“Aqueles que não conseguem lembrar do passado estão condenados a repeti-lo” (George Santayana, 1863-1952)
Nesta semana, assisti ao documentário Luz, Trevas e o Método Científico.[1]
As imagens mostram guerras religiosas, perseguição à ciência, às
mulheres e hereges. A história da humanidade é, também, a história da
intolerância.A práxis humana é muito mais complexa do que a vã filosofia
maniqueísta imagina. A aposta maniqueísta é interessada e consciente –
ou ingênua. Os eventos históricos mostram que as coisas não são tão
simples quanto parecem. O bem pode se converter em mal. Reduzir a práxis
histórica a apenas duas cores é desconhecer a complexidade dos fatores
subjetivos, interesses e práticas dos que fazem a História.
Luz, Trevas e o Método Científico
relata a luta da ciência contra a intolerância religiosa e política.
Historicamente, a intolerância está presente na esfera das relações
humanas fundadas em sentimentos e crenças religiosas e laicas. É uma
prática que se autojustifica em nome de Deus – e/ou ideologias – e adquire o status de uma guerra de deuses encarnados em homens e mulheres que se odeiam. Heinrich Mann, em A Juventude do Rei Henrique IV, fornece uma descrição que permite visualizar seus efeitos:
“Mas no país inteiro também se incendiava e matava em nome das crenças inimigas. A diferença das crenças religiosas era levada profundamente a sério, e transformava as pessoas que normalmente nada separava em inimigos extremados. Algumas palavras, especialmente a palavra missa, tinham efeito tão terrível que um irmão tornava-se incompreensível e de sangue estranho para outro”. [2]
José Saramago denominou este ódio recíproco como “O Fator Deus”. [3]
Na Idade Média, a intolerância religiosa se intensificou contra os
judeus,as mulheres e os heréticos. “Os inquisidores caçavam dissidentes e
os obrigavam a abjurar sua “heresia”, palavra que em grego significa
“escolha”, escreve Armstrong. A Inquisição na Espanha forçou os judeus à
conversão ao cristianismo e, finalmente, expulsou-os. Esta se tornaria
uma prática comum em outras épocas e nações. Com a identificação entre
religião e política, a perseguição aos dissidentes foi intensificada e
motivada pelos interesses políticos em disputa. A inquisição espanhola
foi usada para “forjar a unidade nacional”. Mas a utilização deste
recurso não se restringiu ao catolicismo romano. Como relata Armstrong:
“Em países como a Inglaterra seus colegas protestantes também foram
implacáveis com os “dissidentes” católicos, tidos igualmente como
inimigos do Estado”. [4]
Com a formação e consolidação dos Estados nacionais modernos, a
intolerância vincula religião e política, identificando uma à outra. O
herege religioso é visto como um desafiante da ordem política
monárquica; o dissidente político é encarado como um desafiador do dogma
religioso adotado pelo Estado-nação. [5]
A política terminaria por impor a sua autonomia em relação ao poder
religioso. Então, a intolerância tomou a forma de lutas ideológicas.
Maquiavel já anunciara este caminho quando, ainda no renascimento, advogou que os fins justificam os meios, em outras palavras, que a razão do Estado
deve se impor a despeito dos meios utilizados. Nestas condições, o
problema para Maquiavel não está em usar a violência, mas em saber
usá-la, na intensidade certa e no momento oportuno. Em defesa do
florentino, observemos que trata-se da construção do Estado e das
necessidade deste expressar a autoridade soberana e absoluta. Thomas
Hobbes retoma este tema no século XVII, com a defesa de um Estado
absolutista, o Leviatã, ao qual submetemos a nossa liberdade. As
liberdades dos súditos ficariam restritas aos interstícios onde o
soberano não alcança, no mais ele é absoluto. Estes autores expressam a
idéia de que o poder político não deve admitir concorrentes, ou seja, o
poder político deve ser autônomo em relação ao poder religioso.
[1] O vídeo está dividido em sete partes e disponível a partir do link http://www.youtube.com/watch?v=G0oImVekJzg. Acesso em 11.02.2011.
[5]
Dessa forma, “a intolerância religiosa assumiu formas especialmente
virulentas, porque se julgava que a solidez do poder absoluto do rei
dependia da aplicação do princípio de que a religião do povo deveria ser
a religião do príncipe. Desencadeadas por um massacre de protestantes
ocorrido em 1562, as guerras de religião da França se caracterizaram por
atrocidades sem precedentes, como a matança de São Bartolomeu (25 de
agosto de 1572), e só terminaram mais de 20 anos depois, quando Henrique
4º assinou o Edito de Nantes, concedendo liberdade de culto aos
protestantes (1598). Mas a longa história da perseguição à religião
reformada ainda não havia terminado, pois em 1685 Luís 14 revogou o
Edito de Nantes, o que levou à demolição dos templos, à proibição das
assembléias e à emigração forçada de cerca de 300 mil protestantes. Mas
estes eram tão intolerantes quanto os católicos”. ROUANET, Sergio Paulo.
“O Eros da diferença”. Folha de S. Paulo, Caderno Mais, 09.02.2003. (Publicado também em: Revista Espaço Acadêmico, n. 22, março de 2003).
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