Tomando emprestadas as palavras de Fritz
Stern, o famoso estudioso da história alemã: tenho idade suficiente
para lembrar-me daqueles dias ameaçadores nos quais os alemães
despencaram da decência para a barbárie nazista. Em um artigo de 2005,
Stern indica que tem o futuro dos EUA em mente quando repassa um
processo histórico no qual o ressentimento contra um mundo secular
desencantado encontrará a liberação no êxtase da fuga da razão. O mundo é
demasiado complexo para que a história se repita, mas de todo modo há
lições que devem ser relembradas. O artigo é de Noam Chomsky.
Noam Chomsky no Carta Maior
Nunca havia testemunhado tamanho grau de
irritação, desconfiança e desencanto como o que presenciamos nos Estados
Unidos por ocasião das eleições de metade de mandato. Desde que os
democratas chegaram ao poder, estão tendo que lidar com nosso monumental
incômodo pela situação social, econômica e política do país. Em uma
pesquisa da empresa Rasmussen Records, realizada em outubro, mais da
metade da cidadania americana assegura ver com bons olhos o movimento
Tea Party: esse é o espírito do desencanto.
Os motivos de queixa são legítimos. Nos últimos 30 anos, os salários reais da maioria da população estancaram ou diminuíram, enquanto que a insegurança trabalhista e a carga de trabalho seguiram aumentando, do mesmo modo que a dívida. Acumulou-se riqueza, mas só em alguns bolsos, provocando desigualdades sem precedente.
Estas são as consequências derivadas da financeirização da economia, que vem se desenvolvendo desde os anos 70, e do correspondente abandono da produção doméstica. Recordando esse processo: a mania da desregulamentação defendida por Wall Street e apoiada por economistas fascinados pelos mitos da eficiência do mercado.
O público adverte que os banqueiros, responsáveis em boa parte pela crise financeira e que tiveram que ser salvos da bancarrota, estão desfrutando de lucros recordes e suculentas bonificações, enquanto os índices do desemprego continuam em torno de 10%. A indústria encontra-se em níveis similares aos da Grande Depressão: um de cada seis trabalhadores está desempregado, e o cenário indica que os bons empregos não vão voltar.
O povo, com razão, quer respostas e ninguém as dá, com exceção de umas poucas vozes que contam histórias com certa coerência interna: desde que se suspenda a incredulidade e se adentre em seu mundo de disparate e engano.
Mas ridicularizar as travessuras do Tea Party não é o mais acertado. Seria muito mais apropriado tentar compreender o que sustenta o encanto desse movimento popular e nos perguntar por que uma série de pessoas irritadas estão sendo mobilizadas pela extrema direita e não pelo tipo de ativismo construtivo que surgiu nos tempos da Depressão (como, por exemplo, o Congresso das Organizações Industriais, CIO).
Neste momento, o que os simpatizantes do Tea Party ouvem é que todas instituições (governo, corporações e corpos profissionais) estão apodrecidas e que nada funciona. Entre o desemprego e outros inúmeros problemas, os democratas não têm tempo para denunciar as políticas que conduziram ao desastre. Pode ser que o presidente Ronald Reagan e seus sucessores republicanos tenham sido os grandes culpados, mas essas políticas iniciaram já com o presidente Jimmy Carter e se intensificaram com o presidente Bill Clinton. Durante as eleições presidenciais, entre o eleitorado principal de Barack Obama estavam as instituições financeiras, que afiançaram sua primazia sobre nas últimas décadas.
Aquele radical incorrigível do século XVIII, Adam Smith, referindo-se a Inglaterra, diria que os principais arquitetos do poder eram os donos da sociedade (naqueles dias, os mercadores e industriais), e estes se asseguravam que as políticas do governo se ativessem religiosamente a seus interesses, por mais penoso que fosse o impacto sobre a população inglesa, ou pior, sobre as vítimas da “selvagem injustiça dos europeus” em outros países.
Uma versão mais moderna e sofisticada da máxima de Smith é a teoria do investimento em partidos políticos, do economista político Thomas Ferguson, que considera as eleições como eventos nos quais grupos de investidores se unem para poder controlar o Estado, selecionando para isso os arquitetos daquelas políticas que atendem aos seus interesses.
A teoria de Ferguson é útil para antecipar as estratégias políticas para longos períodos de tempo. Isso não é nenhuma surpresa. As concentrações de poder econômico procurarão de maneira natural estender sua influência sobre qualquer processo político. O que ocorre é que, nos Estados Unidos, essa dinâmica é extrema.
E ainda assim pode-se argumentar que os desperdícios empresariais têm uma defesa válida frente às acusações de avareza e desprezo pelo bem comum. Sua tarefa é maximizar os lucros e o “bem-estar” do mercado. De fato, esse é seu dever legal. Se não cumprissem essa obrigação, seriam substituídos por alguém que o fizesse. Também ignoram o risco sistemático: a possibilidade que suas transações prejudiquem a economia em seu conjunto. Esse tipo de externalidade não é de sua incumbência, e não é por que sejam más pessoas, mas sim por razões de tipo institucional.
Quando a bolha estoura, os que correram os riscos correm para o refúgio do Estado. As operações de resgate, uma espécie de apólice de seguro governamental, constituem um dos perversos incentivos que magnificam as ineficiências do mercado.
Cada vez está mais ampliada a ideia de que nosso sistema financeiro percorre um ciclo catastrófico, escreveram, em janeiro deste ano, os economistas Peter Boone e Simon Johnson, no Financial Times. Toda vez que ele sucumbe, confiamos que seja resgatado por políticas fiscais e dinheiro fácil. Esse tipo de reação mostra ao setor financeiro que ele pode fazer grandes apostas, pelas quais será generosamente recompensado, sem ter que se preocupar com os custos que possa vir a ocasionar, porque será o contribuinte quem acabará pagando por meio de resgates e outros mecanismos. E, como consequência, o sistema financeiro ressuscita outra vez, para apostar de novo e voltar a cair.
O dia do juízo final é uma metáfora que também se aplica fora do mundo financeiro. O Instituto do Petróleo Americano, respaldado pela Câmara de Comércio e outros grupos de pressão, intensificou seus esforços para persuadir o público a abandonar sua preocupação com o aquecimento global provocado pelo homem e, segundo mostram as pesquisas, obteve bastante êxito nesta tarefa. Entre os candidatos republicanos ao Congresso nas eleições de 2010, praticamente todo mundo rechaça a ideia de aquecimento global.
Os executivos responsáveis pela propaganda sabem de sobra que o aquecimento global é verídico e nosso futuro incerto. Mas o destino das espécies é uma externalidade que os executivos têm que ignorar, pois o que se impõe é o sistema de mercado. E o público não poderá sair em operação de resgate quando finalmente se confirme o pior dos cenários possíveis.
Tomando emprestadas as palavras de Fritz Stern, o famoso estudioso da história alemã: tenho idade suficiente para lembrar-me daqueles dias ameaçadores nos quais os alemães despencaram da decência para a barbárie nazista. Em um artigo de 2005, Stern indica que tem o futuro dos EUA em mente quando repassa um processo histórico no qual o ressentimento contra um mundo secular desencantado encontrará a liberação no êxtase da fuga da razão.
O mundo é demasiado complexo para que a história se repita, mas de todo modo há lições que devem ser relembradas quando verificamos as consequências de outro ciclo eleitoral. Não é pequena a tarefa diante de quem deseje apresentar-se como uma alternativa à indignação e à fúria enlouquecida, ajudando a organizar os não poucos descontentes e sabendo liderar o caminho para um futuro mais próspero.
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
Os motivos de queixa são legítimos. Nos últimos 30 anos, os salários reais da maioria da população estancaram ou diminuíram, enquanto que a insegurança trabalhista e a carga de trabalho seguiram aumentando, do mesmo modo que a dívida. Acumulou-se riqueza, mas só em alguns bolsos, provocando desigualdades sem precedente.
Estas são as consequências derivadas da financeirização da economia, que vem se desenvolvendo desde os anos 70, e do correspondente abandono da produção doméstica. Recordando esse processo: a mania da desregulamentação defendida por Wall Street e apoiada por economistas fascinados pelos mitos da eficiência do mercado.
O público adverte que os banqueiros, responsáveis em boa parte pela crise financeira e que tiveram que ser salvos da bancarrota, estão desfrutando de lucros recordes e suculentas bonificações, enquanto os índices do desemprego continuam em torno de 10%. A indústria encontra-se em níveis similares aos da Grande Depressão: um de cada seis trabalhadores está desempregado, e o cenário indica que os bons empregos não vão voltar.
O povo, com razão, quer respostas e ninguém as dá, com exceção de umas poucas vozes que contam histórias com certa coerência interna: desde que se suspenda a incredulidade e se adentre em seu mundo de disparate e engano.
Mas ridicularizar as travessuras do Tea Party não é o mais acertado. Seria muito mais apropriado tentar compreender o que sustenta o encanto desse movimento popular e nos perguntar por que uma série de pessoas irritadas estão sendo mobilizadas pela extrema direita e não pelo tipo de ativismo construtivo que surgiu nos tempos da Depressão (como, por exemplo, o Congresso das Organizações Industriais, CIO).
Neste momento, o que os simpatizantes do Tea Party ouvem é que todas instituições (governo, corporações e corpos profissionais) estão apodrecidas e que nada funciona. Entre o desemprego e outros inúmeros problemas, os democratas não têm tempo para denunciar as políticas que conduziram ao desastre. Pode ser que o presidente Ronald Reagan e seus sucessores republicanos tenham sido os grandes culpados, mas essas políticas iniciaram já com o presidente Jimmy Carter e se intensificaram com o presidente Bill Clinton. Durante as eleições presidenciais, entre o eleitorado principal de Barack Obama estavam as instituições financeiras, que afiançaram sua primazia sobre nas últimas décadas.
Aquele radical incorrigível do século XVIII, Adam Smith, referindo-se a Inglaterra, diria que os principais arquitetos do poder eram os donos da sociedade (naqueles dias, os mercadores e industriais), e estes se asseguravam que as políticas do governo se ativessem religiosamente a seus interesses, por mais penoso que fosse o impacto sobre a população inglesa, ou pior, sobre as vítimas da “selvagem injustiça dos europeus” em outros países.
Uma versão mais moderna e sofisticada da máxima de Smith é a teoria do investimento em partidos políticos, do economista político Thomas Ferguson, que considera as eleições como eventos nos quais grupos de investidores se unem para poder controlar o Estado, selecionando para isso os arquitetos daquelas políticas que atendem aos seus interesses.
A teoria de Ferguson é útil para antecipar as estratégias políticas para longos períodos de tempo. Isso não é nenhuma surpresa. As concentrações de poder econômico procurarão de maneira natural estender sua influência sobre qualquer processo político. O que ocorre é que, nos Estados Unidos, essa dinâmica é extrema.
E ainda assim pode-se argumentar que os desperdícios empresariais têm uma defesa válida frente às acusações de avareza e desprezo pelo bem comum. Sua tarefa é maximizar os lucros e o “bem-estar” do mercado. De fato, esse é seu dever legal. Se não cumprissem essa obrigação, seriam substituídos por alguém que o fizesse. Também ignoram o risco sistemático: a possibilidade que suas transações prejudiquem a economia em seu conjunto. Esse tipo de externalidade não é de sua incumbência, e não é por que sejam más pessoas, mas sim por razões de tipo institucional.
Quando a bolha estoura, os que correram os riscos correm para o refúgio do Estado. As operações de resgate, uma espécie de apólice de seguro governamental, constituem um dos perversos incentivos que magnificam as ineficiências do mercado.
Cada vez está mais ampliada a ideia de que nosso sistema financeiro percorre um ciclo catastrófico, escreveram, em janeiro deste ano, os economistas Peter Boone e Simon Johnson, no Financial Times. Toda vez que ele sucumbe, confiamos que seja resgatado por políticas fiscais e dinheiro fácil. Esse tipo de reação mostra ao setor financeiro que ele pode fazer grandes apostas, pelas quais será generosamente recompensado, sem ter que se preocupar com os custos que possa vir a ocasionar, porque será o contribuinte quem acabará pagando por meio de resgates e outros mecanismos. E, como consequência, o sistema financeiro ressuscita outra vez, para apostar de novo e voltar a cair.
O dia do juízo final é uma metáfora que também se aplica fora do mundo financeiro. O Instituto do Petróleo Americano, respaldado pela Câmara de Comércio e outros grupos de pressão, intensificou seus esforços para persuadir o público a abandonar sua preocupação com o aquecimento global provocado pelo homem e, segundo mostram as pesquisas, obteve bastante êxito nesta tarefa. Entre os candidatos republicanos ao Congresso nas eleições de 2010, praticamente todo mundo rechaça a ideia de aquecimento global.
Os executivos responsáveis pela propaganda sabem de sobra que o aquecimento global é verídico e nosso futuro incerto. Mas o destino das espécies é uma externalidade que os executivos têm que ignorar, pois o que se impõe é o sistema de mercado. E o público não poderá sair em operação de resgate quando finalmente se confirme o pior dos cenários possíveis.
Tomando emprestadas as palavras de Fritz Stern, o famoso estudioso da história alemã: tenho idade suficiente para lembrar-me daqueles dias ameaçadores nos quais os alemães despencaram da decência para a barbárie nazista. Em um artigo de 2005, Stern indica que tem o futuro dos EUA em mente quando repassa um processo histórico no qual o ressentimento contra um mundo secular desencantado encontrará a liberação no êxtase da fuga da razão.
O mundo é demasiado complexo para que a história se repita, mas de todo modo há lições que devem ser relembradas quando verificamos as consequências de outro ciclo eleitoral. Não é pequena a tarefa diante de quem deseje apresentar-se como uma alternativa à indignação e à fúria enlouquecida, ajudando a organizar os não poucos descontentes e sabendo liderar o caminho para um futuro mais próspero.
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
Um comentário:
BRINCANDO COM COISA SÉRIA
A ARCA DE NOÉ E AS MUDANÇAS CLIMÁTICAS
Há muito anos atrás (período do Regime Militar), circulou um artigo que tinha como título “A Arca de Noé”.
Nele era contada uma pequena estória. Nela o planeta passava por uma fase muito complicada e, para resolvê-la, um tal Noé resolveu construir uma grande arca de modo a colocar um casal de cada ser vivo e, quando o dilúvio chegasse, este grupo sobreviveria para repovoar o planeta.
A estória evolui com a intervenção de um grupo de “iniciados” que aceitaram a idéia, mas consideraram que este era um empreendimento de grande porte e, desta forma, não poderia ser simplesmente conduzido por tal Noé. Seria necessário estruturar um empreendimento que pudesse conduzir a complexidade da construção da arca. Mudaram, de imediato, o nome do projeto que passou a se chamar “Arca das Mudanças Climáticas”.
Os “iniciados” começaram a estruturação do empreendimento: eleição de presidente, diretorias, assessorias, núcleos de pesquisa, contratação de especialistas, secretárias, motoristas, sede própria e sedes descentralizadas em diferentes locais do planeta, enfim, o imprescindível para que um grande empreendimento pudesse ser desenvolvido sem risco.
As tarefas foram divididas em vários Grupos de Trabalho, com reuniões realizadas não nas regiões do planeta onde eram inevitáveis os primeiros efeitos do dilúvio, mas sim em lugares aprazíveis onde os grupos pudessem trabalhar em condições adequadas a importância do projeto.
Inevitável, estes grupos acabaram se dividindo entre “prós e contras” e cada um deles, sem se preocupar com o dilúvio a caminho, resolveram ignorar a variável tempo, consumindo o tempo disponível em apresentar estudos e pesquisas que reforçassem as suas posições. Isso demandou uma grande quantidade de recursos, que foram logo disponibilizados pelos países mais ricos do planeta.
Surgiram especialistas, políticos especialistas, agentes de financiamento especialistas, centros de pesquisa especializados, típicos do entorno de operação de um grande empreendimento.
Sendo muito especializadas, de imediato a sociedade foi relegada a um segundo plano, dado que, na visão do projeto, apenas um casal de humanos, decidido que seria escolhido entre a alta direção do “Arca das Mudanças Climáticas”. Na verdade, logo no início, as informações foram passadas a sociedade, mas em linguagem complicada que levou a um progressivo afastamento do tema, deixando aos “iniciados” a discussão e decisão sobre o assunto.
E o tempo foi passando. Países que tinham “madeira” para a construção da arca tentaram impor condições ao andamento do projeto, mas foram logo afastados pelos países que “detinham a tecnologia do corte da madeira”, de modo a, progressivamente, ir reduzindo o tamanho do grupo dos “iniciados”. Foram observadas denúncias (“Arcagate”), mas, para os “não iniciados”, acabou ficando a dúvida de quem realmente tinha à razão.
Concluindo, passado alguns anos veio o aviso que o dilúvio seria no dia seguinte.
No empreendimento “Arca das Mudanças Climáticas” um desespero total; perdidos entre muitas alternativas não tinham tido tempo para concluir a arca. Ou seja, era inevitável que o dilúvio seria plenamente fatal para todos do planeta.
Mas, do alto da torre de trinta andares construída para fazer funcionar o mega projeto, no dia seguinte, quando a água quase cobria o edifício, foi possível ver uma arca de madeira, com os “não iniciados” liderados por um tal Noé, passando ao largo.
Você já pensou em que grupo está?
Ainda há tempo para escolher o grupo certo.
Roosevelt S. Fernandes, M. Sc.
Núcleo de Estudos em Percepção Ambiental / NEPA
roosevelt@ebrnet.com.br
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