O acirramento do confronto ideológico em torno de Cuba |
Escrito por Gabriel Brito - Correio da Cidadania | |
Nas últimas semanas, todos os antagonismos ideológicos exaltados a
partir do modo de vida cubano voltaram a ocupar grande parte do debate
público. Abordada com ênfase pela grande mídia, a morte de Orlando
Zapata Tamayo por conta de sua greve de fome num presídio de Havana
acirrou a guerra de informações a respeito do que se passa na Ilha.
Ainda mais porque se consumou exatamente no dia em que uma comitiva
brasileira, comandada pelo próprio presidente Lula, chegara ao país.
Como se sabe, Zapata Tamayo foi apresentado à opinião pública como
dissidente perseguido politicamente, o que é veementemente negado pelas
fontes locais, além de nebuloso, de acordo com o que informam órgãos
internacionais. Assim, puderam voltar a execrar a ‘ditadura’ que vigora
há mais de 50 anos e silenciaria todo desejo de mudança ansiado pela
população.
Como exemplo da indignação com o perecimento do preso, o implacável
editorial de 27 de fevereiro da Folha de S. Paulo, cujo início lamenta
que, "pela quarta vez em seu mandato, o presidente Luiz Inácio Lula da
Silva se dispôs a endossar, entre sessões de fotos, tapinhas nas costas
e desconversas macunaímicas, o mais ditatorial regime do hemisfério
americano".
Para os mais desavisados, parece que a onda de violência política em
Cuba atinge os mais descontrolados e alarmantes índices, sendo o povo
local completamente impedido de qualquer participação e decisão em seu
cotidiano. Não é bem assim. Como destacou o jornalista Breno Altman, do
Opera Mundi, a população tem participação regular e constante nos
processos decisórios. "A Constituição de 1976, reformada em 1992,
estabeleceu o ordenamento jurídico do modelo. Um dos principais
ingredientes foi a criação do Poder Popular, com suas assembléias
locais, municipais, provinciais e nacional", aclara.
E ao contrário do que se pode pensar, não é um processo tão
dessemelhante ao da nossa chamada democracia participativa, pois os
representantes dessas instâncias, que não aceitam indicações de
possíveis nomes por parte do PC, são escolhidos pelo voto. Aliás, o
próprio regime teve sua orientação base, o socialismo, referendado pela
população, como conta Altman.
"A Constituição prevê mecanismos de consulta popular. Dispondo desse
direito, o dissidente Oswaldo Payá, líder do Movimento Cristão de
Libertação, reapresentou à Assembléia Nacional do Poder Popular, em
2002, uma petição com 10 mil assinaturas para que fosse organizado
referendo que modificasse o sistema político e econômico na ilha. O
governo reuniu 800 mil registros para propor outro plebiscito, que
tornava o socialismo cláusula pétrea da Constituição. Por causa da
quantidade de assinaturas, teve preferência. Cerca de 7,5 milhões de
cubanos (65% do eleitorado), apesar de o voto em referendo ser
facultativo, votaram pela proposta defendida por Fidel Castro".
Ou seja, o povo cubano pode ter dúzias de críticas ao funcionamento de
sua nação, mas não há nenhuma intenção da maioria em retornar ao
capitalismo, o que é, obviamente, o cerne do debate e alvo oculto de
uma mídia que, lembremos, é comercial e busca o lucro em seus negócios.
Humanistas
No entanto, as paixões que o assunto desperta de lado a lado não deixam
a contenda ideológica arrefecer tão facilmente. "Nada disso se confunde
com a revoltante ‘ternura’, para lembrar o célebre dito de Che Guevara,
que o governo Lula ‘não perde jamais’ quando se trata de emprestar
apoio a um regime decrépito, ditatorial e homicida", completa em tom
histérico a Folha, não sem antes lamentar a ‘placidez’ com que o
ministro das relações exteriores, Marco Aurélio Garcia, tratou dos
problemas de direitos humanos na ilha.
É de se reconhecer neste ponto um paradoxo monumental na mídia
brasileira (destacando que outros como Globo e Estadão engrossaram as
críticas no mesmo tom). Os mesmos veículos indignados com dita tirania
do governo de Raul Castro promoveram enorme grita contra o Plano
Nacional de Direitos Humanos, que visa criar instrumentos de
aprofundamento de nossa democracia (como controle social na mídia), mas
que foi tratado pelos mesmos como stalinista, totalitário e por aí
afora.
De quebra, a Folha e seus articulistas aproveitam o ensejo para
minimizar conhecidas atrocidades do que entendem por democracia nos
EUA, quando esta também foi questionada por Garcia ("Há problemas de
direitos humanos no mundo inteiro"), apontando para as mundialmente
famosas violências e ilegalidades em Guantánamo.
"É o clássico expediente de voltar contra outro país as acusações que
se referem, especificamente, à tirania que se quer apoiar. É inegável
que Bush maculou as tradições democráticas de seu país a pretexto da
‘guerra contra o terror’. É também evidente que nunca faltou, nos EUA,
liberdade para protestos contra o governo - coisa impensável sob o
sistema castrista". Além de ser questionável o fato de haver espaço
para contestações num país cujos sindicatos são nulos, não há margem
alguma para comparações do que também parecem ataques aos direitos
humanos por parte dos EUA.
A própria imprensa comercial vive noticiando mortes de civis em
ofensivas do exército norte-americano em localidades como Paquistão,
Afeganistão e Iraque, sendo, aliás, os dois últimos países ocupados
militarmente. A unilateralidade da potência também se viu em
Copenhagen, quando sua delegação simplesmente se recusou a quaisquer
conversas prévias acerca de diminuição de emissões de gases estufa,
quando o mundo clama por mudanças de paradigma em favor do
meio-ambiente.
São muito fortes as evidências que levam a crer que Zapata Tamayo não
era um ‘preso de consciência’, como se difunde incessantemente. De
acordo com o pesquisador e ensaísta Enrique Ubieta Gomez (diretor da
revista La Calle Del Medio), por exemplo, "era um preso comum, cujos
problemas com a justiça começaram em 1988, ou seja, quinze anos antes
da confecção da lista (de presos políticos da Anistia Internacional, de 2003).
Em sua larga carreira delitiva foi processado por "violação de
domicílio", ‘lesões menos graves’, ‘furto’, ‘lesões e porte de arma
branca’, ‘perturbação da ordem’ e ‘desordens públicas’", informa. Muito
contrastante com o que escreveu Janio de Freitas, tratando Tamayo como
"um operário que aderiu à militância política contra o regime".
Tal informação, mesmo tendo aparência contundente, pode ser, de fato,
contestável, ainda mais sabida a considerável impenetrabilidade da vida
cotidiana na ilha. Mas ainda assim há elementos de sobra, como a
ausência de seu nome nas listas internacionais, que ao menos podiam
fazer tal versão de sua vasta folha corrida ser investigada a fundo.
Até porque qualquer analista sério sabe que existe, e sempre existiu,
sabotagem política liderada pelos Estados Unidos, cujos planos de
destruição da Revolução local sempre foram famosos, além de até hoje
manterem o embargo e a declaração de guerra contra os cubanos.
Como escreveu no Observatório da Imprensa o advogado Fabio de Oliveira
Ribeiro, é impossível não tratar a abordagem do episódio como
‘propaganda política’ por parte dos detratores e inimigos do regime
cubano, o que é o caso da grande mídia nacional e internacional e seus
governos volúveis na compreensão de atentados aos direitos humanos.
1 vale mais do que 2000?
E para comprovar o interesse político, e possíveis ardis, em torno do
desfecho da vida de Tamayo, é necessário comparar a repercussão e
indignação nos meios de comunicação com a revelação de que na Colômbia
se encontrou uma fossa comum com 2000 corpos, enterrados por
paramilitares e soldados do exército local nos últimos cinco anos.
Trata-se de um fato infinita e indiscutivelmente mais brutal. Nessa
década, cerca de 14 mil pessoas foram assassinadas pelas forças
oficiais e os ‘paras’. E quase todos por serem líderes comunitários,
sindicais ou representantes populares. De quebra, relatório recente da
Coalizão Colombiana Contra a Tortura apontou que o Estado é o
responsável pela maior quantidade dos casos de torturas e outras
violações aos direitos humanos que correm a solta por lá. E nunca se
viu a nossa mídia denunciar o regime de Uribe - muito menos a potência
do hemisfério norte - de ‘homicida’ ou algo que o valha.
"A Anistia Internacional não menciona em nenhum momento as supostas
atividades políticas que o levaram a prisão. A razão é relativamente
simples: Zapata nunca realizou atividades anti-governamentais antes de
seu encarceramento. Pelo contrário, a organização reconhece que foi
condenado em maio de 2004 a três anos de prisão por ‘desacato,
alteração da ordem pública e resistência’. Essa sanção é relativamente
leve se comparada com a dos 75 opositores condenados em março de 2003 a
penas que vão até 28 anos de cadeia ‘por terem recebido fundos ou
materiais do governo estadunidense para realizar atividades que as
autoridades consideram subversivas e prejudiciais a Cuba’, como
reconhece a AI, o que constitui um grave delito em Cuba – e também em
qualquer país do mundo", escreveu Salim Lamrani, do Le Monde
Diplomatique.
"Aqui, a AI não pode escapar de uma evidente contradição: por um lado
qualifica essas pessoas de ‘prisioneiras de consciência’, e por outro
admite que cometeram um grave delito de aceitar ‘fundos ou materiais do
governo estadunidense’", completa.
Outros que não desfrutaram da mesma sensibilidade da opinião pública
foram os hondurenhos. Recém assaltados em sua democracia pelo golpe de
Estado comandado pelas oligarquias locais, mais de cem daqueles que
poderiam também ser qualificados de ‘dissidentes’ foram executados. No
entanto, não tiveram a mesma visibilidade. Além disso, o pleito que
‘legitimou’ Porfírio Lobo como novo presidente foi assistido por
escassos 13% de eleitores, outra ignorada evidência de desaprovação ao
golpe.
"Na França em 2010, até 24 de fevereiro, houve 22 suicídios nas
cadeias; em 2009, foram 122 suicídios nas prisões francesas; em 2008,
115", conta Lamrani, conformando outro exemplo que não causa a mesma
comoção.
Em tempos de crise, divergência ideológica acirrada
Enfim, como diz o ministro Marco Aurélio Garcia, há problemas de
direitos humanos em todo o mundo. Cuba não escapa a tal lógica, por
certo. Porém, como citado por diversos de seus defensores, "não mantém
centros de tortura ou realiza prisões e execuções extrajudiciais", não
está em guerra alguma e oferece condições de emancipação individual -
através, por exemplo, de sua saúde e ensino reconhecidamente
qualificados e universalizados - em níveis bem maiores do que
praticamente todas as ditas democracias.
Debater os processos cubanos é importante, até porque a crise do
capital faz o mundo indagar se o atual modelo de economia e
desenvolvimento se sustenta; e nisso os cubanos oferecem um ótimo
elemento de reflexão, que é o questionamento ao sistema que tem
exaurido as riquezas do planeta e comprometido de forma cada vez mais
temerária seu ambiente.
Cuba, com todos os seus defeitos e lentidões para promover mudanças e
evoluir o regime, oferece uma outra visão de mundo e sugere outra
partilha de riquezas. É isso que causa ojeriza nas potências que
afundaram Copenhagen, lideradas pelo seu mais inacessível interlocutor
(EUA), precisando sufocar e denegrir ao máximo a pequena ilha que não
abre mão de sua opção anticapitalista.
Só assim para começar a compreender porque num mundo de 6 bilhões de
habitantes e 4 bilhões de miseráveis as polêmicas e o cotidiano de
apenas 13 milhões de pessoas centralizam tantas atenções e
‘indignações’.
Gabriel Brito é jornalista.
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