Parte da esquerda se opõe ao governo Lula e, agora, ao governo
Dilma, por achar que eles deveriam realizar o crescimento sem contar com
o capitalismo
Que
a direita se movimente, seja através de elogios na imprensa, seja
através de movimentos partidários visando conquistar a hegemonia do
governo por dentro, é natural e previsível. Mas que setores da esquerda
façam leituras atravessadas das discussões sobre os rumos do país, tirem
conclusões apressadas sobre uma possível guinada conservadora do
governo Dilma e continuem apostando na divisão interna do PT é mais uma
vez lamentável.
Em primeiro lugar, não passa de ilusão de classe
supor que parte considerável da burguesia combateu o governo Lula apenas
por seu arraigado preconceito de classe, e não por causa do modelo
econômico. Só os politicamente cegos não tomaram conhecimento das
batalhas permanentes para realizar uma redistribuição de renda que
contemplasse os miseráveis e os pobres. E para que fossem recolocados na
pauta do país o planejamento e o crescimento econômico.
Parte da
esquerda se opõe ao governo Lula e, agora, ao governo Dilma, por achar
que eles deveriam realizar o crescimento sem contar com o capitalismo.
Em outras palavras, que deveriam liquidar o capitalismo. Só não dizem
como e com que forças. Talvez pensem que isso possa ser feito por
decreto, num país em que sequer se fez uma revolução que transformasse
todo o Estado numa máquina a serviço dos trabalhadores e do povo. A
pauta para isso é um pouco mais complexa.
Mas essa parte da
esquerda, além disso, supõe que o governo pode comandar a política a seu
bel prazer, e que a política pode comandar a economia do mesmo modo.
Realiza a operação teórica de retirar do cenário econômico e social as
forças reais que atuam ideológica e politicamente sobre ele, e conclui
que tudo é uma questão de coragem e decisão política. Para ela, um
governo de esquerda, mesmo que eleito sob as regras impostas pela
burguesia, tudo poderia. Bastaria o compromisso de servir ao povo e a
correspondente decisão política. Para que perder tempo com correlação de
forças e com supostas leis econômicas naturais?
O problema é que
neste caso, assim como no da superação do capitalismo, a correlação de
forças, assim como as leis econômicas naturais, existem, ambas evoluindo
em intrincadas relações de causa e efeito. Numa situação econômica
internacional muito favorável, o governo Lula conseguiu superar os
entraves da política monetária de juros altos e câmbio flutuante,
impostos pelo sistema financeiro, ao dar alguns passos fundamentais para
mudar a correlação de forças políticas e a própria política econômica.
Colocou em pauta um forte programa de redistribuição de renda, um rol
de ações de recuperação da capacidade de planejamento e de elaboração de
projetos, e um programa de aceleração do crescimento econômico.
Nenhum
desses passos foi dado de um dia para o outro, nem poderia. A máquina
estatal brasileira havia sido desorganizada pelos governos neoliberais,
os órgãos de planejamento e de projetos estavam sucateados, assim como
boa parte da indústria brasileira, e mantinham-se abertos os ralos pelos
quais fluía boa parte dos recursos públicos para mãos privadas. Para
complicar, parcelas do PT acharam que poderiam utilizar-se impunemente
dos mesmos métodos de privatização dos recursos públicos, praticados
pela burguesia, gerando a crise de 2005.
De qualquer modo, apesar
dos companheiros que abandonaram o governo Lula e o PT, por acharem que
eles afundariam por haver sucumbido ao conservadorismo e à corrupção,
tais dificuldades foram superadas em grande parte. A reeleição de Lula
foi uma demonstração de que a maior parte da população já se dera conta
de que havia uma diferença real entre seu governo e os governos
neoliberais anteriores.
Há certo consenso de que o segundo
mandato Lula foi substancialmente diferente do primeiro. Mas isso
ocorreu, em parte, porque no primeiro mandato haviam sido superados
alguns dos gargalos que impediam uma aplicação consistente das políticas
de redistribuição de renda e crescimento econômico. E, também em parte,
porque as condições internacionais continuavam favoráveis para a
implementação daquelas políticas, apesar do monetarismo neoliberal. O
resultado foi um aumento considerável do poder de compra das camadas
populares, embora haja um certo exagero na suposição de emergência de
uma nova classe média.
De qualquer modo, essa elevação do poder
de compra no mercado interno criaria um inevitável crescimento da
demanda de uma série considerável de produtos e serviços, em especial
alimentos, outros bens de consumo corrente, transportes etc. As leis
naturais da economia se apresentariam de um modo ou de outro, trazendo à
tona os desequilíbrios entre oferta e demanda, pressionando a inflação,
exigindo ajustes e impondo-se à política.
Para piorar, essa
situação se intensificou num contexto internacional diferente. A crise
internacional do capitalismo se mantém e mudaram as condições que antes,
apesar do monetarismo neoliberal encastelado no Banco Central,
favoreciam as políticas sociais e de desenvolvimento no Brasil. Num
contexto como esse, seria ilusão supor que o sistema financeiro ficaria
impassível diante da oportunidade de retomar a política de juros altos,
como única maneira de combate à inflação. Em especial, porque as medidas
para elevar a produção de alimentos e de outros bens e serviços de alta
demanda não dão resultados em curto prazo.
Temos, assim, a
economia se impondo à política numa situação de forte disputa entre o
neoliberalismo ainda não enterrado e o compromisso de longo prazo com um
desenvolvimento associado à redistribuição de renda e à erradicação da
miséria. Tornou-se inevitável dar vários nós de aperto, como me referi
em comentários anteriores. O que não era inevitável, nem necessário, era
permitir a elevação da taxa de juros, em especial porque a inflação não
está disseminada por todos os setores da economia.
No entanto,
essa também não é uma decisão que o governo Dilma possa adotar de chofre
e a seu bel prazer. Tal decisão demanda um debate na sociedade e entre
as forças políticas, criando uma correlação de forças favorável para
impor ao Banco Central e ao sistema financeiro uma política que
corresponda à nova realidade do país. O papel da esquerda e de todo o PT
é o de intensificar tal debate e acumular as forças sociais e políticas
necessárias para apoiar o governo Dilma no rumo dessa decisão, do mesmo
modo que fez durante o governo Lula. Ilações ou interpretações
diferentes a respeito de meus textos, nada tem de programático, nem
pragmático. De qualquer modo, se a parte da esquerda que ainda acredita
que os governos Lula e Dilma são de pragmatismo assistencialista,
despolitizadores, desmobilizadores e submissos ao sistema financeiro
privado, pretende participar de um debate sem preconceitos sobre as
conquistas do povo brasileiro durante os oito anos de governo Lula e
sobre os desafios que estão realmente em pauta para o governo Dilma,
assim como sobre os rumos possíveis para o socialismo no Brasil,
acredito que eles sejam bem-vindos. De minha parte, mesmo não passando
de um simples comentarista, lhes darei toda a atenção que militantes
históricos merecem.
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