Demonização da viagem de Lula ao Irã ancora-se em argumentos falaciosos e tendenciosos |
Escrito por Luiz Eça no Correio da Cidadania | |
Dificilmente a visita de um chefe de Estado a outro país causou tantas
críticas quanto a que Lula está fazendo ao Irã.
Desde Hillary Clinton até deputados brasileiros, passando por Bernard
Kouchner (ministro das Relações Exteriores da França), jornalistas
nacionais , congressistas e colunistas americanos, entre outros,
criticaram o nosso presidente de diversas maneiras.
A maioria considerou essa viagem uma aproximação, digamos, vil, com uma
ditadura cruel que prende, mata e tortura opositores. Não se pode negar
que estas afrontas aos direitos humanos têm acontecido no Irã, depois
das manifestações de repúdio à eleição de Ahmadinejad.
Pelo menos episodicamente, o governo iraniano não ficou omisso. Está
processando 12 indivíduos suspeitos de torturar até a morte 3
oposicionistas. Além disso, depois de repetidas denúncias sobre
barbaridades cometidas na prisão de Kahizak, ordenou seu fechamento.
Claro, devia fazer muito mais, especialmente porque, ao que se sabe, as
violências contra adversários continuam. No entanto, nesse quesito, EUA e
Israel ficaram atrás, pois nesses países os violadores dos direitos
humanos continuam livres e tranqüilos.
Ao reconhecer as torturas da gestão Bush, Obama declarou que seus
autores não seriam punidos. Ele proibiu essas práticas, mas,
infelizmente, parece que elas continuam. Só para ficar em exemplos
recentes, ainda na primeira semana de maio, a Cruz Vermelha denunciou a
existência no Afeganistão de uma prisão secreta para suspeitos na base
aérea de Bagran. E 9 ex-prisioneiros, liberados por falta de provas,
declararam que foram submetidos a abusos no local. Simon Hersh, o famoso
repórter que denunciou My Lay e Abu Ghraib, revelou, em Genebra, na
Conferência Global do Jornalismo Investigativo, que inimigos capturados
na guerra do Afeganistão, em vários casos, foram executados no próprio
campo de batalha pelo exército americano.
Quanto a Israel, as autoridades do emirado de Dubai (grande amigo dos
EUA) continuam acusando o Mossad de ter executado um homem do Hamas em
plena cidade árabe. Pediram até à Interpol a prisão de vários agentes e
do chefe do serviço secreto israelense. Lembramos ainda o inquérito da
ONU, presidido por um juiz judeu, que acusou o exército do governo de
Telaviv de crimes de guerra e contra a humanidade no ataque a Gaza, o
qual vitimou mais de 1.000 civis. Nem os judaicos, nem os oficiais das
forças armadas receberam as devidas punições.
Apesar destes fatos criminosos de responsabilidade dos governos dos EUA e
de Israel, ninguém jamais pensou em censurar Lula quando viajou para
estes países.
Curiosamente, são eles que clamam com maior fúria por sanções ao Irã,
que o forçassem a abandonar um programa de engenhos nucleares ainda não
provado. Dizem que o enriquecimento do urânio demonstraria as intenções
iranianas de produzir armas nucleares. O que seria uma catástrofe nas
mãos de um “rogue state” (um estado entre delinqüente e irresponsável)
que já prometera jogar Israel no mar.
Embora Ahmadinejad tenha declarado que fora mal entendido, que jamais
pretendera atacar Israel, que a História é que acabaria com o regime
sionista, por seu caráter racista – o ato de fundação afirma Israel como
estado judaico -, a grande imprensa internacional e brasileira
ignoraram suas explicações. Como também ignoraram que, na verdade, quem
toca os tambores de guerra na região, comportando-se como autênticos
‘rogue states”, são os EUA – com menções ao célebre “todas as opções
estão sobre a mesa” - e Israel, com sucessivas ameaças de ataque ao Irã.
Os exemplos são muitos. Novamente mencionaremos apenas os mais recentes.
Neste mês, Gary Samore, coordenador na Casa Branca do controle de armas
de destruição em massa, informou à Reuters que seu governo havia
pressionado Moscou a não entregar ao Irã o sistema antimíssil S-300, já
contratado. “Deixamos claro aos russos que isso traria um impacto em
nossas relações bilaterais significativo. Os russos entenderam que as
conseqüências seriam severas”. E nós entendemos que o governo Obama está
zelando para enfraquecer as defesas iranianas e, por conseqüência,
tornar eventuais ataques ao país mais destrutivos. Nada mais bizarro da
parte de um Prêmio Nobel da Paz
Na semana que passou, Moshe Ya´alon, vice-primeiro ministro de Israel,
anunciou que suas forças aéreas estavam prontas para a guerra contra o
Irã. Ya´alon, apesar do alto posto que ocupa num governo que se diz
empenhado na paz com os palestinos, já os qualificou como um “câncer”.
Estes fatos não são levados em conta pelos críticos da viagem de Lula,
que ajuntam a seus argumentos a consideração de que a amizade com o Irã
está afastando o Brasil da comunidade internacional. A maioria dos
nossos comentaristas e muitos políticos enchem a boca quando falam nessa
“comunidade internacional”, sem perceber que este termo está sendo
usado de maneira pelo menos incorreta, para não dizer arrogante e até
racista, pois os 118 países não alinhados já se manifestaram contra as
sanções. Será que estes 118, por serem asiáticos, africanos e
latino-americanos, não integram a “comunidade internacional”? Será que
dela só merecem fazer parte os europeus e norte-americanos, talvez, por
coincidência, povos basicamente brancos? Aparentemente, eles esqueceram
que os tempos dos impérios coloniais já se foram. E que agora países
negros, amarelos e vermelhos são membros do mundo civilizado.
A última observação que essa peculiar “comunidade internacional” faz é
que, dialogando com o Brasil e a Turquia, co-participante das
conversações de paz em Teerã, estão fazendo o jogo dos aiatolás que
visam ganhar tempo, adiar ao máximo as sanções contra seu país, até
poderem concluir seus artefatos nucleares. Hillary Clinton acaba de
telefonar para o presidente turco advertindo-o insistentemente desta
falácia islâmica.
Parece um argumento pífio. Se todas as autoridades técnicas concordam
que o Irã precisaria de ao menos 5 anos para produzir sua primeira bomba
de destruição em massa, seria uma missão impossível para o governo de
Teerã conseguir enrolar o mundo por um prazo tão avultado.
O Financial Times de 13 de maio considera que, ao tentar mediar um
diálogo com o Irã, o Brasil “desafia a política externa dos EUA”. É
verdade, essa política tem um norte hoje muito claro: impor sanções tão
terríveis que isolem o Irã do comércio mundial e o levem a uma crise
capaz de provocar a queda do regime dos aiatolás. E sua substituição por
gente mais cordata.
Alega-se que Obama passou um ano estendo a mão a Ahmadinejad sem obter
respostas. Não foi bem assim. Suas mãos estendidas tinham os punhos
fechados, ameaçando socos, pois, desde junho de 2009, não houve uma
única tentativa de aproximação concreta dos EUA, apenas retórica, coisa
em que seu presidente é mestre, enquanto as ameaças, partidas
especialmente da gaviã Hillary Clinton, foram constantes.
Não há dúvida de que o Irã vem praticando violências altamente
reprováveis contra a oposição. Mas, como diria a filósofa Denise
Charuto, “uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”. As justas
críticas às ações repressivas do governo dos aiatolás não o transformam
em réu na presente crise nuclear. Até os opositores mais ardorosos de
Ahmadinejad defendem o direito do país de ter um programa nuclear
pacífico e condenam as sanções que os EUA e seguidores querem lhe impor.
Nesta semana, as coisas podem se encaminhar bem. Já se sabe que o Irã
está disposto a fazer concessões às propostas dos chefes do governo do
Brasil e da Turquia – de envio do urânio iraniano de baixo
enriquecimento ao território turco, onde ficaria até ser trocado com o
urânio enriquecido a 20 graus na França ou na Rússia.
Além disso, de Bruxelas, a agência DPA reportou que está sendo agendada
uma reunião entre Catherine Ashton, chefe de Política Internacional da
União Européia, e o chefe das negociações nucleares do Irã, Saeed
Jalili, por iniciativa de Ahmed Davotaglu, ministro das Relações
Exteriores da Turquia.
Há possibilidades de que a tão criticada viagem do presidente Lula a
Teerã poderá representar um princípio da solução da crise.
Luiz Eça é jornalista.
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