Igor Natusch no Sul21
O bloco que surgiu como a oportunidade de revolucionar a relação
econômica entre os países do Mercosul dá sinais de estar vivendo um
momento no qual o livre comércio não é, no fim das contas, tão livre
assim. As barreiras erguidas entre os principais países do Cone Sul
dificulta a circulação entre as portas do comércio sul-americano e
provoca revolta em países de menor força econômica, que se dizem
prejudicados por seus irmãos mais avantajados. O novo capítulo nas
tensões dentro do Mercosul ocorreu na última quinta-feira (12), quando o
presidente uruguaio José Mujica pediu um aviso prévio de 15 dias úteis
antes da adoção de medidas protecionistas por parte dos integrantes do
bloco.
Na proposta, solicita-se também que os anúncios devem ir além das
tradicionais licenças não automáticas, englobando todos os tipos
possíveis de protecionismo. A declaração, aparentemente dotada de um
toque de ironia, revela também a insatisfação do Uruguai com o modo como
os integrantes do Mercosul, em especial a Argentina e o Brasil,
conduzem a relação econômica com os países vizinhos, muitas vezes indo
contra o caráter de livre comércio que se espera de um bloco econômico
do tipo.
Em fevereiro, medidas protecionistas adotadas pelo governo argentino
passaram a dificultar a entrada de 585 produtos fabricados no Uruguai,
atingindo especialmente os setores têxtil, plástico e de couro. Em
conversas com empresários, Mujica já havia criticado a aplicação de
medidas não alfandegárias dentro do bloco econômico – que, somadas com
as “dimensões colossais” de Brasil e Argentina, acabam influindo até
mesmo na escolha de empresas multinacionais, que acabam ignorando o
Uruguai e instalando unidades nos países vizinhos.
“O Uruguai sempre teve restrições com relação ao Mercosul”, conta
Antônio Carlos Fraquelli, economista da FEE. Como exemplo, Fraquelli
lembra que o ex-presidente uruguaio Jorge Batlle Ibáñez chegou a sugerir
que o país deixasse o Mercosul, estabelecendo a partir daí uma relação
comercial bilateral com os EUA. “E Batlle é um colorado, não um blanco.
Ou seja, um político menos conservador”, acentua Fraquelli. No contexto
uruguaio, portanto, não se trata de uma indignação inédita, diz o
economista.
Ciente de que a cutucada de José Mujica podia provocar desconforto em
Buenos Aires e Brasília, coube a Sebastián Torres, diretor nacional de
Indústrias do Uruguai, explicar com mais detalhes a quais tipos de
barreira referem-se o pedido de antecedência do governo uruguaio. A
lista inclui cotas, disposições sobre etiquetados, requisitos técnicos,
exigência de apresentação de certificados para autorizar a importação,
medidas sanitárias e relação critério-valor. Contatado pela reportagem
do Sul21, o Itamaraty disse não ter conhecimento das declarações de
Mujica e, portanto, não estar preparado para comentar o caso.
Licenças não automáticas para veículos dividem Brasil e Argentina
Não é apenas na relação com países menos influentes dentro do
Mercosul, como Uruguai e Paraguai, que as aparentes contradições do
modelo se fazem sentir. O Brasil determinou nessa sexta-feira (13) que
as licenças para a entrada de veículos importados no país não serão mais
concedidas de forma automáticas, podendo demorar até dois meses. A
medida está sendo interpretada por alguns analistas como uma retaliação
ao comportamento protecionista da Argentina.
Em resposta, a ministra da Indústria da Argentina, Débora Giorgi,
enviou uma carta ao colega brasileiro Fernando Pimentel, na qual garante
a “inexistência de um impacto negativo sobre as exportações do Brasil à
Argentina” no que toca às medidas adotadas pelo governo de Cristina
Kirchner. Acrescentando que desde 2003 a Argentina manifesta preocupação
com o “persistente e crescente déficit comercial” entre os dois países,
Débora Giorgi conclui dizendo que o Brasil tem imposto dificuldades à
entrada de vários produtos argentinos no mercado nacional, de forma que
não se justificariam as críticas feitas pelo setor privado brasileiro.
De acordo com o economista Antônio Carlos Fraquelli, as discordâncias
se acentuam na medida em que o Mercosul não é nem mesmo um bloco
econômico, ao menos não aos moldes europeus. “Trata-se de uma iniciativa
para integrar mercados”, explica. Falta, segundo ele, mecanismos
existentes no modelo da Europa, como a adoção de institutos monetários
ou de um Banco Central do Mercosul. De qualquer modo, o economista da
FEE acredita que o Mercado Comum do Sul já viveu momentos mais
complicados. “O Mercosul nasceu quando Brasil e Paraguai, por exemplo,
tinham que lidar com inflações altíssimas”, relembra. Apesar das
barreiras internas, a corrente de comércio cresce dentro do Mercosul, de
acordo com Fraquelli, especialmente em função da presença de produtos
de origem chinesa no continente.
A própria situação dos países mais fortes do bloco parece ser um
sinal de que o Mercosul vai estar subjugado, mesmo que temporariamente,
aos interesses dos principais atores econômicos da região. “O Brasil, no
momento, está às voltas com os índices de inflação”, diz o economista
da FEE. “A Argentina, por sua vez, está encarando uma guerra para
controlar a dívida pública, entrou em conflito com os produtores rurais,
maquia a própria inflação. São países que estão, nesse momento,
preocupados com os próprios problemas. O Mercosul, para eles, fica meio
que em standby. E países como o Uruguai e o Paraguai acabam ficando em
uma situação de menor relevância no Cone Sul”.
A definição a respeito do pedido uruguaio deve ficar para a cúpula do
Mercosul que se realizará em Assunção (Paraguai), no final de junho. A
ideia da cúpula, que era celebrar os 20 anos do Mercosul, deve ficar
para trás – afinal, o que conta agora é aparar as arestas e diminuir
tensões, em nome da continuidade do bloco econômico do Cone Sul.
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