Artificialmente criada em 1831 e
mais tarde confirmada pelo Tratado de Versalhes para servir de tampão ao
expansionismo francês, a Bélgica é cada vez mais um país Estado sem
sentido e o espelho de uma outra artificialidade, a actual União
Europeia.
“Bye Bye
Belgium”, “Este país ainda fará sentido?”: os cabeçalhos dos jornais
belgas, sobretudo os francófonos, reflectiam na sexta-feira [dia 23 de
Abril] a inquietação da imprensa nacional sobre o futuro do país, no dia
a seguir à enésima demissão do governo devida a um conflito sobre os
direitos linguísticos dos francófonos que vivem nos arredores flamengos
de Bruxelas.
O rei Alberto II, que ainda não aceitou esta demissão, vai
prosseguir durante o dia as consultas com o conjunto dos chefes dos
partidos. O chefe do Open VLD, o partido dos liberais flamengos,
entreabriu a porta a um novo compromisso lançando aos responsáveis dos
partidos francófonos um ultimato para quinta-feira, 29 de Abril, data da
próxima reunião plenária do Parlamento belga, para encontrar um acordo.
Os presidentes dos partidos francófonos declaram-se prontos a reabrir
as discussões com o Open VLD mas não aceitam o novo ultimato. «O
importante é o acordo e não a data», respondeu a presidente do partido
centrista CDH, Joëlle Milquet.
Esta manhã [23 de Abril], os jornais belgas apareceram cheios de
inúmeras páginas especiais. O editorial do diário de Bruxelas Le
Soir alinha as interrogações: «Ainda fará sentido manter um país em
que já não existem homens e mulheres ou sistemas, capazes de fazer
compromissos, mesmo que pequenos, indispensáveis para a continuação da
Bélgica?» Se assim for, «é preciso passar à frente e assumi-lo»,
acrescenta.
O diário popular francófono La Dernière Heure profetiza com
um “Bye Bye Belgium” com uma indirecta irónica especificando: “Isto não
é uma ficção”. Uma referência à partida a uma emissão televisiva belga
que, em Dezembro de 2006, suscitou grande emoção anunciando em directo
aos telespectadores a declaração da independência dos flamengos da
Bélgica.
INQUIETAÇÃO A DUAS SEMANAS DA PRESIDÊNCIA BELGA DA UE
Para La Libre Belgique, é «o golpe de força flamengo» que
atrai sobretudo a atenção. A saber, uma tentativa, na quinta-feira [22
de Abril], de todos os partidos flamengos, logo depois da demissão do
governo, de impor à Câmara dos deputados a votação de um projecto de lei
pondo em causa os direitos linguísticos dos francófonos que vivem na
Flandres.
Uma «embrulhada», é o título dado pelo editorialista do diário Open
VLD depois desta crise «duma gravidade sem precedentes» e «de que nenhum
cidadão estava à espera». Segundo este artigo, «agiu apenas por razões
eleitoralistas. Incomodado por um governo em que não está presente,
dilacerado por divisões internas, gerido por novatos, o VLD quer
conquistar a oposição a toda a pressa, onde poderá recuperar a saúde.
Está no seu direito. Mas não tem o direito de fazer refém um país, uma
população».
Agarrando num comunicado da agência noticiosa belga, o diário realça
também os editoriais dos jornais flamengos, que se mostram menos
dramáticos, havendo até alguns que saúdam o golpe táctico do presidente
do partido liberal flamengo. De Standaard, o diário flamengo de
referência, não se mostra menos inquieto. Vê nos sobressaltos actuais
«um claro sinal da impotência da política belga». A Libre Belgique
também lista «dez áreas em perigo» entre os quais o orçamento, o futuro
das pensões ou ainda o dossier nuclear.
A imprensa belga não é a única a mostrar-se preocupada. Os meios de
comunicação estrangeiros também se interrogam sobre esta crise, dez
semanas antes da presidência belga da União Europeia. «A queda de
coligação belga ameaça a Bélgica quanto ao seu papel de presidente»,
sublinha The Financial Times, de que a agência belga se faz
eco. «Espero que esta questão na Bélgica seja sanada», declarou pelo seu
lado o ministro dos negócios estrangeiros espanhol, Miguel Angel
Moratinos, sem se mostrar especialmente inquieto quanto às consequências
da crise belga para a União Europeia. A presidência espanhola, como é o
costume para preparar a passagem do testemunho, «já trabalhou sobre os
principais assuntos europeus» com a Bélgica, afirmou.
Finalmente, um economista calculou que esta crise política poderá
custar milhões de euros à Bélgica. «Uma nova crise política no nosso
país poderá levá-lo à beira do abismo. […] Os mercados financeiros são
maníaco-depressivos quanto à dívida do Estado e poderão passar
rapidamente duma calma aparente a um pânico generalizado com
penalizações de risco de circunstância. Por outras palavras, um país tem
o maior interesse em manter-se, na medida do possível, afastado das
colunas da imprensa mundial».
Este texto foi publicado pelo diário francês Le Monde de 24 de
Abril de 2010.
Tradução de Margarida Ferreira
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