Mair Pena Neto no Direto da redação
Em uma quarta-feira de cinzas em que a gente acorda não esperando
nada mais do dia além da apuração do resultado das escolas de samba no
Rio, apareceu nos jornais documento das Forças Armadas, enviado ao
ministro da Defesa Nelson Jobim, com críticas à instalação da Comissão
Nacional da Verdade, destinada a esclarecer os crimes cometidos na
ditadura militar.
A comissão parece irreversível e o documento seria apenas a queixa
natural do setor mais envolvido com as atrocidades cometidas durante os
25 anos do regime de exceção, mas merece observação pelos argumentos
levantados pelos militares, que, mais do que evitar, justificam o
esclarecimento da verdade sobre esse período trágico da história
brasileira.
Os militares argumentam que a instalação da comissão “provocará tensões e sérias desavenças ao trazer fatos superados à nova discussão”.
Que tensões e desavenças surgirão do debate é natural. O tema é
delicado e dolorido para ser tratado com indiferença ou restrito aos
debates do Congresso sem o envolvimento da sociedade. É até bom que
assim seja para que a questão seja encarada de frente e resolvida de uma
vez por todas, de acordo com os resultados e suas conseqüências.
O que precisa ficar claro é se por trás desta constatação está alguma
ameaça. Se os militares consideram que tensões e desavenças podem
afetar a ordem institucional. Neste caso, mereceriam um enquadramento
por insubordinação. Os militares devem obediência e respeito a um
projeto do Executivo, que foi enviado ao Congresso e segue os ritos
democráticos do país.
A continuação desta argumentação – que considera os fatos superados –
é completamente equivocada. É justamente por não estarem superados que
eles voltam à tona. O Brasil não pode seguir adiante sem esclarecer o
destino de parte de seus filhos e a responsabilidade por suas torturas e
mortes. Este é um capítulo inconcluso de nossa história, que só
serenará quando tiver um ponto final, não na forma de lei, como Carlos
Menem tentou fazer com decreto homônimo na Argentina, mas com a
revelação de tudo o que aconteceu no período.
Os militares prosseguem suas queixas afirmando que “o Brasil vive
hoje situação política, econômica e mundial completamente diferente do
momento histórico em que os fatos ocorreram. Comissões dessa natureza
costumam ser criadas em um contexto de transição política. O que não é o
caso na atualidade. Passaram quase 30 anos do fim do governo chamado
militar e muitas pessoas que viveram aquele período já faleceram;
testemunhas, documentos e provas praticamente perderam-se no tempo, é
improvável chegar-se realmente à verdade dos fatos. Assim sendo, a
criação de uma Comissão da Verdade não faz mais sentido, considerando
que o Brasil superou muito bem essa etapa da sua história quando
comparado a outros países do continente, que até hoje vivem
conseqüências negativas de períodos históricos similares.”
Este longo trecho merece transcrição completa pelas contradições que
encerra. A sentença de abertura tenta justificar crimes contra a
humanidade, como a tortura, por um determinado período histórico. Talvez
os militares estejam se referindo à guerra fria, mas, se for isso,
precisariam se justificar. O Brasil não vivia um período tão diferente
assim. Estávamos em plena democracia, governados por um presidente, que
assumiu o cargo em função da renúncia do titular, como previa a
Constituição. É importante recordar que, à época, o vice-presidente
também era eleito pelo voto direto, e que Jango era de partido oposto ao
de Jânio Quadros, que acabou renunciando. Assim, Jango era um
governante democraticamente eleito e não fruto do acaso, como Sarney
viria a ser duas décadas depois.
O fato de comissões da verdade serem, em geral, instaladas em
contexto de transição não impede que uma seja criada no Brasil, agora. A
Argentina continua julgando os militares responsáveis por crimes da
ditadura naquele país, e cada fato novo legitima novo inquérito e
julgamento. O tempo decorrido dos crimes cometidos também não é
justificativa para a sua não apuração. Os militares se incriminam ao
afirmar que “documentos e provas perderam-se no tempo”. Como assim? As
pessoas que foram presas, torturadas e mortas estavam em poder do Estado
brasileiro. Registros de prisão e processos são obrigatórios.
Documentos certamente existiram e se acabaram por se perder no tempo foi
por obra de alguém, certamente a parte interessada.
Ao contrário do que afirmam os militares, o Brasil não “superou muito bem essa etapa de sua história”,
justamente pelo fato de ela não ter sido esclarecida até hoje e de só
ter beneficiado os que praticaram os crimes. Os militares consideram que
o governo que comandaram com mão de ferro por um quarto de século “não
foi derrubado pelas forças políticas, mas sim ensejou processo lento e
gradual de transição e devolução do poder aos civis, promovendo
verdadeira reconciliação nacional.”
Parecem desconhecer as forças da história, que os obrigaram a levar
adiante o processo inexorável de abertura. Bolsões sinceros e radicais
até tentaram prorrogar o período de vigência da ditadura, mas seus dias
estavam definitivamente contados pela pressão interna e externa. A
democracia não foi concedida de bom grado e sim conquistada pela
resistência democrática, exercida das mais diferentes formas.
O documento das Forças Armadas reconhece “o direito legítimo das famílias buscarem seus entes desaparecidos”, mas questiona o suposto uso de uma “causa nobre”
para retaliações políticas. Ora, se os militares reconhecem o direito
das famílias, deveriam contribuir para esclarecer o que aconteceu com
seus filhos e não evitar apurações. As retaliações que porventura vierem
da verdade serão de natureza jurídica e não política. Os militares
perderam uma boa oportunidade de ficarem calados. Sua argumentação só
reforça a necessidade imperiosa de uma comissão da verdade que traga à
luz o que tanto se esforçam para manter sob o tapete.
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