O grupo Somos – Comunicação, Saúde e Sexualidade
publicou nota manifestando repúdio às recentes declarações racistas e
homofóbicas do deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) e criticando a matéria
publicada pelo jornal Zero Hora sobre o vandalismo que teria tomado
conta da rua Lima e Silva, no bairro Cidade Baixa, em Porto Alegre.
Intitulada “Vandalismo, drogas e sexo a céu aberto”, a matéria tem como ilustrações fotos de casais gays se beijando. A nota do Somos afirma:
Na última semana nos deparamos com o deputado Jair Bolsonaro dando
declarações racistas, heterossexistas e homofóbicas em rede nacional de
televisão. “Pra mim ser gay é promíscuo, sim”, disse o deputado,
democraticamente eleito pelo Partido Progressista do Rio de Janeiro,
quando questionado sobre suas posições.
As crenças do deputado, expressas de modo bastante claro, são
preocupantes. Mas a democracia, instituição pela qual no deputado não
parece ter muito apreço, tem sua utilidade nesse caso: grande parte das
pessoas acredita que é um direito de Bolsonaro dizer o que pensa. Então,
que ele diga o que pensa, que nós discordemos de suas ideias, que haja
discussões e que nada mude na realidade em que vivemos. Afinal, é um
“direito democrático” dizer que gay é promíscuo, é um “direito
democrático” votar em um candidato que acredita nisso, tanto quanto é um
“direito democrático” discordar disso. Será mesmo?
A própria noção do que é democracia é totalmente distorcida neste
caso. Ter liberdade de expressão significa ter direito de posicionar-se
contra ou a favor de acontecimentos do nosso presente, mas jamais
significa incitar ao ódio, promover a discriminação e a violência ou
impor a todo um grupo de pessoas um rótulo preconceituoso. Isso não é
liberdade de expressão: é liberdade de promoção e implantação do ódio.
Entretanto, devemos tirar uma lição bastante preciosa das declarações de
Bolsonaro. Ele dá voz a um murmúrio quase silencioso de muitos cidadãos
e cidadãs brasileiras, que efetivamente concordam com suas ideias,
eleitores e eleitoras que votaram no deputado e que legitimam suas
posições. Há uma massa de pessoas que também acreditam no que Bolsonaro
diz, e que também acreditam que é este o tipo de democracia que precisa
vigorar no Brasil. Temos de estar atentos/as ao que isso pode significar
para o jogo político. Além disso, é importante que as pessoas se
expressem publicamente, que assumam suas crenças e que se
responsabilizem por elas. Se concordam com as declarações do deputado,
que tomem a voz: é importante tirar os/as reacionários do “armário” para
que as discussões se tornem mais claras.
Na edição desta segunda-feira do jornal Zero Hora, de Porto Alegre,
as páginas 4 e 5 são dedicadas a descrever e denunciar os supostos
abusos cometidos por jovens que se encontram na rua Lima e Silva,
localizada no bairro Cidade Baixa na capital gaúcha. O bairro é
reconhecidamente o preferido pela boemia porto-alegrense e é frequentado
por muitos grupos em diferentes dias e diferentes ruas. A matéria,
entretanto, foca como problema a sociabilidade jovem que acontece ali,
sobretudo aos domingos, entre jovens. O título da matéria “Vandalismo,
drogas e sexo a céu aberto” deixa muito a desejar, ainda mais quando
contrastado com as fotografias que ilustram o texto: não há sexo a céu
aberto, mas beijos entre dois meninos ou entre duas meninas. É este o
conceito de “sexo a céu aberto”?
O SOMOS já desenvolveu uma pesquisa de levantamento de dados e um
trabalho de prevenção às infecções sexualmente transmissíveis junto aos
jovens que se reúnem em frente ao Centro Comercial Nova Olaria. Durante a
implementação das ações da pesquisa e do projeto Qual É A Sua, desde o
ano de 2007, fizemos observações participantes na sociabilidade dos
jovens na rua Lima e Silva. Durante os mais de 6 meses de observações,
não presenciamos nenhuma cena de sexo a céu aberto, como sugere a
matéria, também não presenciamos nenhum/a jovem subindo os parapeitos
dos prédios para cheirar cocaína. Vale lembrar que jovens menores de 18
anos não podem entrar em motéis e normalmente moram junto com seus pais,
o que dificulta os momentos de práticas sexuais a sós – mesmo assim,
jamais vimos nenhum tipo de atentado violento ao pudor acontecendo na
Lima e Silva.
Sim, é verdade que os/as jovens fazem xixi nas ruas, posto que os
banheiros dos estabelecimentos próximos ficam fechados – apenas para os
jovens – e a Prefeitura não disponibiliza banheiros públicos naquela
região da cidade. Porém, o “problema” de urina e fezes nas ruas não é
uma característica apenas da Lima e Silva – várias outras regiões de
Porto Alegre têm sofrido com o total descaso da política de limpeza
urbana do município. Se há consumo de drogas ilícitas, como a cocaína,
ou abuso de drogas lícitas, como o álcool, é importante salientar que o
uso e abuso destes tipos de drogas acontecem também a algumas quadras da
rua Lima e Silva, ao longo da rua João Alfredo. A diferença entre a
sociabilidade das duas ruas é que a primeira é predominantemente
frequentada por jovens gays e lésbicas, enquanto que a segunda é destino
de jovens heterossexuais – de classe média. O uso e abuso de drogas
lícitas e ilícitas não é privilégio dos jovens que se reúnem na rua Lima
e Silva, mas uma prática mais ou menos disseminada e comum entre vários
grupos de pessoas que frequentam vários outros ambientes de
sociabilidade, sem que isso se torne um problema unicamente porque o
consumo se dá dentro destes espaços, sem que o público em geral veja. É
esse, então, o problema? Que sejamos obrigados a ver com nossos olhos
aquilo que normalmente preferimos ignorar? Acreditamos que exista, sim,
um problema em relação à sociabilidade dos/as jovens que frequentam a
Lima e Silva aos domingos; entretanto, as maneiras com que a sociedade e
a mídia vêm lidando com este problema, além da omissão do Poder Público
Municipal, só têm piorado a situação.
A matéria de Zero Hora, cuja demanda de pauta ainda é um mistério,
explicita problemas que não se restringem àquele grupo de jovens. É
curioso notar que ao longo do texto, nenhum dos/as jovens foi ouvido/a
ou entrevistado/a. Por quê? Se a eles/as são impetradas tantas
transgressões, por que não ouvi-los/as sobre o que têm a dizer? Por que
damos ouvidos às declarações de Bolsonaro, por exemplo, e é tão difícil
de articularmos uma resposta consistente contra suas posições? Por que
não há nas páginas de Zero Hora uma matéria sobre o uso e abuso de
álcool e cocaína nas boates freqüentadas pelos jovens da classe média
heterossexual de Porto Alegre? Por que não há políticas públicas
relevantes para dar conta dos jovens, sobretudo no município de Porto
Alegre? Por que é tão fácil de acreditar que Bolsonaro tem direito de
dizer o que pensa, chamando isso de liberdade de expressão, enquanto que
jovens gays e lésbicas não podem se beijar em público, posto que isso é
atentado violento ao pudor? É porque, talvez, em alguma medida,
aqueles/as que veem como um problema jovens gays e lésbicas se beijando
em público estejam também de acordo com as declarações de Bolsonaro.
O SOMOS se posiciona contrariamente às declarações do deputado Jair
Bolsonaro e repudia qualquer tipo de atitude ou ideia que incite ao ódio
e à violência; defendemos, sim, a liberdade de expressão, mas somos
absolutamente contrários/as a posições que denigrem os Direitos Humanos.
Pela mesma razão, somos a favor de um tratamento mais digno e menos
preconceituoso em relação aos/às jovens que frequentam a rua Lima e
Silva aos domingos, de modo que todos os atores sociais e instituições
públicas envolvidas nessa situação possam tomar medidas inclusivas para
resolver a questão, sempre orientadas pelos princípios preconizados
pelos Direitos Humanos.
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