Otaviano Helene no CORREIO DA CIDADANIA | ||||||||||||||||||||
Em qualquer direção que se olhe o cenário da educação no Brasil, há
algum projeto “salvador” que serve como uma espécie de barreira a
dificultar uma análise objetiva da realidade. Como em uma batalha, esses
inúmeros projetos funcionam como proteção dos muitos flancos frágeis de
nossa política educacional. Qualquer análise crítica pode ser
“respondida” apontando-se para algum desses projetos e afirmando-se que
ele permitirá superar o problema analisado, bastando esperar. E sempre
que um projeto se mostra inoperante, outro surge para ocupar seu lugar.
Um desses projetos, o Ensino à Distância (EaD) em nível superior, é
apresentado como uma solução, em especial para a falta de professores no
país. Entretanto, como veremos, é, de fato, um enorme problema.
O EaD cresceu de forma muito expressiva ao longo da década de 2000, passando de pouco mais do que seis mil vagas
para 1,7 milhão de vagas em 2010, número praticamente igual ao de
concluintes do ensino médio, que foi da ordem de 1,8 milhão em 2010 (1).
Não há nenhum sentido nisso, ainda mais se considerarmos que o número
de vagas em cursos presenciais é muito superior ao número de formados no
ensino médio. Quem ganha com isso é certamente o setor privado, que
detém mais do que 97 % das vagas em EaD, conquistando, assim, um enorme
poder de barganha e de pressão sobre ações que eventuais órgãos de
controle do sistema educacional possam vir a ter no futuro para corrigir
a distorção criada.
Quem oferece EaD e para que áreas?
Nos processos de estudo, ensino e aprendizado, não devemos abrir mão
de nenhuma possibilidade: aulas expositivas, laboratórios, estudos
individuais ou em grupo, apostilas, listas de exercício, visitas a
museus, consultas a bibliotecas etc. Os instrumentos de ensino à
distância, sejam na forma de emails, telefonemas, sites, vídeos, sons,
ambientes virtuais, blogs etc., também podem e devem ser usados.
Portanto, não há nada contra o ensino à distância como um instrumento a
mais que possa favorecer o processo de aprendizado.
No entanto, isso que foi dito acima nada tem a ver com a forma que o
EaD se instalou no Brasil: entre nós, o EaD não é algo a mais para se
oferecer aos educadores e educandos, mas algo que pretende substituir o
ensino presencial, em especial no que diz respeito à formação de
professores.
De fato, a maior parte das vagas oferecidas no EaD é na área de
Educação (36% delas), que inclui a formação de professores nas diversas
modalidades. A área de Gerenciamento e Administração ocupa o segundo
lugar, com 31% das vagas, apesar de uma das distorções do sistema de
ensino superior brasileiro ser exatamente o fato de a proporção de
estudantes e formados nessas áreas ser excessivamente alta quando
comparada com o que ocorre nos demais países. Ciências Sociais,
Computação, Serviço Social e Contabilidade têm, cada uma, cerca de 5%
das vagas.
Áreas com maior prestígio social e maior controle por parte de
conselhos de classe e de outros órgãos ou ministérios além do MEC (como
ocorre com cursos na área de saúde) têm uma participação nas vagas bem
menor ou mesmo nula. Assim, a área de Engenharia, apesar da importância
da profissão para o desenvolvimento do setor produtivo, a reconhecida
carência desses profissionais e a grande procura por parte dos
estudantes, tem menos do que 1% das vagas oferecidas em EaD. Enfermagem
também tem menos do que 1% das vagas e Odontologia e Medicina, nenhuma.
Evidentemente, poder-se-ia argumentar que é natural que Medicina e
Odontologia sejam incompatíveis com o EaD por exigirem uma experiência
prática com pessoas; mas o mesmo argumento não valeria para Enfermagem? E
para professores, cuja totalidade da vida profissional será em contato
direto com pessoas (os estudantes), o argumento não seria ainda mais
forte? E para professores nas áreas de Biologia, Física e Química, como
formá-los sem um intenso contato com práticas experimentais e de
laboratório?
Não restam dúvidas de que as proporções das vagas oferecidas em EaD
não estão relacionadas às necessidades nacionais de profissionais, mas,
sim, são em número tão maior quanto mais frágil e menos controlada é a
profissão e mais “vendável” for o curso.
A quem se destina o EaD no Brasil, hoje
As argumentações em defesa do EaD no Brasil são baseadas em uma série
de erros de avaliação ou de desconhecimento do por quê a realidade é
como é. Uma constante nas justificativas do EaD é a necessidade de
professores no país, em especial de professores para o ensino médio e as
séries finais do ensino fundamental. A premissa é correta: realmente,
faltam professores em salas de aula, em especial nas escolas públicas, e
os que atuam são sobrecarregados. Mas qual a causa disso? É realmente a
falta de professores formados ou a impossibilidade de formá-los em
cursos presenciais?
A resposta a essa última pergunta é não. Não é verdade que não
existam professores em quantidade suficiente para atender à demanda:
eles e elas existem, mas cerca de um milhão de pessoas com cursos de
licenciatura estão fora das salas de aula. Esse número de professores
que não se dedicam ao ensino corresponde a cerca de 70% das pessoas que
concluíram cursos de licenciatura nos últimos 25 anos e que, portanto,
estão na idade profissionalmente ativa. E a explicação para esse fato é
fornecida pelas condições de trabalho, pelo baixo prestígio da
profissão, pelo desrespeito profissional que sofrem até mesmo por parte
das pessoas responsáveis pela execução das políticas educacionais do
país e pelas condições salariais.
Há apenas duas únicas áreas em que o número de professores é inferior
à demanda: Física e Química. Mas, mesmo nessas duas áreas, há um enorme
número de professores formados fora das salas de aula. Grande parte
deles poderia ser incorporada ao quadro de professores ativos caso
houvesse melhores condições de trabalho. Se na média de todas as áreas
cerca de 70% dos licenciados formados não dão aulas, em Física esse
percentual chega a 75% e em Química, a 80%.
A falta de professores não é, portanto, devido a uma real
inexistência de pessoas formadas e nem mesmo falta de vagas em cursos de
licenciatura presenciais ou de jovens interessados pela profissão.
Mesmo nas duas áreas citadas acima, Química e Física, além de haver um
grande número de formados fora das salas, há uma possibilidade de
formação de um número significativamente maior em cursos presenciais. A
procura de jovens por cursos superiores que levem à formação de
professores nas áreas de Física e Química é maior do que a média de
todas as profissões: como mostra a tabela, mais de 60% das vagas
oferecidas nos cursos de formação de professores de Física e Química são
ocupadas, porcentagem significativamente superior à média em todas as
áreas, da ordem de 51%. O problema surge posteriormente, no abandono
durante o curso: enquanto a relação entre concluintes e ingressantes é
52% em todas as áreas, em Física e Química as relações são de 26% e 38%,
respectivamente. Conclusão: há jovens interessados; entretanto, e
possivelmente alertados pelas condições salariais e de trabalho que
encontrarão pela frente, grande parte deles abandona seus sonhos. E,
finalmente, como já dito, cerca de 75% a 80% dos formados estão fora das
salas de aula.
Portanto, se conseguíssemos preservar boa parte desses candidatos a
professores de Química e Física, em poucos anos superaríamos a
deficiência de professores nessas áreas, um tempo certamente inferior ao
tempo já decorrido desde que experiências com EaD, como a Universidade
Aberta do Brasil (federal) ou a Univesp (no estado de São Paulo),
começaram a ser implantadas.O problema de formação de professores,
portanto, é bem diferente daquele que os defensores do EaD dizem que
esse sistema solucionará.
Talvez o EaD seja um bom exemplo de uma coisa que acontece
freqüentemente no Brasil: quando um problema é localizado, ao invés de
se tratar de resolvê-lo ou, pelo menos, reduzi-lo, tenta-se tirar
proveito dele. Assim, há um enorme interesse por parte das instituições
de ensino privado no sentido de explorar as possibilidades mercantis do
EaD. E, para isso, nada melhor do que disfarçar esse interesse na forma
de uma preocupação social, a formação de professores.
Mais justificativas falsas em defesa doEaD
Embora seja o setor privado o grande beneficiário do EaD, o setor
público tem colaborado, e muito, para defendê-lo e, ao oferecer, ele
mesmo, cursos a distância, acaba por legitimar esse tipo de ensino.
Vejamos alguns argumentos usados pelo setor público para defender o EaD.
Nos discursos e documentos, além dos argumentos relacionados à falta
de professores, aparecem argumentos econômicos. Um deles, usado pelo
governo estadual paulista e publicado na página eletrônica da então
existente Secretaria de Ensino Superior, afirmava que o estado de São
Paulo “investe 10% de sua receita líquida na educação superior”,
argumento que soa forte para justificar o EaD, em especial junto a uma
população que tem pouca familiaridade com os temas relacionados aos
detalhes dos orçamentos públicos e dos orçamentos das universidades.
Levando em conta esses detalhes, verifica-se que os investimentos em
ensino de graduação são inferiores à terça parte daquele valor! Ou seja,
aquela é uma informação simplesmente falsa.
Outro argumento também repetido pelo setor público na defesa do EaD
baseia-se na hipótese de que as pessoas não têm acesso à educação
presencial, o que torna necessário implantar o EaD. Ora, o EaD está
sendo oferecido basicamente à população urbana, não havendo, portanto, o
problema da distância. Se pessoas não têm acesso ao ensino presencial,
não é por dificuldade de deslocamento, falta de tempo ou qualquer outra
razão equivalente. A principal razão para explicar a “dificuldade de
acesso” é a simples inexistência de vagas nas universidades públicas: no
Brasil e, em especial, no estado de São Paulo, muitos dos estudantes
matriculados em cursos à distância residem em municípios ou mesmo em
bairros onde há instituições públicas de ensino superior presencial e de
qualidade, mas que não oferecem vagas em quantidade suficiente.
Se há jovens interessados e preparados que querem freqüentar cursos
superiores e não podem fazê-lo por razões econômicas, devem ser usados
instrumentos adequados de gratuidade ativa que os permitisse freqüentar
cursos presenciais. O retorno social e econômico seria muito maior do
que oferecer EaD.
Alguns problemas do EaD (2)
O EaD apresenta vários problemas de ordem acadêmica e social. Entre
eles, estão a quase inexistência da possibilidade de programas de
iniciação científica e a falta de perspectiva de prosseguir os estudos
em nível de pós-graduação. No EaD, muito provavelmente os estudantes
também não terão acesso fácil a boas bibliotecas nem ao necessário
contato pessoal com outros estudantes e professores da mesma área e,
muito menos, com estudantes e professores de áreas diferentes (ao
freqüentarem disciplinas optativas ou encontrá-los nos espaços comuns,
por exemplo), coisas fundamentais e uma das características essenciais
das universidades.
No ambiente universitário presencial ocorre uma série de atividades
extremamente importantes para a formação geral, tais como seminários,
debates, cursos de extensão, diversas programações culturais, além da
possibilidade de se freqüentar uma enorme gama de disciplinas. Essas
atividades, bem como as aulas práticas e de laboratório, são
inexistentes ou muito raras no EaD.
O ambiente universitário oferece oportunidades importantes para
estudantes provenientes dos segmentos menos favorecidos (e que serão os
principais usuários do EaD), como, por exemplo, o acesso a práticas
esportivas, alimentação subsidiada, atendimento médico e odontológico,
entre várias outras. No EaD, essas coisas ou não existem ou são de
difícil acesso.
O EaD pressupõe que o processo de ensino e aprendizado ocorra,
majoritariamente, em casa. Ora, o ambiente de moradia não é, em geral,
um bom ambiente de estudo, em especial para jovens das camadas menos
favorecidas, para os quais uma moradia isolada e silenciosa é algo
simplesmente inexistente. As aulas presenciais, nas quais os estudantes
ficam imersos em um — e apenas um — assunto, são fundamentais no
processo ensino e aprendizado.
Adotar o EaD como substituto do ensino presencial poderá comprometer
gravemente a qualidade da formação dos profissionais de que o país
precisa. Os diversos países que usam o EaD, em proporções muito
inferiores àqueles números citados anteriormente, o fazem direcionando
essa forma de ensino àqueles que realmente não podem ter acesso ao
ensino presencial, como prisioneiros, pessoas impossibilitadas de
locomoção, aqueles que trabalham em tempo integral (estes últimos,
sobretudo nos países e em cursos nos quais a educação superior é
exclusivamente, ou quase exclusivamente, em tempo integral), militares
engajados, entre outros. No Brasil, entretanto, tem se adotado o EaD em
substituição ao ensino presencial, o que poderá comprometer gravemente a
qualidade da formação inicial dos profissionais, em especial se o
profissional assim “formado” tiver que atuar na “formação” de outros
profissionais, como é o caso do professor.
Em particular, formar professores por meio do EaD poderá comprometer
duas gerações, a dos próprios professores formados e a de seus alunos.
Além disso, contribuirá ainda mais para um rebaixamento dos critérios
que a sociedade tem para julgar o que é e o que não é educação superior e
ensino universitário.
Como transformar solução em problema
Atualmente, o Brasil tem um número de doutores já superior a 100 mil e
talvez perto de 200 mil mestres que não completaram o doutoramento,
perfazendo um total de 300 mil pessoas preparadas para a docência em
nível superior. Esses profissionais têm plenas condições de contribuir
com um ensino superior presencial de qualidade e o fariam com
competência, pois foi para isso que se formaram. Entretanto, grande
parte desse contingente é subutilizada, em especial os que concluíram a
pós-graduação mais recentemente. Perder a oportunidade de associar o
interesse e a capacidade de trabalho dessas pessoas às necessidades e
possibilidades do país é um erro duplo: a um mesmo tempo, desperdiçamos
os esforços feitos para formar essas pessoas e ofereceremos um ensino
superior, via EaD, precário. Descartarmos a possibilidade de aproveitar
os quadros já formados em nosso ensino superior presencial e
enveredarmos pelo caminho do EaD não parece muito inteligente.
Os países desenvolvidos que adotam o EaD o fazem como algo adicional
à educação presencial, não como algo que a substitua. E as elites
certamente não optam pelo ensino à distância, nem para a formação de
seus jovens nem para a escolha dos profissionais que as assistem. E,
também certamente, as profissões de maior prestígio social jamais
considerariam a hipótese de optar pelo EaD.
Resolver velhos problemas é bem melhor do que criar novos
Atualmente, quase a metade dos jovens é obrigada a abandonar a
educação básica antes da conclusão. Como menos da metade dos que a
concluem o fazem no período diurno, podemos estimar que não mais do que
um em cada quatro jovens termina a educação básica com as condições
mínimas necessárias para a continuidade de seu processo educativo. Se,
além desses fatores, considerarmos a precariedade das escolas públicas
na maior parte dos casos, onde está a enorme maioria dos jovens que
terminam a educação básica, concluímos que a fração de jovens que
completa o ensino médio com bases suficientemente sólidas para continuar
seus estudos é muito pequena. Dentro dessa dura realidade, o EaD nada
resolverá. Ao contrário, oferecer EaD a um contingente de jovens que, já
nas atuais circunstâncias, tem dificuldades em entender o que é um
ensino universitário contribuirá para rebaixar ainda mais os critérios
do que sejam um sistema e um processo educacional de formação humana,
técnica, cultural, científica e social.
Oferecer uma aparente alternativa, na verdade um desvio, levará a
reduzir, ainda mais, o aproveitamento da capacidade intelectual de
nossos jovens e não resolverá o problema da exclusão, apenas mudará a
forma pela qual ela ocorre. Não é preciso ser um especialista em Brasil
para perceber que o EaD é destinado aos mais pobres e cujos filhos terão
professores formados, também, à distância.
Com certeza, não é isso que queremos. Tendo deixado o EaD aparecer
nessa quantidade, descontroladamente e quase totalmente dominado pelo
setor privado mercantil, passamos a ter mais uma tarefa pela frente:
lutar para reverter essa situação.
E cabem algumas perguntas finais. Por que os órgãos responsáveis
permitiram que o EaD atingisse as enormes proporções que atingiram? Por
que governos legitimam o EaD da forma que fazem?
Notas:
(1) Fonte: Sinopses Estatísticas da Educação Básica e da Educação Superior, Inep, 2010
(2) Muitos dos argumentos desta
seção foram levantados pelo grupo de trabalho de política educacional da
Associação dos Docentes da Universidade de São Paulo, Adusp - Seção
Sindical, e divulgados em publicações dessa entidade.
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Um blog de informações culturais, políticas e sociais, fazendo o contra ponto à mídia de esgoto.
terça-feira, 22 de maio de 2012
Ensino à distância não é uma solução, e sim outro problema a ser superado
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