E
o consumidor vai ao supermercado, enche o carrinho, fica na fila do
caixa; monta seu kit de móveis, instala seu decodificador de TV, ativa
sua conexão de internet; procura a referência da conexão da torneira do
banheiro, aprende a usar programas de computador, lê manuais...
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por Laurent Cordonnier no LE MONDE - BRASIL |
Folga não é necessariamente descanso. Já sabemos que, quando o
trabalhador – e a trabalhadora, em especial – não está “no trabalho”,
ele continua a labutar, porque o tempo gasto em tarefas domésticas
ultrapassa o usado no trabalho remunerado.1 Mas prestamos
menos atenção ao fato de que ele consome e, como consumidor, muitas
vezes trabalha de graça para as empresas ou governos... para terminar,
justamente, o trabalho. Ele lê revistas de consumidores, faz pesquisas
na internet, organiza seus projetos, reserva suas passagens de trem; vai
ao supermercado, enche o carrinho, fica na fila do caixa; monta seu kit
de móveis, instala seu decodificador de TV, ativa sua conexão de
internet; procura a referência da conexão da torneira do banheiro,
aprende a usar programas de computador, lê manuais... e volta alguns
dias depois ao serviço de suporte de vendas, quando não ao balcão de
reclamações.
Se o consumidor trabalha, pode-se dizer que ele faz isso porque quer.
Participar da produção de bens de consumo seria uma forma agradável de
fazer horas extras, que não são pagas diretamente, mas na verdade
economizam o salário (permitindo comprar mercadorias mais baratas que
estão inacabadas). Para quem é corajoso e aprecia o “faça você mesmo”,
essa oferta de trabalho voluntário tem também a vantagem de não estar
exposta ao risco de desemprego. É um daqueles casos excepcionais, como o
de Robinson Crusoé em sua ilha, em que basta querer trabalhar para
encontrar um emprego. Alguns até defendem que esse trabalho benévolo é o
grau de autonomia que nos é oferecido, a oportunidade de não sermos
consumidores passivos. A figura do trabalhador manual hábil, do amador
entusiasta, da pessoa competente em consertar coisas, do “Consumidor
Atuante”, está sempre pronta para aparecer em cena.
O consumidor-trabalhador achará, no entanto, difícil admitir – porque
seu trabalho é também o de “positivar” esses momentos –, mas esse grau
de autonomia não é, realmente, opção sua. Tal como seu vizinho, ele leva
seus sapatos ao sapateiro, remove sua bandeja de fast-food,
preenche páginas de informações pessoais no momento da compra on-line,
passa as manhãs de sábado nas lojas tentando encontrar um armário de
rodinhas que não é mais fabricado... Mesmo que ele venha a desfrutar a
“liberdade” – uma ideia que alguém colocou em sua cabeça – de reservar
sua passagem de trem pela internet, de pijama, sentado confortavelmente
em sua cama, para sua viagem de negócios do dia seguinte, ele sabe,
talvez lá no fundo, que não está usando seu tempo livre para ir pescar. O
trabalhador ainda ousará, às vezes, admitir que não tem muita escolha,
as filas são longas nas bilheteiras da estação... Pois é desenvolvendo
todo tipo de alternativa desagradável para o consumidor que, este,
finalmente, achará mais conveniente fazer o serviço ele mesmo. O manejo
cuidadosamente calculado das filas nos correios, na Previdência Social,
no supermercado é certamente uma das artes consumadas da gestão
neoliberal, que consiste em transformar o comportamento de repúdio do
consumidor em uma marcha heroica para a liberdade de escolha.
Tornando-se um trabalhador, o consumidor descobre a produtividade. Que
vergonha se ele não tiver a destreza suficiente para parecer um ás do
caixa rápido. Ele vai sentir na nuca a respiração silenciosa e irritada
dos clientes na fila. O imperativo da produtividade o persegue até
quando sai de férias, quando ouve, encantado, as instruções da
recepcionista da companhia aérea para sua autorreserva que irá,
eventualmente, eliminar o próprio trabalho dela. Aos poucos, porém, ele
recebe algumas pequenas recompensas que lhe trarão a alegria de enfim
ter alcançado a conformidade: os caixas rápidos não lhe metem mais medo;
ele pilota com virtuosismo os terminais automáticos da empresa
ferroviária; sabe finalmente atualizar a licença de seu antivírus. O
consumidor certamente ganha competência. Mas, para fazer disso algo
totalmente positivo, seria necessário esconder o fato de que esse tipo
de qualificação – inegavelmente importante, pois sua ausência poderia
torná-lo inviável, social e economicamente – é apenas uma chave que abre
e fecha todas as portas de uma prisão... sem nunca se ver a luz do dia.
Em última análise, de que se ocupa o consumidor – como é que ele se
torna cada vez mais um trabalhador? Ele está ocupado esvaziando com uma
pequena colher o oceano de destroços de uma sociedade que teremos de
chamar um dia de “sociedade da pane”. Tudo o que funciona, tudo o que
pode ser feito sem muita dificuldade, tudo o que é regular (normal,
rotineiro, repetitivo), tudo o que “vai bem”, que “flui”, em suma, tudo o
que é suscetível de sucesso fácil tem sido confiado a autômatos
(tecnológicos ou de procedimento). Mas em um mundo em que o registro da
ação humana foi reduzido, de forma mortal, pelas operações técnicas,
confiar a melhor parte (as ações que produzem) às máquinas é morrer
antes do tempo.
A sociedade de serviços não tem se tornado o recipiente, muitas vezes lucrativo,2
sempre bastante mórbido, dessa economia de pane? Uma economia que faz
que as oportunidades de encontro, intercâmbio e troca de palavras se
realizem em torno do fracasso: nos balcões de serviço ao consumidor, no
guichê de reclamações, no pronto-socorrodo hospital, na delegacia, ou
seja, onde quer que se forneçam as soluções para colocar de volta nos
trilhos de um protocolo automatizado uma situação que foge das normas,
um caso difícil, um mal-entendido, aquilo que escapou por um momento. Os
funcionários que trabalharam durante todo o fim de semana encontram na
segunda-feira, no emprego, os náufragos do protocolo: aqueles para quem o
tratamento de antibióticos não funcionou (os pacientes curados
raramente retornam para cumprimentar o médico), os que perderam sua
correspondência, o viajante que teve sua bagagem extraviada no
aeroporto, os analfabetos que “não compreenderam direito” os termos do
contrato de empréstimo ao consumidor, um inquilino que não paga o
aluguel há três meses...
Marcadas com o selo do fracasso, do fiasco, da má sorte, as
oportunidades que nos são dadas para “restaurar algo de humano em tudo
isso” se transformam em amargura, desconfiança, queixas e protestos
vazios. Sentimo-nos então quase apaziguados quando todas essas
respostas, como a descarga de agressividade que acabamos de lançar no
sistema de telemarketing de nosso provedor de internet, são capturadas
de forma higiênica e retificadas por uma salva de boas maneiras
formulada também automaticamente: “Obrigado por sua confiança, Sr.
Robinson; a empresa Quesabeoquefaz lhe deseja uma boa noite!”.
A ambição de automatizar os excessos do sistema pode ser nosso novo
Eldorado. Começamos a sonhar, imperceptivelmente, com coisas que
poderiam funcionar “realmente bem”. De repente passamos a sentir a
satisfação narcisista de nos reconhecer nesse universo de causalidades
implacáveis, dissimulando cada vez menos nosso entusiasmo tecno-cool.
Como dizia André Gorz, “a mente, que se torna capaz de funcionar como
uma máquina, se reconhece na máquina capaz de funcionar como ela – sem
perceber que na verdade a máquina não funciona como o espírito, mas
apenas como o espírito que aprendeu a funcionar como uma máquina.”3
Laurent Cordonnier é economista e mestre de conferências da Universidade Lille-I. Autor de Pas de pitié pour les gueux (Nenhuma piedade para os miseráveis), Paris, Raisons d'Agir, 2000 e de L’Economie des Toambapiks, Raisons d’Agir, Paris, 2010.
Ilustração: André Dahmer *Laurent Cordonnier, economista, é autor de A economia dos Toambapiks: uma fábula que não tem nada de ficção, Raisons d’agir, Paris, 2010.
1 Estimada entre um quarto e três quartos do Produto Interno Bruto, a
autoprodução dos serviços domésticos não se reflete na contabilidade
nacional, em parte porque são as mulheres que a realizam.
2 Ver Tahar ben Jelloun, “34 centavos de euro por minuto”, Le Monde, 10-11 de outubro de 2010.
3 André Gorz, Metamorfoses do trabalho: Busca de sentido, Galilée, Paris, 1988. |
Um blog de informações culturais, políticas e sociais, fazendo o contra ponto à mídia de esgoto.
sexta-feira, 1 de julho de 2011
Consumidor trabalhador
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