Elaine Tavares no Brasil de Fato
O
Chaco argentino é uma região dura. Ali, nos meses de verão, a sensação
térmica pode passar dos 50 graus. Poucos são aqueles que se atrevem a
sair de casa no horário que vai das 10 às 16 horas. Tudo parece derreter
e a umidade se agarra nos ossos, tornando a atmosfera quase
irrespirável. É nessa extensão de terra, fronteira com o Paraguai, que
vivem ainda dezenas de etnias originárias, do chamado grupo Tobas (do
guarani tová, que significa rosto, cara, frente). Esta expressão,
depreciativa, foi dada pelos conquistadores, ainda que buscada da língua
local, porque estas etnias tinham por costume raspar a parte dianteira
da cabeça. Atualmente, cada uma delas reivindica seu verdadeiro nome,
como é o caso dos Qom. Seu território ancestral se esparrama pelo
Paraguai e parte da Bolívia. Assim como todos os originários desta
imensa Abya Yala estes povos também tiveram de vivenciar a invasão de
seus espaços sagrados, a destruição de sua forma de vida e o quase
extermínio. Mas, também seguindo o rastro do grande movimento que hoje
percorre as veias abertas destas terras do sul do Rio Bravo, estão
novamente de pé, reivindicando direitos e fazendo ecoar suas vozes nas
selvas de concreto erguidas pelos conquistadores.
Hoje, os Qom,
uma das etnias que habitam aquela região, estão fincados no meio do
mini-centro de Buenos Aires, na Avenida 9 de julho, com suas bandeiras
coloridas, suas canções, sua língua e suas demandas. Eles decidiram
montar ali um acampamento para protestar contra os abusos que seguem
sendo cometidos pelos governos e pelos empreendimentos privados, que
insistem em roubar suas poucas terras e empurrá-los para a morte.
A
movimentação começou na região de Formosa, cidade de Clorinda, na
comunidade La Primavera, reduto originário dos Qom, quando o governo
provincial de Gildo Insfran (acusado de racista pelos movimentos
sociais) enviou a polícia para retirar as famílias que lá vivem, sob a
alegação de que iria construir ali um Instituto Universitário. As
famílias não aceitaram a expulsão e decidiram resistir, trancando a
estrada, evitando assim a entrada das máquinas que tinham sido enviadas
pela empresa que deverá construir a universidade privada. No conflito
morreu Roberto Lopez, de 53 anos, e outro ficou gravemente ferido,
morrendo depois no hospital da região. Vinte e nove pessoas acabaram
presas, entre elas mulheres com seus bebês.
Segundo Rubén Días, um
dos representantes do Qom em Buenos Aires, tão logo se deu o conflito, a
comunidade recebeu o apoio de várias etnias amigas e próximas tais como
os mapuche, aymaras, quéchuas e collas. “Os nossos companheiros sabem,
como nós mesmos, que há uma lei que reconhece aquele território como
nosso. Não há como alguma empresa ou o governo agora querer a terra. Ela
é nossa”. Hoje, vivem naquela área mais de 800 famílias Qom, perfazendo
cinco mil pessoas, embora toda a etnia espalhada por reservas e cidades
conte com mais de 60 mil almas. “Nós nunca fomos vistos pelo governo
provincial, não temos água, luz, hospital ou caminhos. Mas, agora, o
poder quer nosso território. Não vamos permitir que isso aconteça, vamos
lutar”.
O acampamento no centro de Buenos Aires visa pressionar o
governo federal, e eles estão há meses tentando uma audiência com a
presidente Cristina Kirchner, coisa que ainda não aconteceu, mesmo tendo
os integrantes realizado uma greve de fome de 30 de dezembro a 12 de
janeiro, que foi encerrada depois de uma visita de um representante do
governo. Este lhes assegurou que a questão da documentação das terras
seria resolvida, mas até agora nada foi feito. Pelo contrário, a
ocupação de terras indígenas por empresas privadas sob a ação da polícia
segue acontecendo. “Esta semana teve outro desalojo, para você ver, por
isso essa luta não é só da comunidade Primavera, é de todos nós,
originários”. Días espera que a luta exposta bem no centro da capital
possa enternecer o coração da presidente Cristina e que ela exija dos
governos provinciais o cumprimento da lei que dá aos originários o
direito a desfrutar do seu território. “Nós não queremos essa vida aqui
na cidade, queremos viver na nossa terra. Lá, nosso supermercado não
exige dinheiro, é a pesca, a caça, coisa que podemos fazer sozinhos, sem
precisar pagar a ninguém. Não estamos acostumados a pedir coisas para
comer, a gente faz isso em comunidade”.
Rubén Días espera que o
governo respeite a luta de toda a sua gente que, desde a conquista, vem
lutando para sobreviver com dignidade. “Estamos reclamando apenas o que é
nosso. Essa terra é do nosso povo. Só saímos daqui quando o povo Qom
entender que já está cumprida a nossa missão, com o devido respeito à
lei que nos garante a terra. Aqui ninguém é contra o governo. Só
queremos o que é nosso”.
A comunidade denuncia ainda o completo
desrespeito à pátria e a sua cultura, na medida em que os policiais que
atacaram o povo Qom ainda queimaram as bandeiras da Argentina e a
sagrada Wiphala, dos originários. Os povos da região do Chaco são
reconhecidamente povos guerreiros e lutaram sem tréguas contra a
tentativa de aculturação pelo homem branco, tanto que em 1858 quase
invadiram a cidade de Santa Fé, sendo reprimidos violentamente pelo
exército argentino. Em 1919 voltaram a se rebelar e mais uma vez foram
massacrados, com mais de 200 mortes no chamado “massacre de Napalmí”.
Hoje, eles voltam às ruas, armados apenas de sua inquebrantável coragem
chaqueana e esperam que não haja mais massacres, mas sim o
reconhecimento de sua luta e cultura.
Elaine Tavares é jornalista
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