terça-feira, 15 de março de 2011

Comissão da Verdade é imperiosa


 

Mair Pena Neto no Direto da redação
Em uma quarta-feira de cinzas em que a gente acorda não esperando nada mais do dia além da apuração do resultado das escolas de samba no Rio,  apareceu nos jornais documento das Forças Armadas, enviado ao ministro da Defesa Nelson Jobim, com críticas à instalação da Comissão Nacional da Verdade, destinada a esclarecer os crimes cometidos na ditadura militar.

A comissão parece irreversível e o documento seria apenas a queixa natural do setor mais envolvido com as atrocidades cometidas durante os 25 anos do regime de exceção, mas merece observação pelos argumentos levantados pelos militares, que, mais do que evitar, justificam o esclarecimento da verdade sobre esse período trágico da história brasileira.

Os militares argumentam que a instalação da comissão “provocará tensões e sérias desavenças ao trazer fatos superados à nova discussão”.  Que tensões e desavenças surgirão do debate é natural. O tema é delicado e dolorido para ser tratado com indiferença ou restrito aos debates do Congresso sem o envolvimento da sociedade. É até bom que assim seja para que a questão seja encarada de frente e resolvida de uma vez por todas, de acordo com os resultados e suas conseqüências.

O que precisa ficar claro é se por trás desta constatação está alguma ameaça. Se os militares consideram que tensões e desavenças podem afetar a ordem institucional. Neste caso, mereceriam um enquadramento por insubordinação. Os militares devem obediência e respeito a um projeto do Executivo, que foi enviado ao Congresso e segue os ritos democráticos do país.

A continuação desta argumentação – que considera os fatos superados – é completamente equivocada. É justamente por não estarem superados que eles voltam à tona. O Brasil não pode seguir adiante sem esclarecer o destino de parte de seus filhos e a responsabilidade por suas torturas e mortes.  Este é um capítulo inconcluso de nossa história, que só serenará quando tiver um ponto final, não na forma de lei, como Carlos Menem tentou fazer com decreto homônimo na Argentina, mas com a revelação de tudo o que aconteceu no período.

Os militares prosseguem suas queixas afirmando que “o Brasil vive hoje situação política, econômica e mundial completamente diferente do momento histórico em que os fatos ocorreram. Comissões dessa natureza costumam ser criadas em um contexto de transição política. O que não é o caso na atualidade. Passaram quase 30 anos do fim do governo chamado militar e muitas pessoas que viveram aquele período já faleceram; testemunhas, documentos e provas praticamente perderam-se no tempo, é improvável chegar-se realmente à verdade dos fatos. Assim sendo, a criação de uma Comissão da Verdade não faz mais sentido, considerando que o Brasil superou muito bem essa etapa da sua história quando comparado a outros países do continente, que até hoje vivem conseqüências negativas de períodos históricos similares.”

Este longo trecho merece transcrição completa pelas contradições que encerra. A sentença de abertura tenta justificar crimes contra a humanidade, como a tortura, por um determinado período histórico. Talvez os militares estejam se referindo à guerra fria, mas, se for isso, precisariam se justificar. O Brasil não vivia um período tão diferente assim. Estávamos em plena democracia, governados por um presidente, que assumiu o cargo em função da renúncia do titular, como previa a Constituição. É importante recordar que, à época, o vice-presidente também era eleito pelo voto direto, e que Jango era de partido oposto ao de Jânio Quadros, que acabou renunciando. Assim, Jango era um governante democraticamente eleito e não fruto do acaso, como Sarney viria a ser duas décadas depois.

O fato de comissões da verdade serem, em geral, instaladas em contexto de transição não impede que uma seja criada no Brasil, agora. A Argentina continua julgando os militares responsáveis por crimes da ditadura naquele país, e cada fato novo legitima novo inquérito e julgamento. O tempo decorrido dos crimes cometidos também não é justificativa para a sua não apuração. Os militares se incriminam ao afirmar que “documentos e provas perderam-se no tempo”. Como assim? As pessoas que foram presas, torturadas e mortas estavam em poder do Estado brasileiro. Registros de prisão e processos são obrigatórios. Documentos certamente existiram e se acabaram por se perder no tempo foi por obra de alguém, certamente a parte interessada.

Ao contrário do que afirmam os militares, o Brasil não “superou muito bem essa etapa de sua história”, justamente pelo fato de ela não ter sido esclarecida até hoje e de só ter beneficiado os que praticaram os crimes. Os militares consideram que o governo que comandaram com mão de ferro por um quarto de século “não foi derrubado pelas forças políticas, mas sim ensejou processo lento e gradual de transição e devolução do poder aos civis, promovendo verdadeira reconciliação nacional.”

Parecem desconhecer as forças da história, que os obrigaram a levar adiante o processo inexorável de abertura. Bolsões sinceros e radicais até tentaram prorrogar o período de vigência da ditadura, mas seus dias estavam definitivamente contados pela pressão interna e externa. A democracia não foi concedida de bom grado e sim conquistada pela resistência democrática, exercida das mais diferentes formas.

O documento das Forças Armadas reconhece “o direito legítimo das famílias buscarem seus entes desaparecidos”, mas questiona o suposto uso de uma “causa nobre” para retaliações políticas. Ora, se os militares reconhecem o direito das famílias, deveriam contribuir para esclarecer o que aconteceu com seus filhos e não evitar apurações. As retaliações que porventura vierem da verdade serão de natureza jurídica e não política. Os militares perderam uma boa oportunidade de ficarem calados. Sua argumentação só reforça a necessidade imperiosa de uma comissão da verdade que traga à luz o que tanto se esforçam para manter sob o tapete.

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