O que a falácia da ditabranda revela
Por Marco Aurélio Weissheimer, da Carta Maior
Em
um editorial publicado no dia 17 de fevereiro de 2009, o jornal Folha
de S. Paulo utilizou a expressão “ditabranda” para se referir à ditadura
que governou o Brasil entre 1964 e 1985. Na opinião do jornal, que
apoiou o golpe militar de 1964 que derrubou o governo constitucional de
João Goulart, a ditadura brasileira teria sido “mais branda” e “menos
violenta” que outros regimes similares na América Latina.
Como
já se sabe, a Folha não foi original na escolha do termo. Em setembro
de 1983, o general Augusto Pinochet, em resposta às críticas dirigidas à
ditadura militar chilena, afirmou: “Esta nunca foi uma ditadura,
senhores, é uma dictablanda”. Mas o tema central aqui não diz respeito à
originalidade. O uso do termo pelo jornal envolve uma falácia nada
inocente. Uma falácia que revela muita coisa sobre as causas e
consequências do golpe militar de 1964 e sobre o momento vivido pela
América Latina.
É
importante lembrar em que contexto o termo foi utilizado pela Folha.
Intitulado “Limites a Chávez”, o editorial criticava o que considerava
ser um “endurecimento do governo de Hugo Chávez na Venezuela”. A escolha
da ditadura brasileira para fazer a comparação com o governo de Chávez
revela, por um lado, a escassa inteligência do editorialista. Para o
ponto que ele queria sustentar, tal comparação não era necessária e
muito menos adequada. Tanto é que pouca gente lembra que o editorial era
dirigido contra Chávez, mas todo mundo lembra da “ditabranda”.
A
falta de inteligência, neste caso, parece andar de mãos dadas com uma
falsa consciência culpada que tenta esconder e/ou justificar pecados do
passado. Para a Folha, a ditadura brasileira foi uma “ditabranda” porque
teria preservado “formas controladas de disputa política e acesso à
Justiça”, o que não estaria ocorrendo na Venezuela. Mas essa falta de
inteligência talvez seja apenas uma cortina de fumaça.
O
editorial não menciona quais seriam as “formas controladas de disputa
política e acesso à Justiça” da ditadura militar brasileira, mas
considera-as mais democráticas que o governo Chávez que, em uma década,
realizou 15 eleições no país, incluindo aí um referendo revogatório que
poderia ter custado o mandato ao presidente venezuelano. Ao fazer essa
comparação e a escolha pela ditadura brasileira, a Folha está apenas
atualizando as razões pelas quais apoiou, junto com a imensa maioria da
imprensa brasileira, o golpe militar contra o governo constitucional de
João Goulart.
Está
dizendo, entre outras coisas, que, caso um determinado governo
implementar um certo tipo de políticas, justifica-se interromper a
democracia e adotar “formas controladas de disputa política e acesso à
Justiça”. A escolha do termo “ditabranda”, portanto, não é acidental e
tampouco um descuido. Trata-se de uma profissão de fé ideológica.
Há
uma cortina de véus que tentam esconder o caráter intencional dessa
escolha. Um desses véus apresenta-se sob a forma de uma falácia, a que
afirma que a nossa ditadura não teria sido tão violenta quanto outras na
América Latina. O núcleo duro dessa falácia consiste em dissociar a
ditadura brasileira das ditaduras em outros países do continente e do
contexto histórico da época, como se elas não mantivessem relação entre
si, como se não integrassem um mesmo golpe desferido contra a democracia
em toda a região.
O
golpe militar de 1964 e a ditadura militar brasileira alimentaram
política e materialmente uma série de outras ditaduras na América
Latina. As democracias chilena e uruguaia caíram em 1973. A argentina em
1976. Os golpes foram se sucedendo na região, com o apoio político e
logístico dos EUA e do Brasil. Documentos sobre a Operação Condor
fornecem vastas evidências dessa relação.
Recordando.
A Operação Condor é o nome dado à ação coordenada dos serviços de
inteligência das ditaduras militares na América do Sul, iniciada em
1975, com o objetivo de prender, torturar e matar militantes de esquerda
no Brasil, Argentina, Chile, Paraguai, Uruguai e Bolívia.
O
pretexto era o argumento clássico da Guerra Fria: "deter o avanço do
comunismo internacional". Auxiliados técnica, política e financeiramente
por oficiais do Exército dos Estados Unidos, os militares
sul-americanos passaram a agir de forma integrada, trocando informações
sobre opositores considerados perigosos e executando ações de prisão
e/ou extermínio. A operação deixou cerca de 30 mil mortos e
desaparecidos na Argentina, entre 3 mil e 7 mil no Chile e mais de 200
no Uruguai, além de outros milhares de prisioneiros e torturados em todo
o continente.
Na
contabilidade macabra de mortos e desaparecidos, o Brasil registrou um
número menor de vítimas durante a ditadura militar, comparado com o que
aconteceu nos outros países da região. No entanto, documento secretos
divulgados recentemente no Paraguai e nos EUA mostraram que os militares
brasileiros tiveram participação ativa na organização da repressão em
outros países, como, por exemplo, na montagem do serviço secreto
chileno, a Dina. Esses documentos mostram que oficiais do hoje extinto
Serviço Nacional de Informações (SNI) ministraram cursos de técnicas de
interrogatório e tortura para militares chilenos.
Em
uma entrevista ao jornal O Estado de São Paulo (30/12/2007), o general
Agnaldo Del Nero Augusto admitiu que o Exército brasileiro prendeu
militantes montoneros e de outras organizações de esquerda
latino-americanas e os entregou aos militares argentinos. “A gente não
matava. Prendia e entregava. Não há crime nisso”, justificou na época o
general. Humildade dele. Além de prender e entregar, os militares
brasileiros também torturavam e treinavam oficiais de outros países a
torturar. Em um dos documentos divulgados no Paraguai, um militar
brasileiro diz a Pinochet para enviar pessoas para se formarem em
repressão no Brasil, em um centro de tortura localizado em Manaus.
Durante
a ditadura, o Brasil sustentou política e materialmente governos que
torturaram e assassinaram milhares de pessoas. Esconder essa conexão é
fundamental para a Folha afirmar a suposta existência de uma
“ditabranda” no Brasil. A ditadura brasileira não teve nada de branda.
Ao contrário, ela foi um elemento articulador, política e
logisticamente, de outros regimes autoritários alinhados com os EUA
durante a guerra fria. O editorial da Folha faz eco às palavras do
general Del Nero: “a gente só apoiava e financiava a ditadura; não há
crime nisso”.
Não
é coincidência, pois, que o mesmo jornal faça oposição ferrenha aos
governos latino-americanos que, a partir do início dos anos 2000,
levaram o continente para outros rumos. Governos eleitos no Brasil, na
Venezuela, na Bolívia, na Argentina, no Paraguai e no Uruguai passam a
ser alvos de uma sistemática oposição midiática que, muitas vezes,
substitui a própria oposição partidária.
A
Folha acha a ditadura branda porque, no fundo, subordina a continuidade
e o avanço da democracia a seus interesses particulares e a uma agenda
ideológica particular, a saber, a da sacralização do lucro e do mercado
privado. Uma grande parcela do empresariado brasileiro achou o mesmo em
64 e apoiou o golpe. Querer diminuir ou relativizar a crueldade e o
caráter criminoso do que aconteceu no Brasil naquele período tem um
duplo objetivo: esconder e mascarar a responsabilidade pelas escolhas
feitas, e lembrar que a lógica que embalou o golpe segue viva na
sociedade, com um discurso remodelado, mas pronto entrar em ação, caso a
democracia torne-se demasiadamente democrática.
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