O Cristo Redentor completa 80 anos na próxima quarta (12), feriado de Nossa Senhora Aparecida.
Poucas pessoas que visitaram o monumento não ficam maravilhadas com a vista, lá de cima, do Morro do Corcovado, de uma das mais belas cidades do planeta. O que não impede, contudo, de muitos terem achado um tremendo exagero a eleição da estátua como uma das sete novas maravilhas do mundo – concurso realizado por uma fundação suíça, que também elegeu o Taj Mahal (!), o Coliseu (!!) e Machu Picchu (!!!), entre outros monumentos históricos. Perceberam a desproporcionalidade histórica e a paulada no significado da palavra “maravilha”?
Mas como a votação foi pela internet e houve até campanha de veículos de comunicação brasileiros inflamando o que há de pior em nosso ufanismo patriótico (se é que há algo de bom nesse caldo), era claro que o monumento de gosto estilístico duvidoso fosse entrar nesse hall da fama.
Em um país de maioria católica (não praticante, é claro, e que apela para todas as forças do universo em um sincretismo fascinante nos momentos de dificuldade), a estátua, que fica sob os cuidados da Arquidiocese do Rio de Janeiro, tem sua importância. Se aquela referência faz bem à grande maioria das pessoas e não ofende uma minoria, não há problema. O difícil não é ter que conviver com um símbolo de uma crença que não é a sua na rua – a isso damos o nome de tolerância, que deveria ser melhor cultivada por estas bandas, o que protegeria o direito de culto em igrejas, templos e terreiros. O ruim é saber que a presença desses símbolos em prédios que pertencem ao poder público mostram que a saudável e necessária separação entre fé e Estado não ocorre por aqui.
A questão da retirada de crucifixos, imagens religiosas e afins de repartições públicas gerou polêmicas ao longo da história a partir do momento em que um Estado se afirma laico (e não desde o lançamento do 3º Programa Nacional de Direitos Humanos, no ano passado, que previa essa ação). A França retirou os símbolos religiosos de sedes de governos, tribunais e escolas públicas no final do século 19. Nossa primeira Constituição republicana já contemplava a separação entre Estado e Igreja, mas estamos 120 anos atrasados em cumprir a promessas dos legisladores de então.
Em janeiro de 2010, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) lançou uma nota em que rejeitou “a criação de ‘mecanismos para impeder a ostentação de símbolos religiosos em estabelecimentos públicos da União’, pois considera que tal medida intolerante pretende ignorar nossas raízes históricas”.
Na época, auto-intitulados representantes de Deus, afirmaram que se o governo quisesse tirar símbolos religiosos, então deveria começar pelo Cristo Redentor. Chantagem besta, do mesmo DNA de: “se for para começar a discutir as regras do jogo, levo a minha bola embora – humpf”. Particularmente, pode demolir a estátua que não dou a mínima (e, com essa frase iconoclasta, selo a excomunhão deste que já foi até coroinha). Mas sei que a sociedade, que tem apreço por ela, não deixaria meia dúzia de “iluminados” sacerdotes tomar tal medida uma vez que o monumento pertence, na prática, à cidade do Rio e não à Cúria. Em tempo: não é o governo que sugere a retirada dos símbolos religiosos de repartições públicas, mas foi a Conferência Nacional de Direitos Humanos, que derivou de conferência estaduais, reunindo a sociedade brasileira em um debate longo e democrático.
Adoro quando alguém apela para as “raízes históricas” para discutir algo. Na época, lembrei que a escravidão está em nossas raízes históricas. A sociedade patriarcal está em nossas raízes históricas. A desigualdade social estrutural está em nossas raízes históricas. A exploração irracional dos recursos naturais está em nossas raízes históricas. A submissão da mulher como mera reprodutora e objeto sexual está em nossas raízes históricas. As decisões de Estado serem tomadas por meia dúzia de iluminados ignorando a participação popular estão em nossas raízes históricas. Lavar a honra com sangue está em nossas raízes históricas. Caçar índios no mato está em nossas raízes históricas. E isso para falar apenas de Brasil. Até porque queimar pessoas por intolerância de pensamento está nas raízes históricas de muita gente.
Quando o ser humano consegue caminhar a ponto de ver no horizonte a possibilidade de se livrar das amarras de suas “raízes históricas”, obtendo a liberdade para acreditar ou não, fazer ou não fazer, ser o que quiser ser, instituições importantes trazem justificativas para manter tudo como está.
Como foi noticiado neste blog, em 2009, o Ministério Público do Piauí solicitou a retirada de símbolos religiosos dos prédios públicos, atendendo a uma representação feita por entidades da sociedade civil e o presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro mandou recolher os crucifixos que adornavam o prédio e converteu a capela católica em local de culto ecumênico. Algumas dessas ações têm vida curta, mas o que importa é que percebe-se um processo em defesa de um Estado que proteja e acolha todas as religiões, mas não seja atrelado a nenhuma delas.
É necessário que se retirem adornos e referência religiosas de edifícios públicos, como o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional. Não é porque o país tem uma maioria de católicos que espíritas, judeus, muçulmanos, enfim, minorias, precisem aceitar um crucifixo em um espaço do Estado. Além disso, as denominações cristãs são parte interessada em várias polêmicas judiciais – de pesquisas com célula-tronco ao direito ao aborto. Se esses elementos estão escancaradamente presentes nos locais onde são tomadas as decisões sem que ninguém se mexa para retirá-las, como garantir que as decisões serão isentas? O Estado deve garantir que todas as religiões tenham liberdade para exercer seus cultos, tenham seus templos, igrejas e terreiros e ostentem seus símbolos. Mas não pode se envolver, positiva ou negativamente, em nenhuma delas.
E não sou eu quem diz isso. Em Mateus, capítulo 22, versículo 21, o livro sagrado do cristianismo deixa bem claro o que o pessoal de hoje quer fazer de conta que não entende: “Dai, pois, a César o que é de César e a Deus, o que é de Deus”.
Estado é Estado. Religião é religião. Simples assim.
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