quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Divórcio litigioso, vizinhos inquietos


O sul decide separar-se. Isso pode ser bom para o novo país, mas alimenta o fundamentalismo no mundo árabe

O plebiscito sobre a separação do Sudão do Sul realizou-se de 9 a 15 de janeiro sem incidentes graves e com comparecimento de 96%, quando um mínimo de 60% o validaria. Na quinta-feira, 19 de janeiro, já tinham sido contados bem mais que o 1,89 milhão de votos necessários para aprovar a independência. Na capital regional, Juba, o “sim” à secessão recebeu 211.018 votos e o “não”, 3.650; e em várias partes do interior, mais de 99% votam pela separação. Quais serão as consequências?
Sul e norte do Sudão são bem diferentes. O sul, com 20% da população e 25% do território, é formado por florestas, savanas e pântanos, e habitado por africanos negros não islamizados, que na maioria são das etnias dinka, nuer, shilluk e azande, e praticam cultos étnicos tradicionais, mesmo se a imprensa ocidental insiste em considerar a região como “cristã”. O norte é árido, na grande maioria islâmico e culturalmente árabe, embora haja muitas -etnias e tribos, e a população descenda em grande parte de núbios, bejas, hauçás e outros povos de pele negra, alguns dos quais falam suas próprias línguas.
Mas praticamente não há nação africana que não seja multiétnica e muitas etnias atravessam fronteiras nacionais – os hauçás, por exemplo, se espalham do Sudão à Costa do Marfim, com maior concentração na Nigéria. Desde a descolonização, havia uma regra não escrita pela qual as fronteiras africanas herdadas do período colonial, por arbitrárias que fossem, seriam respeitadas. Considerá-las ilegítimas seria agravar com o caos de mais guerras civis e internacionais sem fim o sofrimento de um continente já conturbado.
Em 1960, a separação  de Katanga do Congo foi apoiada pela Bélgica, que esperava assim manter o controle das riquezas minerais da ex-colônia, mas não foi reconhecido e acabou derrotado e reincorporado três anos depois. O mesmo aconteceu, entre 1967 e 1970, quando a região separatista do sudeste da Nigéria, com o nome de Biafra, mesmo tendo o apoio de França, Portugal, África do Sul e Israel, foi reconhecida por apenas três pequenas nações da África negra. Embora governem de fato, os governos de Somalilândia e Puntlândia, formados a partir de partes da Somália nos anos 90, são ignorados pela comunidade internacional.
O Egito anexou o Sudão em 1820, mas em 1879 as potências europeias intervieram no Cairo para impor um governante impopular e incompetente. Uma das consequências foi o surgimento no Sudão, em 1885, do mahdismo, um movimento teocrático muçulmano que lutou contra o Egito e seus patronos europeus até 1899. Quando os mahdistas foram derrotados por tropas britânicas, o Sudão tornou-se, na prática, mais uma colônia de Londres, embora teoricamente compartilhada com o  Cairo.
Quando o Egito recuperou sua independência de fato, com Nasser, os britânicos preferiram dar a independência ao Sudão, em 1956, a devolvê-lo. Mas o sul, que os britânicos governavam em separado, rebelou-se contra Cartum já em 1955 e a prosseguiu em fogo lento até 1972, quando um acordo celebrado em Adis-Abeba deu à região autonomia e dez anos de paz.
Em 1983, o presidente  Gaafar Nimeiry rompeu o acordo ao transformar o Sudão em república federativa, dividir o Sul em vários estados e impor leis de caráter islâmico a todo o país. As tropas do sul se rebelaram sob a liderança do coronel John Garang e a guerra civil se reiniciou. Nimeiry caiu em 1985 e no ano seguinte, celebradas (apenas no norte) as últimas eleições livres no país, mas o presidente Ahmad Al-Mirghani foi deposto em 1989 pelo general Omar Al-Bashir, ainda hoje no poder.
Al-Bashir perseguiu oposicionistas, impôs a sharia no norte, convidou Osama bin Laden a se estabelecer no país, fez um acordo com o líder rebelde Riek Machar e a seu lado aprofundou a ofensiva no sul, retomando a maior parte do território. Mas os rebeldes de Garang conseguiram o apoio do Ocidente, apresentando a guerra como uma campanha de Cartum para impor o Islã e a língua árabe ao sul “cristão”. Após uma trégua de seis meses em 1995, mediada por Jimmy Carter, Al-Bashir endureceu ainda mais o regime e buscou o apoio de fundamentalistas, embora também fizesse Bin Laden deixar o país pelo Afeganistão, por pressão do Egito. O Sudão foi tachado de “Estado terrorista” e, em 1998, Bill Clinton tentou desviar a atenção do público do escândalo extraconjugal com Monica Lewinsky, fazendo-o de bode expiatório: bombardeou uma suposta fábrica de armas químicas perto de Cartum, que, provou-se mais tarde, era apenas um laboratório farmacêutico.
Nos anos 2000, pressionado pelo isolamento internacional e pela eclosão de outras guerras civis em Darfur e no Sudão Oriental, Al-Bashir procurou apaziguar o Ocidente e fazer um acordo com o sul. Embora seu regime continuasse extremamente autoritário, em janeiro de 2005 negociou um acordo em Nairóbi que devolveu a autonomia ao sul e previu o plebiscito sobre a separação em seis anos, agora realizado. As regiões petrolíferas, situadas na área limítrofe, seriam partilhadas. O governo Obama ofereceu a Al-Bashir retirar as sanções que pesam contra o país e perdoar parte da dívida se o compromisso fosse cumprido.
Apesar de a guerra continuar em outras regiões do Sudão, no sul foi praticamente encerrada, salvo incidentes isolados, deixando 1,9 milhão de mortos, na maioria civis. Garang tornou-se presidente da região  e vice do Sudão, até o fim do prazo. Falecido em um acidente de helicóptero ainda em 2005, foi substituído por Salva Kiir Mayärdït, ainda no posto.
Dada a duração e amargura do conflito, pode ser que a separação seja a solução menos ruim para o Sudão do Sul e a União Africana tenha razão ao aceitar essa exceção à sua regra. Mas, ao ocorrer em um contexto de atritos entre o Islã e o Ocidente, nutre o fundamentalismo muçulmano. No Egito e no norte do Sudão, chefes religiosos alegam fraude e ligam a divisão do país à luta sectária no Iraque como parte de um plano global de balcanizar e enfraquecer o mundo islâmico. Um líder fundamentalista foi preso em Cartum ao pedir ao povo para se rebelar “como na Tunísia”. O preço da paz no sul do Sudão pode ser mais violência no Norte da África e Oriente Médio.

Antonio Luiz M. C. Costa

Antonio Luiz M.C.Costa é editor de internacional de CartaCapital e também escreve sobre ciência e ficção científica.

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