasileira de Rádio e Televisão (Abert) para se contrapor ao controle público. A exibição “gratuita” do conteúdo é paga pela publicidade e os altos custos de produção e veiculação são repassados ao preço da mercadoria. Além de seduzir o consumidor, o anúncio cumpre o papel ideológico de “vender” um estilo de vida, individualista e consumista.
Para o sociólogo Pedro Hurtado, “a publicidade, à margem da sua finalidade comercial, é pura e dura propaganda do modo de vida e de pensamento inerente à ideologia social predominante na atualidade: o consumismo-capitalismo. A publicidade não apenas vende produtos, mas também impõe um modo de vida, valores morais e culturais, códigos simbólicos e, em definitivo, uma ideologia... O consumismo é uma forma de pensar segundo a qual o sentido da vida consiste em comprar objetos e serviços. Esta forma de pensar se converte na principal ideologia que sustenta o sistema capitalista” [9].
Se a correlação de forças na sociedade não possibilita, ainda, adotar medidas mais rigorosas de controle da publicidade comercial, o atual estágio das lutas sociais no país já permite, ao menos, rediscutir os critérios de distribuição das verbas publicitárias dos governos. Afinal, este dinheiro é oriundo dos tributos da sociedade. O montante de recursos é expressivo e serve para “alimentar cobras”. Os barões da mídia que abocanham estes recursos públicos são os mesmos que pregam golpes, desestabilizam governos, criminalizam as lutas dos trabalhadores e idolatram o “deus-mercado”. A publicidade oficial reforça a monopolização do setor, quando poderia servir para estimular a diversidade e pluralidade informativas numa sociedade mais democrática.
De forma discreta, o governo Lula promoveu algumas mudanças nesta área. Ele descentralizou a distribuição das verbas oficiais. “Os comerciais do Palácio do Planalto atingiram no ano passado 5.297 veículos de comunicação. O número representa uma alta de 961% sobre os 499 meios que recebiam dinheiro para divulgar propaganda do governo Lula em 2003, quando o petista tomou posse”, resmungou a Folha [10]. A descentralização da publicidade oficial diminuiu o montante abocanhado por poucos barões da mídia. Irritados, eles agora criticam a rotulada “bolsa-mídia de Lula”, afirmando que ela serve para “alimentar a rede chapa-branca do governo” [11].
Apesar da gritaria, a administração direta e indireta é uma das maiores anunciantes do país. Os gastos publicitários dos governos FHC e Lula oscilaram entre R$ 900 milhões e R$ 1,2 bilhão. O pico de FHC foi em 2001, com R$ 1,114 bilhão em anúncios; em 2008, o governo Lula investiu R$ 1,027 bilhão. Isto sem contabilizar os custos da produção dos comerciais e os gastos com os patrocínios nas áreas de esporte, cultura e outras – que atingiu R$ 918 milhões em 2008. A soma de publicidade e patrocínio injetou quase R$ 2 bilhões na mídia. Na comparação com a iniciativa privada, o maior anunciante em 2008 foi a Casas Bahia, com R$ 3,2 bilhões; o segundo lugar ficou com a Unilever, dona das marcas Kibon, Omo, Dove e Rexona, que gastou R$ 1,75 bilhão.
Quase a totalidade da publicidade oficial engorda os bolsos dos barões da mídia. O governo Lula nunca teve a coragem para investir em veículos alternativos e estes estão à míngua. Até a revista Carta Capital, que adota uma linha jornalística mais independente, sofre com esta tibieza, como crítica Mino Carta [12]. A desculpa usada pelo governo é que ele adota critérios mercadológicos, medidos pela audiência e tiragens. Com esta postura aparentemente “neutra”, o governo reforça a monopolização do setor. É urgente redefinir os critérios para a publicidade oficial. Países como a Itália e a França adotam normas legais para incentivar a diversidade e pluralidade informativas, barateando os custos de impressão e garantindo cotas de publicidade para veículos alternativos.
O Fórum de Mídia Livre defende o estabelecimento de critérios democráticos e transparentes de distribuição dos recursos oficiais, e não apenas a partir da reprodução da lógica mercadológica. “O Estado não vende mercadoria, presta serviço publico. O critério de veiculação não deve ser o da circulação, pois este está ligado à lógica da audiência como mercadoria. A mídia comercial vende audiência, isto é, circulação ou pontos de Ibope, remunerando seus fatores de produção em função da receita que o anunciante lhe proporciona devido ao público que pode atingir. Ora, o Estado não precisa se subordinar a tais critérios. O Estado não vende nada, apenas presta contas, logo pode e deve chegar ao cidadão através de muitos canais pelos quais o cidadão se informa”, explica Marcos Dantas, professor da PUC/RJ e integrante da coordenação do movimento [13].
4- Estimular a radiodifusão comunitária
A radiodifusão comunitária é recente no país e já demonstrou o seu potencial prático na luta pela democratização das comunicações. Ela dá voz a quem não tem voz. Permite que as comunidades “excluídas” expressem seus anseios e reivindicações, divulguem suas criações culturais, prestem serviços à população. Essa experiência no Brasil surgiu no início dos anos 1980, ainda na fase sombria da ditadura militar, e só foi reconhecida legalmente em 1998 – na Bolívia, as rádios comunitárias surgiram na década de 1950 no bojo das greves dos mineiros; já no Chile, elas contribuíram para as vitórias da Unidade Popular, a coalizão socialista de Salvador Allende.
Temendo a sua concorrência, a radiodifusão comunitária é alvo da fúria da mídia hegemônica. Já os governos, sob pressão dos empresários, investem para criminalizá-la. O governo Lula foi até mais realista do que o rei, batendo recorde de perseguição. Segundo pesquisa da Abraço, de 2002 a 2007, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e a Polícia Federal fecharam mais de 15 mil rádios comunitárias. “Também foram abertos mais de 20 mil processos e cerca de 5 mil militantes foram condenados judicialmente por tentar exercer o direito de livre expressão”. O atual ministro das Comunicações, Helio Costa, dono da rádio Sucesso FM, de Barbacena (MG), vetou todos os projetos de avanço neste setor e “recrudesceu o fechamento das emissoras” [14].
Além da repressão, tudo é feito para inviabilizar a legalização da radiodifusão comunitária. A burocracia é infernal, com inúmeros obstáculos administrativos. Estudo feito pelo Sistema de Controle de Radiodifusão, em novembro de 2006, apontou a existência de 13.595 pedidos de rádios comunitárias acumulados no Ministério das Comunicações – três vezes mais do que os 4.400 verificados no início de 2003. José Sóter, dirigente da Abraço, critica os burocratas do ministério, “subservientes à Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) e aos interesses dos monopólios da comunicação, e a falta de gente que esteja comprometida com a efetivação do serviço de radiodifusão comunitária como política pública de comunicação” [15].
Estudo recente, no qual foram pesquisadas 2.205 rádios comunitárias autorizadas pelo Ministério das Comunicações (80,44% do total das legalizadas), ainda aponta para outro grave perigo: o de que estas concessões sejam utilizadas como moeda de barganha, servindo a políticos fisiológicos e credos religiosos. A pesquisa indica que “a maioria das rádios comunitárias funciona no país de forma ‘irregular’ porque não se logrou ser devidamente autorizada; e, entre a minoria autorizada, mais da metade opera de forma ilegal. Entre as 2.205 rádios pesquisadas, foi possível identificar vínculos políticos em 1.106 – ou 50,2% delas... Há, também, um número considerável de rádios com vínculos religiosos: 120 delas, ou 5,4% do total”. Este deformação revelaria a existência de um “coronelismo eletrônico de novo tipo, envolvendo as outorgas de rádios comunitárias” [16].
Para complicar ainda mais o quadro, o setor passa por um processo de mutação tecnológica para sua digitalização. O Ministério das Comunicações, dominado pelos barões da mídia, já anunciou que prefere o padrão digital dos EUA, o IBOC. Várias rádios foram autorizadas a realizar testes com o novo padrão, criando um fato consumado – sem qualquer consulta à sociedade. Além de ser propriedade de uma única empresa, que cobrará elevados royalties, essa tecnologia ocupa o espectro de forma predatória, fechando espaços para as transmissões. Ele inclusive avança sobre fatias de freqüências ocupadas pelo sistema analógico. Ao encarecer os equipamentos e restringir as transmissões, esse padrão de digitalização poderá asfixiar a radiodifusão comunitária no país.
Ao invés de ser criminalizada, a radiodifusão comunitária deveria ser incentivada pelos poderes públicos. Diante do golpismo da ditadura midiática, ela é uma arma contra-hegemônica decisiva na defesa da democracia. O Estado deveria baratear seus equipamentos e promover oficinas para capacitar os radiodifusores. Mudanças na legislação deveriam garantir o aumento do número de freqüências das emissoras e ampliar o limite da área e o potencial de seu alcance – hoje restrito a um quilometro. A urgente criação de um sistema brasileiro de rádio digital serviria para evitar a monopolização do setor. Além disso, o poder público deveria garantir os meios de sustentação financeira destes veículos, investindo na construção de conteúdos de qualidade e plurais, e criar barreiras para coibir sua apropriação por setores fisiológicos e para garantir o seu caráter laico.
Para agilizar a legalização das rádios, a FNDC propõe medidas simples, como a descentralização dos processos de concessão, redução dos prazos de tramitação e zoneamento da radiofreqüência para definir o canal e a potência para cada localidade. Já a Amarc defende mudanças urgentes no marco regulatório. Entre outros pontos, ela propõe que “as comunidades organizadas e entidades sem fins lucrativos tenham direito a usar a tecnologia de radiodifusão disponível, tanto analógica como digital”; que “os meios comunitários tenham assegurada a sua sustentabilidade econômica, independência e desenvolvimento”, por meio de patrocínios e publicidade oficial; e a criação “de fundos públicos para assegurar o seu desenvolvimento” e de “políticas públicas que desonerem ou reduzam o pagamento de taxas e impostos, incluindo o uso de espectros” [17].
5- Investir na inclusão digital
Criada nos EUA para fins militares e impulsionada pelos circuitos financeiros do capitalismo, a internet tem transformado o mundo das comunicações. Os mais otimistas chegam a falar numa “revolução”, que permitiria a democratização da produção de conteúdos e da sua difusão. Outros, mais cautelosos, apontam que a tendência monopolista do capital já se faz sentir na centralização dos portais da internet, além do que o capital imporá formas de controle. O projeto do senador tucano Eduardo Azeredo, já batizado de AI-5 digital, confirma este perigo, a exemplo do ataques desferidos pelo presidente-terrorista George Bush e pelo fascistóide Nicolas Sarkozy na França.
Independentemente das tendências futuras, a internet já provoca enormes abalos no setor. Vários jornais e revistas perderam tiragens, faliram ou viraram online. A própria linguagem da televisão é afetada por esta nova forma de comunicação, mais ágil e interativa. Muitos protestos políticos, a partir da manifestação contra a globalização neoliberal que paralisou Seattle em 1999, já são convocados por sítios e blogs progressistas. Manipulações da mídia hegemônica são desnudadas na internet. De 1999 a 2006, mais de 47 milhões de blogs entraram no ar. Neles circulam 1,2 milhão de novos artigos por dia, ou 50 mil por hora, escritos por cerca de 35 milhões de pessoas.
Entusiasta da internet, Bernardo Kucinski afirma que ela “é a maior revolução nas comunicações desde a invenção de Gutenberg. Não admira que tenha reaberto uma nova era de encantamento do ser humano com a comunicação e com a arte de escrever... Na articulação das ONGs e dos movimentos sociais, a internet tem tido papel decisivo, recuperando com grande vantagem o antigo papel atribuído por Lênin à imprensa como ‘organizadora do movimento operário’. Na era da globalização, ela se tornou uma organizadora da cidadania, como expressa o Fórum Social Mundial. Este certamente não teria existido sem a internet. Ela também deu viabilidade técnica ao exercício da democracia direta e acesso direto do cidadão aos serviços do Estado” [18].
Esta “essência libertária”, porém, pode ser castrada pela exclusão digital, alerta Sérgio Amadeu, outro entusiasta da internet. “Quanto custa se conectar à sociedade da informação? Para acessar a internet, a rede mundial de computadores, é preciso pagar mensalmente um provedor de acesso e o gasto com a conta telefônica. Além disso, é preciso ter um computador que custa mais de mil reais. Em um país com quase um terço da sociedade abaixo da linha da pobreza, gastar algo em torno de 40 reais por mês pelo uso mínimo de conexão e conta telefônica é impossível para a maioria da população. Essa é a nova face da exclusão social”, explica didaticamente [19].
Para superar este gargalo, ambos concordam que o Estado deve ter papel pró-ativo. Não dá para deixar esta tecnologia nas mãos “invisíveis” do deus-mercado. Entre outras medidas, é urgente regular o setor para universalizar o acesso à internet, visando a sua gratuidade. O preço da banda larga no país é dos mais altos no mundo devido à desregulamentação das telecomunicações [20]. É preciso também uma política mais ofensiva para baratear os aparelhos, inclusive superando a “ditadura de Bill Gates” através do software livre. Segundo a PNAD de 2004, somente 16,6% das residências brasileiras tinham computadores. Dados do Ibope de 2007 revelaram que apenas 14,1 milhões dos lares tinham acesso à internet. “Devemos elevar a questão da inclusão digital e da alfabetização tecnológica à condição de política pública”, defende Sérgio Amadeu.
6- A urgência do novo marco regulatório
Estas e outras mudanças colocam a urgência de um novo marco regulatório para o setor. A atual legislação é ultrapassada, datada de 1962, carregada de vícios e não dá respostas aos vertiginosos avanços tecnológicos na área. Além de coibir os monopólios e regulamentar outros princípios da Constituição de 1988, como o que garante o respeito à pluralidade de opiniões, a nova legislação deve enfrentar os desafios do futuro. O processo de convergência digital, no qual as corporações multinacionais avançam sobre a mídia, torna este debate ainda mais atual. Hoje é preciso impor regras para evitar a desnacionalização do setor e para garantir a produção e a cultura nacionais.
Apesar das restrições do padrão japonês adotado pelo governo, a nova legislação deve regular a implantação da TV e da rádio digital, protegendo o conteúdo nacional e explorando seu potencial na promoção da diversidade e da inclusão social. Ela não pode depender do resultado da disputa entre as operadoras de telefonia e os barões da mídia. “No bojo da convergência tecnológica, o instinto de sobrevivência dos radiodifusores e a ânsia pela entrada no mercado do conteúdo audiovisual das chamadas teles deverão ser a força motriz da mudança na legislação... É preciso garantir que o campo não seja ocupado apenas pela polarização radiodifusores x teles, mas pelo conjunto dos atores que tem propostas para a reformulação legal”, alerta Jonas Valente [21).
O novo marco regulatório deve fixar políticas públicas que garantam o acesso da população aos avanços tecnológicos. O Brasil ainda está muito atrasado neste campo, seja no acesso à internet, às salas de exibição de cinema ou mesmo à telefonia. “Em 1997, o numero de telefones por 100 habitantes era de 11,7%; em 2004, passou para 29%. Apesar de a telefonia chegar praticamente a todos os 5.484 municípios, nos 5 mil mais pobres ela é a mesma de antes da privatização; 11% ou 7,5 milhões de linhas... Assim, grandes parcelas da população estão excluídas dos avanços tecnológicos. Esse quadro, já amplamente diagnosticado pelo governo Lula, impõe a necessidade de um novo modelo institucional”, que garanta o “adequado equilíbrio entre os sistemas privado, público e estatal” e evite “a concentração da propriedade”, propõe Israel Bayma [22].
A nova legislação também deveria fixar mecanismos democráticos de controle social dos meios de comunicação. Ignacio Ramonet, diretor do jornal Le Monde Diplomatique, defende a criação de observatórios de mídia nas escolas e espaços públicos para monitorar o que é divulgado. “A informação, como os alimentos, está contaminada. Envenena o espírito, polui nossos cérebros, nos manipula, nos intoxica, tenta instilar em nosso inconsciente idéias que não são nossas”. Daí a urgência de um “quinto poder” fiscalizador [23]. No mesmo rumo, é preciso reativar o Conselho de Comunicação Social, previsto na Constituição, mas que está esvaziado. Há ainda a proposta dos sindicatos de jornalistas da criação dos conselhos de redação, como instrumento de luta da categoria e também como contraponto à manipulação, à censura e à pressão dos donos da mídia.
Como conclui Marcos Dantas, a comunicação passa por aceleradas mudanças. Em curto espaço de tempo, nada será como antes neste setor. A televisão, por exemplo, “não será apenas esta que temos: aberta, unidirecional, oferecida por grandes grupos empresariais e sustentadas pela grande publicidade. A TV poderá ser também local ou comunitária, via internet”. O rumo das mudanças dependerá da correlação de forças na sociedade e da construção de um novo marco regulatório e legal. “Na verdade, o capitalismo desenvolveu essas tecnologias e vai moldando os seus usos, ao seu gosto. Nada impede, porém, que o povo trabalhador possa disputá-las, delas se apropriar e a elas dar novos e mais democráticos rumos” [24].
NOTAS
1- James Görgen. “Como domar essa tal de mídia?”. Cartilha nº 1 da FNDC.
2- Caderno da 1ª Conferência Nacional de Comunicação. Diretório Nacional do PT, abril de 2008.
3- “O PCdoB e a luta pela democratização da mídia”. Resolução da 8ª reunião do Comitê Central, outubro de 2007.
4- Laurindo Lalo Leal Filho. Vozes de Londres. Memórias brasileiras da BBC. Edusp, SP, 2008.
5- Valério Cruz Brittos e Rafael Cavalcanti Barreto. “O potencial democrático e sua redução à mercadoria”. Observatório da Imprensa, 14/10/08.
6- “Aparelho na TV”. Editorial da Folha de S.Paulo, 19/03/07.
7- “TV do Executivo: uma ação contra o Fórum de TVs Públicas”. Intervozes, março de 2007.
8- Ernesto Carmona. “Salvador Allende se revolve na tumba”. Correio da Cidadania, 12/07/07.
9- Pedro Hurtado. “Prohibir la publicidad en los medios de comunicación de masas”. Rebelion, 20/12/08.
10- Fernando Rodrigues. “Propaganda de Lula chega a 5.297 veículos”. Folha de S.Paulo, 31/05/09.
11- Fernando de Barros e Silva. “O bolsa-mídia de Lula”. Folha de S.Paulo, 01/06/09.
12- Mino Carta. “A vitória de Lula é a derrota da mídia”. Entrevista para o sítio Fazendo Media, 03/11/06.
13- Jonas Valente. “Fórum lança manifesto em defesa do fortalecimento da mídia livre”. Observatório do Direito à Comunicação, 24/10/08.
14- Gustavo Gindre. “Os rumos do Ministério das Comunicações”. Fazendo Media, 27/11/06.
15- Laura Schenkel. “Governo acumula 14 mil pedidos de abertura de rádios comunitárias”. Boletim da FNDC, 09/12/06.
16- Venício A. de Lima e Cristiano Aguiar Lopes. “Rádios Comunitárias: coronelismo eletrônico de novo tipo (1999-2004)”.
17- “Audiência discute padrão para rádio e televisão comunitária”. Agência Adital, 27/10/09.
18- Bernardo Kucinski. Jornalismo na era virtual. Editoras Perseu Abramo e Unesp, SP, 2005.
19- Sérgio Amadeu da Silveira. Exclusão digital. Editora Perseu Abramo, SP, 2005.
20- Elvira Lobato. “Disputa de teles distorce preço da internet”. Folha de S.Paulo, 17/08/08.
21- Jonas Valente. “Lei Geral é a bola da vez, afirmam especialista do setor”. Carta Maior, 23/03/07.
22- Israel Bayma. “Uma proposta para a construção democrática da lei geral de comunicação eletrônica”. 02/08/06.
23- Ignacio Ramonet. “O quinto poder”. Caminhos para uma comunicação democrática. Jornal Le Monde Diplomatique, SP, 2007.
24- Marcos Dantas. Uma agenda democrática para as comunicações brasileiras. Cadernos da Fisenge, RJ, 2008.
- Extraído do quinto e último capítulo do livro "A ditadura da mídia", publicado pela Associação Vermelho e Editora Anita Garibaldi. Para adquirir seu exemplar, entrar em contato com Eliana Ada no endereço eletrônico - livro@vermelho.org.br
O primeiro é o da denúncia da “imprensa burguesa”. Não há como democratizar os veículos sob o comando ditatorial dos Marinhos, Civitas, Frias e demais barões da mídia. Eles serão sempre aparelhos privados de hegemonia do capital. Qualquer ilusão neste campo seria desastrosa para as forças políticas e sociais de esquerda. O segundo desafio é o da construção e fortalecimento de veículos próprios das forças engajadas na luta pela superação de todas as formas de exploração e opressão. Sem construir instrumentos contra-hegemônicos de qualidade não será possível vencer a disputa de idéias, de projetos e de valores numa sociedade tão complexa como a brasileira.
Na contracorrente da lógica capitalista
Estes dois desafios não negam, porém, a urgência de um terceiro: o da luta pela democratização dos meios de comunicação. Na contracorrente da lógica capitalista, é possível erguer barreiras ao poder da mídia burguesa e construir políticas públicas que incentivem a diversidade e pluralidade informativas e culturais, conforme apontam recentes avanços na América Latina. Neste sentido, a Conferência Nacional de Comunicação, antiga demanda dos movimentos sociais, pode ser uma alavanca. Além de envolver amplos setores da sociedade neste debate, num processo pedagógico sem precedentes na história, ela pode propor medidas concretas que coíbam a ditadura midiática.
Várias entidades progressistas estão inseridas nesta luta. O Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), criado em 1991, nasceu das mobilizações por avanços na Constituição de 1988 e agrega várias entidades [1]. O Coletivo Intervozes, fundado em 2003, reúne militantes voluntários com reconhecida capacidade de elaboração. Já o Fórum de Mídia Livre, lançado em março de 2008, articula jornalistas, acadêmicos e veículos progressistas. A Federação Nacional de Jornalistas (Fenaj) e a Federação de Trabalhadores em Empresas de Rádio e Televisão (Fitert) não limitam sua atuação à defesa dos interesses corporativos. Destacam-se, ainda, a Associação Brasileira das Rádios Comunitárias (Abraço) e a Associação Mundial das Rádios Comunitárias (Amarc), entre outras organizações que priorizam a luta pela democratização da comunicação.
Os partidos de esquerda também estão se dando conta da importância desta frente de atuação. O PT, que sempre contou com renomados intelectuais da área, realizou em 2008 sua 1ª Conferência Nacional de Comunicação e apontou os caminhos para uma mídia democrática [2]. Já o PCdoB aprovou, em novembro de 2007, resolução específica com propostas concretas para o setor [3]. “A luta pela democratização da mídia faz parte da jornada pela ampliação da democracia como forma de alavancar a própria luta pela emancipação dos trabalhadores”, explica Renato Rabelo, presidente do PCdoB. No caso do PSB, vale citar a corajosa ação da deputada Luiza Erundina; já no PSOL, o deputado Ivan Valente se destaca por suas denúncias das manipulações midiáticas.
Há consenso entre estas forças políticas e sociais que não basta somente o diagnóstico sobre os efeitos nocivos da mídia hegemônica. Que ela não serve aos anseios dos trabalhadores, a história comprova de maneira cabal. Que ela é altamente concentrada e manipuladora, os fatos também evidenciam. Mais do que diagnosticar, é urgente avançar na formulação de propostas concretas que visem superar esta deformação na sociedade. Neste esforço, algumas proposições adquirem força catalisadora, capaz de unir amplos setores na luta pela democratização da comunicação. Na seqüência, apresento algumas delas, não como pacote fechado, mas como um roteiro de reflexão.
1- Fortalecer a radiodifusão pública
Como descrito no terceiro capítulo, a radiodifusão brasileira adotou o modelo privado made in EUA, diferentemente de várias nações nas quais a rede pública tem forte influência. O caso mais famoso é o da BBC de Londres, que se projetou na II Guerra Mundial, é gerida por um conselho autônomo e produz programas de qualidade [4]. Na França, quatro redes integram o seu sistema público. Na Alemanha, ARD e ZDF têm 14 emissoras locais e o seu conselho, com 77 membros, reúne partidos e movimentos sociais. Mesmo nos EUA, a PBS possui um conselho independente com 27 membros e congrega 354 retransmissoras. Já a APT, segunda maior rede pública do país, tem um orçamento de US$ 2 bilhões e retransmite a sua programação para 356 emissoras locais.
No Brasil, o modelo público nunca vingou. A única iniciativa mais ousada neste campo ocorreu no governo de Getúlio Vargas com a criação da Rádio Nacional, que teve expressiva audiência. O espectro eletromagnético, um bem público e finito, tornou-se um bem privado dos barões da mídia, autênticos “latifundiários do ar”. No caso da TV, o setor privado detém cerca de 80% das emissoras, 90% da audiência e 95% das receitas publicitárias. Principal veículo de comunicação de massas, sua influência na sociedade é arrasadora. Censo do Ibope de 2005 revelou que 93,1% dos domicílios no país tinham aparelhos de televisão, número superior aos lares com geladeiras. Apontou ainda que 81% dos brasileiros assistem TV diariamente, passando 3,9 horas diárias, em média, presos às telinhas.
Fruto do ascenso democrático, o artigo 223 da Constituição de 1988 fixou a complementaridade dos sistemas privado, público e estatal. Na prática, porém, nunca houve investimento nos setores não comerciais. Nos anos do neoliberalismo, ainda houve o desmanche do pouco que existia. Em 1995, com a aprovação da Lei da TV a Cabo, as redes privadas foram obrigadas a reservar cinco canais estaduais para o uso do Executivo, Legislativo, Judiciário, um canal comunitário e outro universitário. Mesmo assim, eles padecem da falta de recursos e foram excluídos da TV aberta. “O espaço conquistado está esvaziado, falido, pouco qualificado ou mesmo reproduzindo a lógica mercantil das grandes emissoras” [5].
Só após sofrer brutal bombardeio midiático na eleição de 2006, o presidente Lula decidiu investir na construção de uma rede pública nacional de televisão e rádio. A criação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), que gerencia a TV Brasil, oito emissoras de rádio e uma agência noticiosa, sinalizou uma mudança de postura do governo. Inaugurada em dezembro de 2007, a TV Brasil dá os primeiros passos na construção de uma emissora sem fins lucrativos. Seu conselho curador é presidido pelo economista Luiz Gonzaga Belluzzo; já sua ouvidoria, dirigida pelo jornalista Laurindo Lalo Leal Filho, é um mecanismo de fiscalização da sociedade. Ela também constrói a sua própria rede nacional, fortalecendo as estruturas de 95 emissoras estaduais.
Exatamente por seu papel democratizante, a EBC sofre o cerco dos donos da mídia e ainda corre riscos. Tudo é feito para limitar o seu alcance e asfixiar seu financiamento. Antes mesmo de ser lançada, ela foi alvo de intensa oposição. A Folha de S.Paulo, por exemplo, publicou uma série de artigos para desqualificá-la e seu editorial arrematou: “Lula e o PT querem deixar sua marca particular no telecoronelismo criando um canal do Executivo; a proposta é descabida” [6]. Os ataques visaram confundir os conceitos entre rede estatal e pública, e contaram com a descarada ajuda do ministro Hélio Costa, ex-funcionário da TV Globo e porta-voz dos radiodifusores [7].
A EBC é uma conquista das forças progressistas na luta contra a ditadura midiática. Ela deve ser fortalecida e aperfeiçoada. Isto não a exime dos problemas, que decorrem da sua própria origem conflituosa no interior do governo e de impasses no seu projeto editorial, entre outras lacunas. Os seus recursos são escassos, menos de 5% na comparação com a receita da Rede Globo, e a TV Brasil sequer é transmitida em canal aberto. Seu conselho curador, indicado pelo presidente Lula, não contempla a diversidade dos movimentos sociais. Estes e outros problemas comprometem a sua autonomia de gestão e de financiamento, marcas que distinguem a rede pública da estatal, e dificultam que ela tenha maior visibilidade na sociedade. Mudanças são necessários e urgentes.
As propostas unitárias apresentadas pelos movimentos sociais no 1º Fórum de TVs Públicas, em maio de 2007, continuam atuais: instalação de um “conselho representativo, plural e autônomo, com maioria da sociedade civil, como instância decisória”; “igualdade de participação e respeito à diversidade (regional, mulheres, negros) no seu conselho”; “fomento à produção independente, ampliando a presença desses conteúdos na sua grade de programação”; maior disponibilidade de “verbas do orçamento público no seu financiamento e proibição da publicidade comercial, mas garantido as produções compartilhadas, o apoio cultural e a publicidade institucional”; “que os canais públicos, que hoje são garantidos pela Lei do Cabo, estejam em sinal aberto”.
2- Revisar os critérios das concessões
Desde o início das transmissões de rádio, em 1922, e de televisão, nos anos 1950, o processo de concessão de outorgas às emissoras sempre foi influenciado pelo poder econômico dos donos da mídia e por suas relações promíscuas com o Estado. Concedidas sem qualquer critério objetivo, as outorgas beneficiaram os mesmos grupos empresariais, o que reforçou a propriedade cruzada e a concentração no setor. Nesta longa trajetória monopolista, as redes privadas desrespeitaram as tímidas legislações existentes. Na prática, os barões da mídia exercem uma autêntica ditadura midiática, ficando acima das leis, das normas constitucionais e do próprio Estado de Direito.
A Constituição de 1988, por exemplo, proíbe a formação dos monopólios, exige a produção de conteúdos regionais, obriga que as emissoras tenham finalidades educativas, culturais e artísticas e determina que elas expressem a diversidade de pensamento na sociedade. Como nunca foram regulamentados, estes princípios progressistas viraram letra morta. O atual processo de outorga e de renovação das concessões, com prazo de 15 anos para as TVs e de dez anos para as rádios, é uma verdadeira caixa-preta. A sociedade não exerce qualquer controle sobre este bem público. O Congresso Nacional, que a partir da Constituição de 1988 virou co-responsável pelas concessões e renovações, não cumpre seu papel, submetendo-se à pressão e chantagem dos barões da mídia.
Qualquer questionamento a estas distorções é tachado como “atentado à liberdade de imprensa” pela mídia hegemônica. Ela omite que vários países exercem o direito democrático, inclusive, de não renovar concessões que ferem sua legislação. Até os EUA, nação badalada pela mídia servil, controlam os seus meios de comunicação de massas. A Administração Federal de Comunicações (FCC) cancelou 141 concessões de rádio e TV entre 1934 e 1987. Em 40 desses casos, ela nem esperou que expirasse o prazo da concessão. Já o governo britânico revogou a licença da OneTV, em agosto de 2006; da StarDate, em novembro de 2006; e do canal de televendas Auctionword, em dezembro de 2006. A Espanha revogou, em julho de 2005, a concessão da TV Católica. E a França cancelou a licença da TF1, em dezembro de 2005, por ela ter negado o Holocausto.
Na defesa da democracia e da autêntica liberdade de expressão, o país necessita ser mais rigoroso na análise das concessões e renovações das outorgas. É preciso exigir o cumprimento das normas constitucionais e das leis vigentes. Várias redes privadas desrespeitam o limite mínimo de tempo de 5% para o jornalismo e máximo de 25% para a publicidade. Ainda veiculam merchandising, o comercial disfarçado, o que vetado pelo Código de Defesa do Consumidor. A maioria não exibe o conteúdo educativo exigido pelo Constituição; quando exibe é em horários de baixa audiência. O lobby da mídia também sabotou a classificação indicativa, medida essencial para o resguardo do Estatuto da Criança e dos Adolescentes. Num desrespeito à legislação, várias emissoras de rádio e televisão são dirigidas por “laranjas” de políticos com mandato.
Diante destes e outros abusos, é inadmissível que as outorgas e renovações sejam dadas de forma automática, sem consulta à sociedade. Em vários países existem ouvidorias públicas para receber críticas e analisar as concessões; muitos promovem audiências sobre o tema. Em casos extremos, diante do desrespeito às leis, vários governos simplesmente revogam as concessões. A não renovação é um ato democrático, como admite a União Internacional das Telecomunicações (UIT), que “reconhece em toda sua amplitude o direito soberano de cada Estado de regulamentar o setor, devido à importância crescente das telecomunicações na salvaguarda da paz e do desenvolvimento econômico e social” [8].
3- Rever os critérios da publicidade oficial
A publicidade é a principal fonte de recursos da mídia hegemônica. O faturamento com anúncios publicitários, que superou R$ 21,4 bilhões em 2008, garante os investimentos neste setor de alta tecnologia e os lucros dos empresários, reforçando os impérios midiáticos. Nada é dado de graça, como costuma tergiversar a Associação Brasileira de Rádio e Televisão (Abert) para se contrapor ao controle público. A exibição “gratuita” do conteúdo é paga pela publicidade e os altos custos de produção e veiculação são repassados ao preço da mercadoria. Além de seduzir o consumidor, o anúncio cumpre o papel ideológico de “vender” um estilo de vida, individualista e consumista.
Para o sociólogo Pedro Hurtado, “a publicidade, à margem da sua finalidade comercial, é pura e dura propaganda do modo de vida e de pensamento inerente à ideologia social predominante na atualidade: o consumismo-capitalismo. A publicidade não apenas vende produtos, mas também impõe um modo de vida, valores morais e culturais, códigos simbólicos e, em definitivo, uma ideologia... O consumismo é uma forma de pensar segundo a qual o sentido da vida consiste em comprar objetos e serviços. Esta forma de pensar se converte na principal ideologia que sustenta o sistema capitalista” [9].
Se a correlação de forças na sociedade não possibilita, ainda, adotar medidas mais rigorosas de controle da publicidade comercial, o atual estágio das lutas sociais no país já permite, ao menos, rediscutir os critérios de distribuição das verbas publicitárias dos governos. Afinal, este dinheiro é oriundo dos tributos da sociedade. O montante de recursos é expressivo e serve para “alimentar cobras”. Os barões da mídia que abocanham estes recursos públicos são os mesmos que pregam golpes, desestabilizam governos, criminalizam as lutas dos trabalhadores e idolatram o “deus-mercado”. A publicidade oficial reforça a monopolização do setor, quando poderia servir para estimular a diversidade e pluralidade informativas numa sociedade mais democrática.
De forma discreta, o governo Lula promoveu algumas mudanças nesta área. Ele descentralizou a distribuição das verbas oficiais. “Os comerciais do Palácio do Planalto atingiram no ano passado 5.297 veículos de comunicação. O número representa uma alta de 961% sobre os 499 meios que recebiam dinheiro para divulgar propaganda do governo Lula em 2003, quando o petista tomou posse”, resmungou a Folha [10]. A descentralização da publicidade oficial diminuiu o montante abocanhado por poucos barões da mídia. Irritados, eles agora criticam a rotulada “bolsa-mídia de Lula”, afirmando que ela serve para “alimentar a rede chapa-branca do governo” [11].
Apesar da gritaria, a administração direta e indireta é uma das maiores anunciantes do país. Os gastos publicitários dos governos FHC e Lula oscilaram entre R$ 900 milhões e R$ 1,2 bilhão. O pico de FHC foi em 2001, com R$ 1,114 bilhão em anúncios; em 2008, o governo Lula investiu R$ 1,027 bilhão. Isto sem contabilizar os custos da produção dos comerciais e os gastos com os patrocínios nas áreas de esporte, cultura e outras – que atingiu R$ 918 milhões em 2008. A soma de publicidade e patrocínio injetou quase R$ 2 bilhões na mídia. Na comparação com a iniciativa privada, o maior anunciante em 2008 foi a Casas Bahia, com R$ 3,2 bilhões; o segundo lugar ficou com a Unilever, dona das marcas Kibon, Omo, Dove e Rexona, que gastou R$ 1,75 bilhão.
Quase a totalidade da publicidade oficial engorda os bolsos dos barões da mídia. O governo Lula nunca teve a coragem para investir em veículos alternativos e estes estão à míngua. Até a revista Carta Capital, que adota uma linha jornalística mais independente, sofre com esta tibieza, como crítica Mino Carta [12]. A desculpa usada pelo governo é que ele adota critérios mercadológicos, medidos pela audiência e tiragens. Com esta postura aparentemente “neutra”, o governo reforça a monopolização do setor. É urgente redefinir os critérios para a publicidade oficial. Países como a Itália e a França adotam normas legais para incentivar a diversidade e pluralidade informativas, barateando os custos de impressão e garantindo cotas de publicidade para veículos alternativos.
O Fórum de Mídia Livre defende o estabelecimento de critérios democráticos e transparentes de distribuição dos recursos oficiais, e não apenas a partir da reprodução da lógica mercadológica. “O Estado não vende mercadoria, presta serviço publico. O critério de veiculação não deve ser o da circulação, pois este está ligado à lógica da audiência como mercadoria. A mídia comercial vende audiência, isto é, circulação ou pontos de Ibope, remunerando seus fatores de produção em função da receita que o anunciante lhe proporciona devido ao público que pode atingir. Ora, o Estado não precisa se subordinar a tais critérios. O Estado não vende nada, apenas presta contas, logo pode e deve chegar ao cidadão através de muitos canais pelos quais o cidadão se informa”, explica Marcos Dantas, professor da PUC/RJ e integrante da coordenação do movimento [13].
4- Estimular a radiodifusão comunitária
A radiodifusão comunitária é recente no país e já demonstrou o seu potencial prático na luta pela democratização das comunicações. Ela dá voz a quem não tem voz. Permite que as comunidades “excluídas” expressem seus anseios e reivindicações, divulguem suas criações culturais, prestem serviços à população. Essa experiência no Brasil surgiu no início dos anos 1980, ainda na fase sombria da ditadura militar, e só foi reconhecida legalmente em 1998 – na Bolívia, as rádios comunitárias surgiram na década de 1950 no bojo das greves dos mineiros; já no Chile, elas contribuíram para as vitórias da Unidade Popular, a coalizão socialista de Salvador Allende.
Temendo a sua concorrência, a radiodifusão comunitária é alvo da fúria da mídia hegemônica. Já os governos, sob pressão dos empresários, investem para criminalizá-la. O governo Lula foi até mais realista do que o rei, batendo recorde de perseguição. Segundo pesquisa da Abraço, de 2002 a 2007, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e a Polícia Federal fecharam mais de 15 mil rádios comunitárias. “Também foram abertos mais de 20 mil processos e cerca de 5 mil militantes foram condenados judicialmente por tentar exercer o direito de livre expressão”. O atual ministro das Comunicações, Helio Costa, dono da rádio Sucesso FM, de Barbacena (MG), vetou todos os projetos de avanço neste setor e “recrudesceu o fechamento das emissoras” [14].
Além da repressão, tudo é feito para inviabilizar a legalização da radiodifusão comunitária. A burocracia é infernal, com inúmeros obstáculos administrativos. Estudo feito pelo Sistema de Controle de Radiodifusão, em novembro de 2006, apontou a existência de 13.595 pedidos de rádios comunitárias acumulados no Ministério das Comunicações – três vezes mais do que os 4.400 verificados no início de 2003. José Sóter, dirigente da Abraço, critica os burocratas do ministério, “subservientes à Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) e aos interesses dos monopólios da comunicação, e a falta de gente que esteja comprometida com a efetivação do serviço de radiodifusão comunitária como política pública de comunicação” [15].
Estudo recente, no qual foram pesquisadas 2.205 rádios comunitárias autorizadas pelo Ministério das Comunicações (80,44% do total das legalizadas), ainda aponta para outro grave perigo: o de que estas concessões sejam utilizadas como moeda de barganha, servindo a políticos fisiológicos e credos religiosos. A pesquisa indica que “a maioria das rádios comunitárias funciona no país de forma ‘irregular’ porque não se logrou ser devidamente autorizada; e, entre a minoria autorizada, mais da metade opera de forma ilegal. Entre as 2.205 rádios pesquisadas, foi possível identificar vínculos políticos em 1.106 – ou 50,2% delas... Há, também, um número considerável de rádios com vínculos religiosos: 120 delas, ou 5,4% do total”. Este deformação revelaria a existência de um “coronelismo eletrônico de novo tipo, envolvendo as outorgas de rádios comunitárias” [16].
Para complicar ainda mais o quadro, o setor passa por um processo de mutação tecnológica para sua digitalização. O Ministério das Comunicações, dominado pelos barões da mídia, já anunciou que prefere o padrão digital dos EUA, o IBOC. Várias rádios foram autorizadas a realizar testes com o novo padrão, criando um fato consumado – sem qualquer consulta à sociedade. Além de ser propriedade de uma única empresa, que cobrará elevados royalties, essa tecnologia ocupa o espectro de forma predatória, fechando espaços para as transmissões. Ele inclusive avança sobre fatias de freqüências ocupadas pelo sistema analógico. Ao encarecer os equipamentos e restringir as transmissões, esse padrão de digitalização poderá asfixiar a radiodifusão comunitária no país.
Ao invés de ser criminalizada, a radiodifusão comunitária deveria ser incentivada pelos poderes públicos. Diante do golpismo da ditadura midiática, ela é uma arma contra-hegemônica decisiva na defesa da democracia. O Estado deveria baratear seus equipamentos e promover oficinas para capacitar os radiodifusores. Mudanças na legislação deveriam garantir o aumento do número de freqüências das emissoras e ampliar o limite da área e o potencial de seu alcance – hoje restrito a um quilometro. A urgente criação de um sistema brasileiro de rádio digital serviria para evitar a monopolização do setor. Além disso, o poder público deveria garantir os meios de sustentação financeira destes veículos, investindo na construção de conteúdos de qualidade e plurais, e criar barreiras para coibir sua apropriação por setores fisiológicos e para garantir o seu caráter laico.
Para agilizar a legalização das rádios, a FNDC propõe medidas simples, como a descentralização dos processos de concessão, redução dos prazos de tramitação e zoneamento da radiofreqüência para definir o canal e a potência para cada localidade. Já a Amarc defende mudanças urgentes no marco regulatório. Entre outros pontos, ela propõe que “as comunidades organizadas e entidades sem fins lucrativos tenham direito a usar a tecnologia de radiodifusão disponível, tanto analógica como digital”; que “os meios comunitários tenham assegurada a sua sustentabilidade econômica, independência e desenvolvimento”, por meio de patrocínios e publicidade oficial; e a criação “de fundos públicos para assegurar o seu desenvolvimento” e de “políticas públicas que desonerem ou reduzam o pagamento de taxas e impostos, incluindo o uso de espectros” [17].
5- Investir na inclusão digital
Criada nos EUA para fins militares e impulsionada pelos circuitos financeiros do capitalismo, a internet tem transformado o mundo das comunicações. Os mais otimistas chegam a falar numa “revolução”, que permitiria a democratização da produção de conteúdos e da sua difusão. Outros, mais cautelosos, apontam que a tendência monopolista do capital já se faz sentir na centralização dos portais da internet, além do que o capital imporá formas de controle. O projeto do senador tucano Eduardo Azeredo, já batizado de AI-5 digital, confirma este perigo, a exemplo do ataques desferidos pelo presidente-terrorista George Bush e pelo fascistóide Nicolas Sarkozy na França.
Independentemente das tendências futuras, a internet já provoca enormes abalos no setor. Vários jornais e revistas perderam tiragens, faliram ou viraram online. A própria linguagem da televisão é afetada por esta nova forma de comunicação, mais ágil e interativa. Muitos protestos políticos, a partir da manifestação contra a globalização neoliberal que paralisou Seattle em 1999, já são convocados por sítios e blogs progressistas. Manipulações da mídia hegemônica são desnudadas na internet. De 1999 a 2006, mais de 47 milhões de blogs entraram no ar. Neles circulam 1,2 milhão de novos artigos por dia, ou 50 mil por hora, escritos por cerca de 35 milhões de pessoas.
Entusiasta da internet, Bernardo Kucinski afirma que ela “é a maior revolução nas comunicações desde a invenção de Gutenberg. Não admira que tenha reaberto uma nova era de encantamento do ser humano com a comunicação e com a arte de escrever... Na articulação das ONGs e dos movimentos sociais, a internet tem tido papel decisivo, recuperando com grande vantagem o antigo papel atribuído por Lênin à imprensa como ‘organizadora do movimento operário’. Na era da globalização, ela se tornou uma organizadora da cidadania, como expressa o Fórum Social Mundial. Este certamente não teria existido sem a internet. Ela também deu viabilidade técnica ao exercício da democracia direta e acesso direto do cidadão aos serviços do Estado” [18].
Esta “essência libertária”, porém, pode ser castrada pela exclusão digital, alerta Sérgio Amadeu, outro entusiasta da internet. “Quanto custa se conectar à sociedade da informação? Para acessar a internet, a rede mundial de computadores, é preciso pagar mensalmente um provedor de acesso e o gasto com a conta telefônica. Além disso, é preciso ter um computador que custa mais de mil reais. Em um país com quase um terço da sociedade abaixo da linha da pobreza, gastar algo em torno de 40 reais por mês pelo uso mínimo de conexão e conta telefônica é impossível para a maioria da população. Essa é a nova face da exclusão social”, explica didaticamente [19].
Para superar este gargalo, ambos concordam que o Estado deve ter papel pró-ativo. Não dá para deixar esta tecnologia nas mãos “invisíveis” do deus-mercado. Entre outras medidas, é urgente regular o setor para universalizar o acesso à internet, visando a sua gratuidade. O preço da banda larga no país é dos mais altos no mundo devido à desregulamentação das telecomunicações [20]. É preciso também uma política mais ofensiva para baratear os aparelhos, inclusive superando a “ditadura de Bill Gates” através do software livre. Segundo a PNAD de 2004, somente 16,6% das residências brasileiras tinham computadores. Dados do Ibope de 2007 revelaram que apenas 14,1 milhões dos lares tinham acesso à internet. “Devemos elevar a questão da inclusão digital e da alfabetização tecnológica à condição de política pública”, defende Sérgio Amadeu.
6- A urgência do novo marco regulatório
Estas e outras mudanças colocam a urgência de um novo marco regulatório para o setor. A atual legislação é ultrapassada, datada de 1962, carregada de vícios e não dá respostas aos vertiginosos avanços tecnológicos na área. Além de coibir os monopólios e regulamentar outros princípios da Constituição de 1988, como o que garante o respeito à pluralidade de opiniões, a nova legislação deve enfrentar os desafios do futuro. O processo de convergência digital, no qual as corporações multinacionais avançam sobre a mídia, torna este debate ainda mais atual. Hoje é preciso impor regras para evitar a desnacionalização do setor e para garantir a produção e a cultura nacionais.
Apesar das restrições do padrão japonês adotado pelo governo, a nova legislação deve regular a implantação da TV e da rádio digital, protegendo o conteúdo nacional e explorando seu potencial na promoção da diversidade e da inclusão social. Ela não pode depender do resultado da disputa entre as operadoras de telefonia e os barões da mídia. “No bojo da convergência tecnológica, o instinto de sobrevivência dos radiodifusores e a ânsia pela entrada no mercado do conteúdo audiovisual das chamadas teles deverão ser a força motriz da mudança na legislação... É preciso garantir que o campo não seja ocupado apenas pela polarização radiodifusores x teles, mas pelo conjunto dos atores que tem propostas para a reformulação legal”, alerta Jonas Valente [21).
O novo marco regulatório deve fixar políticas públicas que garantam o acesso da população aos avanços tecnológicos. O Brasil ainda está muito atrasado neste campo, seja no acesso à internet, às salas de exibição de cinema ou mesmo à telefonia. “Em 1997, o numero de telefones por 100 habitantes era de 11,7%; em 2004, passou para 29%. Apesar de a telefonia chegar praticamente a todos os 5.484 municípios, nos 5 mil mais pobres ela é a mesma de antes da privatização; 11% ou 7,5 milhões de linhas... Assim, grandes parcelas da população estão excluídas dos avanços tecnológicos. Esse quadro, já amplamente diagnosticado pelo governo Lula, impõe a necessidade de um novo modelo institucional”, que garanta o “adequado equilíbrio entre os sistemas privado, público e estatal” e evite “a concentração da propriedade”, propõe Israel Bayma [22].
A nova legislação também deveria fixar mecanismos democráticos de controle social dos meios de comunicação. Ignacio Ramonet, diretor do jornal Le Monde Diplomatique, defende a criação de observatórios de mídia nas escolas e espaços públicos para monitorar o que é divulgado. “A informação, como os alimentos, está contaminada. Envenena o espírito, polui nossos cérebros, nos manipula, nos intoxica, tenta instilar em nosso inconsciente idéias que não são nossas”. Daí a urgência de um “quinto poder” fiscalizador [23]. No mesmo rumo, é preciso reativar o Conselho de Comunicação Social, previsto na Constituição, mas que está esvaziado. Há ainda a proposta dos sindicatos de jornalistas da criação dos conselhos de redação, como instrumento de luta da categoria e também como contraponto à manipulação, à censura e à pressão dos donos da mídia.
Como conclui Marcos Dantas, a comunicação passa por aceleradas mudanças. Em curto espaço de tempo, nada será como antes neste setor. A televisão, por exemplo, “não será apenas esta que temos: aberta, unidirecional, oferecida por grandes grupos empresariais e sustentadas pela grande publicidade. A TV poderá ser também local ou comunitária, via internet”. O rumo das mudanças dependerá da correlação de forças na sociedade e da construção de um novo marco regulatório e legal. “Na verdade, o capitalismo desenvolveu essas tecnologias e vai moldando os seus usos, ao seu gosto. Nada impede, porém, que o povo trabalhador possa disputá-las, delas se apropriar e a elas dar novos e mais democráticos rumos” [24].
NOTAS
1- James Görgen. “Como domar essa tal de mídia?”. Cartilha nº 1 da FNDC.
2- Caderno da 1ª Conferência Nacional de Comunicação. Diretório Nacional do PT, abril de 2008.
3- “O PCdoB e a luta pela democratização da mídia”. Resolução da 8ª reunião do Comitê Central, outubro de 2007.
4- Laurindo Lalo Leal Filho. Vozes de Londres. Memórias brasileiras da BBC. Edusp, SP, 2008.
5- Valério Cruz Brittos e Rafael Cavalcanti Barreto. “O potencial democrático e sua redução à mercadoria”. Observatório da Imprensa, 14/10/08.
6- “Aparelho na TV”. Editorial da Folha de S.Paulo, 19/03/07.
7- “TV do Executivo: uma ação contra o Fórum de TVs Públicas”. Intervozes, março de 2007.
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9- Pedro Hurtado. “Prohibir la publicidad en los medios de comunicación de masas”. Rebelion, 20/12/08.
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19- Sérgio Amadeu da Silveira. Exclusão digital. Editora Perseu Abramo, SP, 2005.
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23- Ignacio Ramonet. “O quinto poder”. Caminhos para uma comunicação democrática. Jornal Le Monde Diplomatique, SP, 2007.
24- Marcos Dantas. Uma agenda democrática para as comunicações brasileiras. Cadernos da Fisenge, RJ, 2008.
- Extraído do quinto e último capítulo do livro "A ditadura da mídia", publicado pela Associação Vermelho e Editora Anita Garibaldi. Para adquirir seu exemplar, entrar em contato com Eliana Ada no endereço eletrônico - livro@vermelho.org.br
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