quinta-feira, 22 de setembro de 2011

A Líbia pode desintegrar-se como a Somália

  Samir Amin   no CORREIO DA CIDADANIA
 
A Líbia não é a Tunísia nem o Egito. O grupo dominante (Kadafi) e as forças que o combatem são em tudo diferentes dos seus correspondentes tunisianos ou egípcios. Kadafi nunca passou de um palhaço, cujo vazio de pensamento está refletido no seu conhecido “Livro Verde”. Agindo numa sociedade arcaica e parada, Kadafi bem podia comprazer-se em sucessivos discursos “nacionalistas” e “socialistas” desligados da realidade e, no dia seguinte, se auto-proclamar como um “liberal”.

Ele só o fez para “agradar ao Ocidente”, como se a opção pelo liberalismo pudesse deixar de ter efeitos na sociedade. Mas tinha e, como toda a gente sabe, ela piorou as condições de vida da maioria dos líbios. Os benefícios do petróleo, antes amplamente redistribuídos, tornaram-se o alvo de pequenos grupos de privilegiados, entre eles a família do líder. Essas condições deram origem à bem conhecida explosão (social), de que os regionalistas e os políticos islamistas do país logo tiraram proveito.

Porque a Líbia nunca existiu realmente enquanto nação. É uma região geográfica que separa o mundo árabe ocidental do mundo árabe oriental (o Magrebe e o Mashreq). A fronteira de transição de um para o outro se situa bem no meio da Líbia. A Cirenaica era historicamente grega e helenística antes de se tornar mashrequiana. A Tripolitânia, por seu lado, era romana e tornou-se magrebina. Por isso o regionalismo sempre foi muito forte no país.

Ninguém sabe quem são realmente os membros do Conselho Nacional de Transição em Benghazi. Pode haver democratas entre eles, mas certamente há também islamistas, alguns deles da pior das estirpes, e ainda regionalistas. O presidente desse conselho é Mustafa Muhammad Abdeljelil, o juiz que condenou à morte as enfermeiras búlgaras (1) e foi premiado por Kadafi, que o nomeou ministro da Justiça entre 2007 e fevereiro de 2011. Foi por esse motivo que o primeiro-ministro da Bulgária, Boikov, se recusou a reconhecer o conselho, mas as suas razões não foram levadas em conta pelos EUA nem pela Europa.

Desde o seu início, o “movimento” da Líbia tomou a forma de uma revolta armada em combate contra o exército, e não de uma vaga de manifestações civis. E logo em seguida essa revolta chamou a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) em sua ajuda. Assim foi dada, às potências imperialistas, a oportunidade para uma intervenção militar.

O seu objetivo seguramente não era “a proteção dos civis” nem a “democracia”, mas sim o controle sobre os campos petrolíferos, os recursos aqüíferos subterrâneos e a aquisição de uma importante base militar no país. É claro que, tão logo Kadafi optou pelo liberalismo, as companhias petrolíferas ocidentais tiveram o controle sobre o petróleo líbio. Mas com Kadafi nunca se podia estar seguro de nada. E se, de repente, ele mudasse de orientação e começasse a jogar com a Índia e a China? Mais importantes são os recursos aqüíferos subterrâneos que poderiam ser usados em benefício dos países africanos do Sahel (2). Empresas francesas bem conhecidas estão interessadas nesses recursos (o que explica o imediato envolvimento da França). Vão usá-los de maneira mais “proveitosa” para produzir agrocombustíveis.

Em 1969, Kadafi exigiu que os britânicos e os estadunidenses retirassem as bases que mantinham no país desde a Segunda Guerra Mundial. Atualmente, os EUA precisam encontrar na África uma localização para o seu AFRICOM (o comando militar dos EUA para a África, parte importante da sua estratégia para o controle militar do mundo, mas que ainda continua baseado em Stuttgart – Alemanha!). A União Africana rejeitou-o e, até agora, nenhum país africano o aceitou. Um lacaio instalado em Trípoli certamente aceitaria todas as exigências de Washington e dos seus lugares-tenentes da OTAN. O que seria uma ameaça direta contra a Argélia e o Egito.

Dito isto, continua a ser difícil prever qual será o comportamento do “novo regime”. Não é de excluir a possibilidade de uma desintegração do país como na Somália.

Notas

1) Referência ao “caso das enfermeiras búlgaras”, ou “caso do HIV na Líbia”, em 1998, em que um médico interno palestino e cinco enfermeiras búlgaras do Hospital Infantil El-Fatih, em Benghazi, foram acusados de terem deliberadamente infectado cerca de 400 crianças com o vírus da aids. Foram condenados à morte, e por fim viram a sentença comutada em prisão perpétua por decisão de uma comissão de ministros. Em 2007, após complicadas negociações com a UE, foram extraditados para a Bulgária e acabaram por ser libertados depois de o presidente búlgaro lhes ter comutado as penas.

2) Faixa subsaariana que atravessa a África desde o Atlântico ao Mar Vermelho, de transição entre o deserto e a savana subtropical. Inclui, no todo ou em parte, Senegal, Mali, Burkina Faso, o sul da Argélia, Níger, o norte da Nigéria, Chade, Sudão (incluindo Darfur e o Sudão do Sul), o norte da Etiópia e a Eritreia.  

Original (em inglês) deste artigo no Pambazuka News.
Tradução do Passa Palavra.

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