No final do século 19, ser de esquerda era lutar pelos direitos políticos e pelo sufrágio universal. Não mais que isso. Ao longo do século 20, outras bandeiras incorporaram-se ao (nosso) prontuário de lutas identitárias: as ações pelos direitos civis e sociais, contra o colonialismo e pela independência nacional, o combate à hegemonia imperial estadunidense, a equanimidade entre homens e mulheres, as afirmações étnicas, o respeito às diferenças, a integração dos países latino-americanos, a inversão de prioridades na administração pública e, ainda, a democracia participativa, cuja inspiração acha-se na máxima de Marx de que “a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores”. A partir dos anos 70, surgiu a questão ecológica.
A “modernidade” nasceu com o Renascimento, a Reforma e a conquista
das Américas. Encerrou-se com os horrores das duas Guerras Mundiais.
Começou então a gincana intelectual para achar uma expressão adequada à
sociedade que sobreveio. “Pós-industrial”, arriscou-se nos anos 50.
“Pós-moderna”, insinuou-se nos 80. “Era nova”, comemorou-se no auge da
globalização teleguiada pelo capital financeiro, nos 90. Esses termos
suscitaram discussões e confusões semânticas na academia e nos cafés, o
que esvaziou o potencial analítico de cada um. Mas ajudaram a
compreender a crise dos paradigmas modernos e suas negatividades
intrínsecas.
Que paradigmas? 1) a economia de mercado, que acelerou a urbanização
do ser humano, desembocando no neoliberalismo e na violência no
cotidiano das metrópoles; 2) o progresso nas ciências e nas técnicas de
manipulação da matéria não-viva (exploração da energia atômica) e viva
(descoberta do DNA, práticas de clonagem), com desenlaces imprevisíveis,
indo de uma possível hecatombe a servidões jamais imaginadas; 3) os
esforços seculares da opinião pública para controlar o poder político,
que não consideraram o fato de a mídia induzir em larga escala o juízo
da cidadania, através da radiofonia, da televisão e dos jornais, que a
propriedade cruzada agrava; 4) a conversão do indivíduo em vértice
social e moral da sociedade, que não levou em conta que a massificação
(heteronomia) corrói a livre consciência (autonomia) e; 5) a
preeminência do eurocentrismo na avaliação de outras culturas, que
conduziu ao colonialismo.
A lição a ser tirada, conforme o filósofo francês Pierre Fougeyrollas
(A crise dos paradigmas modernos e o novo pensamento, 2007), remete a
uma forma de pensar comprometida com a espécie e o planeta. “Cósmica”,
para reintegrar a humanidade no cosmos. “Lúdica”, para estampar a
criatividade poética e artística na abordagem do real. “Demiúrgica”,
para apropriar-se do existente e promover uma recriação de tudo, com
espírito ecumênico. “Interativa”, para subverter as hierarquias
clássicas do conhecimento, conectando intuições e conceitos, ideias e
imagens. Os eixos estratégicos do “novo pensamento” decorrem de um olhar
realista sobre o presente.
Esse programa traduz a luta dos movimentos sociais e ambientalistas
que reúnem-se nas edições do Fórum Social Mundial e, para 2012, já
preparam um rol de intervenções visando a Conferência das Nações Unidas
sobre o Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, que marcará duas décadas
da Eco-92. O modelo de desenvolvimento ocidental (o modo de produção e
de consumo), baseado na dominação da natureza, sem nenhum planejamento
democrático, esgotou-se. Urge um mundo de fraternidade. Como pregou São
Francisco de Assis, ao celebrar o Irmão Sol (Fratello Sole) e a Irmã Lua
(Sorella Luna). Ou como indicou Marx, no terceiro volume d’O Capital,
ao definir o socialismo como a sociedade onde “os produtores associados
organizam racionalmente as suas trocas com a natureza”. No caso, a
emotiva prece cristã e o prognóstico ateu coincidem.
Ecossocialismo
Publicado em 2002, o “Manifesto Ecossocialista Internacional” conjuga
o socialismo e o ecologismo, de maneira orgânica. “Na nossa visão, as
crises ecológicas e o colapso social estão relacionados e deveriam ser
encarados como manifestações diferentes das mesmas forças estruturais”,
lê-se no documento. Os desequilíbrios são o preço pago pela
incontrolável dinâmica da acumulação, da ânsia de rentabilidade que não
pode ser cancelada, da suposição de que os recursos naturais são
infinitos, do ideal de enriquecimento pessoal. “Cresça ou morra”, é o
lema do capitalismo. Seja “vencedor”, não “perdedor”, é o imperativo do
mercado. No entanto, a lógica do produtivismo é insuportável. Orientada
pelo valor de troca em detrimento do valor de uso, a produção ilimitada
causa danos ambientais de proporções irreparáveis.
“Não se trata de opor os ‘maus’ capitalistas ecocidas aos ‘bons’
capitalistas verdes: é o próprio sistema, ancorado na concorrência
impiedosa, nas exigências de lucro rápido, que é o destruidor do meio
ambiente”, sublinha Michael Löwy. Sob certo aspecto, a falsa subdivisão
apareceu no Protocolo de Kyoto (1997), que empregou dois mecanismos na
tentativa de conter as emissões de carbono na atmosfera, o Cap and
Trade: um teto máximo de emissões e um mercado de troca de títulos de
direito de emissão de carbono no hemisfério Sul, para compensar a
poluição provocada pelas nações industrializadas do Norte. Com o que o
carbono atmosférico virou uma commodity. Forjado nas leis do mercado, o
artifício para sensibilizar (a rigor, chantagear) o “empreendorismo”
fracassou e as emissões aumentaram três vezes mais. A autonomização da
economia não permite a sua subordinação a um controle social, político
ou ético-ambiental.
O resultado é a profusão de bens desnecessários, e a escassez
daqueles necessários às demandas sociais e ao equilíbrio ecológico. A
política econômica capitalista é alinhavada por valores monetários. Não
se rege por nenhuma consciência de espécie e tampouco planetária. Por
isso, acarreta riscos iminentes para o futuro. “Se a primeira
contradição do capitalismo se dá entre as forças produtivas e as
relações de produção, a segunda ocorre entre as forças produtivas e as
condições de produção (trabalhadores, espaço urbano, natureza)”,
observou James O’Connor, editor da revista norte-americana Capitalism,
Nature and Socialism. Hoje, não existe a contradição principal e a
secundária, elas apresentam-se imbricadas. O ecossocialismo pugna em
ambas as frentes.
O marxismo renovou-se ao encontrar a ecologia, a problemática de
gênero e raça. Não se confirmou a assertiva de que suas categorias
teóricas (os modos de produção e a formação econômico-social) seriam
demasiado esquemáticas para apreender a sobreposição das esferas
ideológica, política e econômica, e a articulação dos processos
ecológicos, tecnológicos e culturais que constituem os suportes de
sustentabilidade da produção. O marxismo revelou-se aberto às oposições
não-classistas e comedido em relação à noção de “progresso”. Atento às
forças destrutivas do capitalismo. Reside aí a contribuição do
ecologismo à práxis marxista. Em contrapartida, os movimentos
ecologistas que estenderam as mãos ao marxismo somaram, à denúncia do
produtivismo, a percepção crítica sobre as estruturas sócio-econômicas
que impulsionam a ganância.
Ecologia de mercado
Não raros, circunscrevem as mobilizações ecológicas aos temas
pontuais, sem contextualizá-las em uma totalidade significativa. Apostam
em um “capitalismo limpo”, que combine a “responsabilidade social”,
apregoada pelos que elidiram do Estado a obrigação de políticas para
erradicar a pobreza, e a “responsabilidade verde”, destacada com
ridículas medalhas ao mérito para as empresas que adotam uma praça ou um
canteiro de plantas. Abstêm-se de pressionar o aparelho estatal para
que tome iniciativas em prol dos setores sociais desfavorecidos e do
combalido meio ambiente. Propõem “ecotaxas” aos infratores da
legalidade, se tanto. Preocupam-se com os “excessos”, não com o que
rotiniza a predação. Tais inhapas são absorvidas pelo status quo,
passando a impressão que a ameaça sobre a Terra (Gaia, no dizer de um
pioneiro, José Lutzenberger) pode ser revertida com um marketing de
“varejo”, prescindindo das políticas de “atacado”.
Se essa parcela de ativistas exprime um discernimento precário ao
agir, o mesmo ocorre quando o movimento operário alia-se ao lobby da
indústria automobilística para forçar vantagens fiscais. O automóvel,
glamourizado e erotizado pela publicidade, é um símbolo do american way
of life, da incitação ao consumo individual. Calcula-se que 45% do
território de Los Angeles esteja reservado aos carros, incluindo a área
viária e os estacionamentos. Em São Paulo, chega-se a algo em torno de
35%. Politicamente correto é investir no transporte coletivo de
qualidade, em faixas segregadas para ônibus, trens de superfície, metrôs
e bicicletas nas cidades para evitar os congestionamentos, bem como
pleitear ferrovias para desafogo dos pesados caminhões de carga nas
estradas, que engordam as estatísticas de acidentes com vítimas.
Tragédias, aliás, que não se resolvem em mesas redondas com as
associações de construtores de veículos automotivos e os consumidores
para estudar os dispositivos de freios, o raiado dos pneus, etc.
Resolvem-se com o participacionismo social, desde que este postule um
outro modo de vida, sob um horizonte civilizacional que supere o
fetichismo da mercadoria de rodas.
Os verdes tendem a abstrair da história a defesa ambiental, tecendo
uma responsabilização genérica, como se um ascensorista de elevador
tivesse idêntica parcela de envolvimento que o proprietário de uma
fábrica de celulose. “A culpa é do homem”, são as manchetes
jornalísticas nos cadernos especiais sobre a agenda do crescimento
sustentável. Vale salientar, contudo, que os ambientalistas europeus
fizeram a leitura correta das eleições presidenciais brasileiras.
Declararam apoio a Dilma Rousseff, no segundo turno, para que “o voto
libertário em Marina Silva paradoxalmente não se transformasse em uma
catástrofe para as mulheres, para os direitos humanos e para os direitos
da natureza… José Serra não é um socialdemocrata de centro… Por trás
dele, a direita mobiliza o que há de pior… preconceitos sexistas,
machistas e homofóbicos, junto com interesses econômicos escusos e
míopes”. Entre os signatários, Dany Cohn Bendit (Alemanha), Alain
Lipietz (França), Philippe Lamberts (Bélgica), Monica Frassoni (Itália).
O bom senso (que veio do frio) não contagiou Marina que, ao invés de
dramatizar o momento em que decidia-se a continuidade do projeto
representado pelo governo Lula (avanços sociais, participação cidadã,
política externa soberana) ou a volta ao neoliberalismo (privatizações,
desemprego, corrupção, submissão à Alca e aos EUA), optaram pela
neutralidade. Com o que, dois terços dos eleitores do PV penderam para o
candidato do atraso, sem um gesto sequer da dirigente-mor para impedir o
deslizamento político. A pequenez tirou do partido o papel de educador
das massas, despolitizou as escolhas e fez tábua rasa das duras batalhas
contra as desigualdades sociais e regionais. Ao contrário de situar os
verdes nativos como uma pretensa alternativa, o vergonhoso silêncio
erigiu-os em tristes bengalas auxiliares da reação nas urnas.
Esquerda versus Direita
Anthony Giddens (Para além da esquerda e da direita, 1994), mentor da
“Terceira Via”, tentou uma síntese superior entre o conservadorismo e o
socialismo, os quais teriam sido abatidos pela marcha da globalização e
a expansão da reflexividade social. O campo da política, assim, haveria
se alterado e cedido terreno aos paradoxos do neoliberalismo. Sua
sugestão para “repensar” o Welfare State (o Estado de bem-estar social)
foi acolhida pelo primeiro-ministro britânico, e em nada diferenciou-se
do receituário de Thatcher/Major. Tony Blair manteve a legislação que
flexibilizava e desregulamentava o contrato de trabalho e, com cinismo,
explicitou em um discurso a essência da Third Way: “flexibilização sim,
mas com fair play”. O livro do sociólogo inglês mostra o quanto a
esquerda desceu ao inferno no período, rendendo-se ao Consenso de
Washington.
Coube a Norberto Bobbio (Direita e esquerda, 1994) defender a
atualidade da díade política que remonta à Revolução Francesa. A
esquerda teria como epicentro o valor da “igualdade” (as pessoas são
mais iguais que desiguais, socialmente). A direita, o valor da
“liberdade” (as pessoas são mais desiguais que iguais, naturalmente). A
importância da reflexão, lançada numa época em que o capitalismo
triunfante trombeteava o “fim das ideologias”, esteve em (re)legitimar a
dualidade político-ideológica. O opúsculo do jurista italiano teve 200
mil exemplares vendidos e 19 traduções em um curto prazo. Como Fênix, o
pássaro da mitologia grega, a esquerda renascia depois de assassinada
pelas agências internacionais de notícias, que viram na queda do Muro de
Berlim (1989) a domesticação da utopia e o desaparecimento da rebeldia e
da esperança.
Mas o princípio da igualdade não exaure a conceituação sobre o que
significa externar uma atitude anticapitalista. No final do século 19,
ser de esquerda era lutar pelos direitos políticos e pelo sufrágio
universal. Não mais que isso. Ao longo do século 20, outras bandeiras
incorporaram-se ao (nosso) prontuário de lutas identitárias: as ações
pelos direitos civis e sociais, contra o colonialismo e pela
independência nacional, o combate à hegemonia imperial estadunidense, a
equanimidade de gênero, as afirmações étnicas, o respeito às diferenças,
a integração dos países latino-americanos, a inversão de prioridades na
administração pública e, ainda, a democracia participativa, cuja
inspiração acha-se condensada na máxima de que “a emancipação dos
trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores”. A partir dos anos
70, surgiu a questão ecológica.
O perfil da esquerda sofreu uma mutação com o tempo, abrindo um leque
complexo de temáticas, antes, desapercebidas. Quem nunca mudou foi a
burguesia continental, que sempre opôs-se à distribuição de renda, à
desconcentração das terras e à socialização do poder político e
econômico. Aquela, desde priscas eras, reitera uma contrariedade ao
pagamento de impostos. Não porque sejam regressivos ou recolhidos com
critérios tributários que penalizam as classes trabalhadoras. Mas
porque, com a ascensão de governos democrático-populares na América
Latina, os fundos públicos são redirecionados por políticas republicanas
à dignificação da vida da população. “Prefiro ser essa metamorfose
ambulante / Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”, cantava
Raul Seixas. Isso, para preservar a coerência com a “justiça social” no
enfrentamento à “ordem estabelecida”. Acrescente-se, no metafórico
aniversário de 31 anos do PT.
Luiz Marques é professor de Ciência Política da Ufrgs
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