O sul decide separar-se. Isso pode ser bom para o novo país, mas alimenta o fundamentalismo no mundo árabe
O plebiscito sobre a separação do Sudão
do Sul realizou-se de 9 a 15 de janeiro sem incidentes graves e com
comparecimento de 96%, quando um mínimo de 60% o validaria. Na
quinta-feira, 19 de janeiro, já tinham sido contados bem mais que o 1,89
milhão de votos necessários para aprovar a independência. Na capital
regional, Juba, o “sim” à secessão recebeu 211.018 votos e o “não”,
3.650; e em várias partes do interior, mais de 99% votam pela separação.
Quais serão as consequências?
Sul e norte do Sudão são bem diferentes.
O sul, com 20% da população e 25% do território, é formado por
florestas, savanas e pântanos, e habitado por africanos negros não
islamizados, que na maioria são das etnias dinka, nuer, shilluk e
azande, e praticam cultos étnicos tradicionais, mesmo se a imprensa
ocidental insiste em considerar a região como “cristã”. O norte é árido,
na grande maioria islâmico e culturalmente árabe, embora haja muitas
-etnias e tribos, e a população descenda em grande parte de núbios,
bejas, hauçás e outros povos de pele negra, alguns dos quais falam suas
próprias línguas.
Mas praticamente não há nação africana
que não seja multiétnica e muitas etnias atravessam fronteiras nacionais
– os hauçás, por exemplo, se espalham do Sudão à Costa do Marfim, com
maior concentração na Nigéria. Desde a descolonização, havia uma regra
não escrita pela qual as fronteiras africanas herdadas do período
colonial, por arbitrárias que fossem, seriam respeitadas. Considerá-las
ilegítimas seria agravar com o caos de mais guerras civis e
internacionais sem fim o sofrimento de um continente já conturbado.
Em 1960, a separação de Katanga do
Congo foi apoiada pela Bélgica, que esperava assim manter o controle das
riquezas minerais da ex-colônia, mas não foi reconhecido e acabou
derrotado e reincorporado três anos depois. O mesmo aconteceu, entre
1967 e 1970, quando a região separatista do sudeste da Nigéria, com o
nome de Biafra, mesmo tendo o apoio de França, Portugal, África do Sul e
Israel, foi reconhecida por apenas três pequenas nações da África
negra. Embora governem de fato, os governos de Somalilândia e
Puntlândia, formados a partir de partes da Somália nos anos 90, são
ignorados pela comunidade internacional.
O Egito anexou o Sudão em 1820, mas em
1879 as potências europeias intervieram no Cairo para impor um
governante impopular e incompetente. Uma das consequências foi o
surgimento no Sudão, em 1885, do mahdismo, um movimento teocrático
muçulmano que lutou contra o Egito e seus patronos europeus até 1899.
Quando os mahdistas foram derrotados por tropas britânicas, o Sudão
tornou-se, na prática, mais uma colônia de Londres, embora teoricamente
compartilhada com o Cairo.
Quando o Egito recuperou sua
independência de fato, com Nasser, os britânicos preferiram dar a
independência ao Sudão, em 1956, a devolvê-lo. Mas o sul, que os
britânicos governavam em separado, rebelou-se contra Cartum já em 1955 e
a prosseguiu em fogo lento até 1972, quando um acordo celebrado em
Adis-Abeba deu à região autonomia e dez anos de paz.
Em 1983, o presidente Gaafar Nimeiry
rompeu o acordo ao transformar o Sudão em república federativa, dividir o
Sul em vários estados e impor leis de caráter islâmico a todo o país.
As tropas do sul se rebelaram sob a liderança do coronel John Garang e a
guerra civil se reiniciou. Nimeiry caiu em 1985 e no ano seguinte,
celebradas (apenas no norte) as últimas eleições livres no país, mas o
presidente Ahmad Al-Mirghani foi deposto em 1989 pelo general Omar
Al-Bashir, ainda hoje no poder.
Al-Bashir perseguiu oposicionistas,
impôs a sharia no norte, convidou Osama bin Laden a se estabelecer no
país, fez um acordo com o líder rebelde Riek Machar e a seu lado
aprofundou a ofensiva no sul, retomando a maior parte do território. Mas
os rebeldes de Garang conseguiram o apoio do Ocidente, apresentando a
guerra como uma campanha de Cartum para impor o Islã e a língua árabe ao
sul “cristão”. Após uma trégua de seis meses em 1995, mediada por Jimmy
Carter, Al-Bashir endureceu ainda mais o regime e buscou o apoio de
fundamentalistas, embora também fizesse Bin Laden deixar o país pelo
Afeganistão, por pressão do Egito. O Sudão foi tachado de “Estado
terrorista” e, em 1998, Bill Clinton tentou desviar a atenção do público
do escândalo extraconjugal com Monica Lewinsky, fazendo-o de bode
expiatório: bombardeou uma suposta fábrica de armas químicas perto de
Cartum, que, provou-se mais tarde, era apenas um laboratório
farmacêutico.
Nos anos 2000, pressionado pelo
isolamento internacional e pela eclosão de outras guerras civis em
Darfur e no Sudão Oriental, Al-Bashir procurou apaziguar o Ocidente e
fazer um acordo com o sul. Embora seu regime continuasse extremamente
autoritário, em janeiro de 2005 negociou um acordo em Nairóbi que
devolveu a autonomia ao sul e previu o plebiscito sobre a separação em
seis anos, agora realizado. As regiões petrolíferas, situadas na área
limítrofe, seriam partilhadas. O governo Obama ofereceu a Al-Bashir
retirar as sanções que pesam contra o país e perdoar parte da dívida se o
compromisso fosse cumprido.
Apesar de a guerra continuar em outras
regiões do Sudão, no sul foi praticamente encerrada, salvo incidentes
isolados, deixando 1,9 milhão de mortos, na maioria civis. Garang
tornou-se presidente da região e vice do Sudão, até o fim do prazo.
Falecido em um acidente de helicóptero ainda em 2005, foi substituído
por Salva Kiir Mayärdït, ainda no posto.
Dada a duração e amargura do conflito,
pode ser que a separação seja a solução menos ruim para o Sudão do Sul e
a União Africana tenha razão ao aceitar essa exceção à sua regra. Mas,
ao ocorrer em um contexto de atritos entre o Islã e o Ocidente, nutre o
fundamentalismo muçulmano. No Egito e no norte do Sudão, chefes
religiosos alegam fraude e ligam a divisão do país à luta sectária no
Iraque como parte de um plano global de balcanizar e enfraquecer o mundo
islâmico. Um líder fundamentalista foi preso em Cartum ao pedir ao povo
para se rebelar “como na Tunísia”. O preço da paz no sul do Sudão pode
ser mais violência no Norte da África e Oriente Médio.
Antonio Luiz M. C. Costa
Antonio Luiz M.C.Costa é editor de internacional de CartaCapital e também escreve sobre ciência e ficção científica.
Nenhum comentário:
Postar um comentário