Procurei bastante por aí,
mas não encontrei. Até onde pude averiguar, não há precedente moderno,
em nação democrática, de um Congresso Nacional prestando-se ao ridículo papel de discutir “cura para homossexuais”. Você encontrará, claro, deputados individuais dando declarações que sugerem “cura para gays”, como é o caso do homofóbico costarriquenho Juan Orozco.
Mas não consegui achar, em casa legislativa de país democrático, um
vexame comparável ao que se prestou a Câmara dos Deputados brasileira
nesta quinta-feira. A Câmara se reuniu para um “debate”, uma audiência
pública da Comissão de Seguridade Social e Família, acerca de um pedaço de lixo,
em forma de Projeto de Decreto Legislativo, defecado por João Campos,
evangélico tucano de Goiás e homofóbico-mor do Congresso. O projeto se
arroga o direito de sustar uma resolução do Conselho Federal de
Psicologia que, com muito atraso, em 1999, definiu que os profissionais
da área não patologizarão práticas homoeróticas e não colaborarão com
serviços e eventos que proponham tratamento e cura da homossexualidade.
Como notou Antonio Luiz Costa, da Carta Capital, mais esdrúxulo ainda é
que o pseudo-debate, pasmem, foi convocado por um deputado do Partido
Verde.
O estado de exceção em que vivemos se converteu em
regra a tal ponto que uma monstruosidade dessas é discutida como se se
tratasse de um debate razoável, com duas ou mais posições em comparável
condição de reinvindicar a razão ou a verdade. O fato é noticiado como
se não fosse absurdo. Votações online colocam as opções como se se tratasse de uma escolha entre termos simétricos, e não a justaposição entre uma posição consensualmente científica
e um delírio de psicopatas fundamentalistas. No mundo realmente
existente, claro, não há qualquer discussão, em nenhuma disciplina
séria, sobre se a homossexualidade é ou não é doença, desvio, aberração
ou anormalidade a ser curada. Num país em que se assassina um gay ou
lésbica (ou cidadã[o] confundido[a] com gay ou lésbica) a cada 36 horas –
lembrando sempre que esses números são brutalmente subrreportados –,
aceitar um “debate” nesses termos já é, por definição, sujar as mãos de
sangue.
É evidente que, no interior de uma sociedade
homofóbica, a violência real e simbólica perpetrada contra gays e
lésbicas produzirá sofrimento que, em maior ou menor grau, poderá ter
consequências que se encaixam entre as tipicamente tratadas num
consultório de psicólogo, psicanalista ou terapeuta. Também é evidente
que, nesses casos, o que será tratado ou “curado” – e há toda uma
discussão sobre o que essa palavra pode significar, seu clássico sendo o
Análise Terminável e Interminável, de Freud – não será,
jamais, o desejo, a afetividade ou a prática homoerótica em si, e sim a
condição produzida no sujeito, seja lá ela qual for, a partir da
violência homofóbica. A Resolução de 1999 do Conselho Federal de
Psicologia simplesmente estabelece, como parâmetro ético inegociável
para o exercício da profissão, o reconhecimento desse fato, em
conformidade com resolução análoga da Organização Panamericana de Saúde.
Há que se atentar que a iniciativa homofóbica dos
Deputados João Campos (PSDB-GO) e Roberto de Lucena (PV-SP) vem, toda
ela, embrulhada no discurso da liberdade de expressão. “Deixa a pessoa
ter o direito de ser tratada”, diz a pseudo-psicóloga homofóbica Marisa
Lobo, estrela do “debate” e convidada de Gleisi Hoffmann a eventos
oficiais no Palácio do Planalto (enquanto a tropa de choque governista
nas redes sociais inventa cada vez mais malabarismos para dizer que o
governo não tem responsabilidade no surto de assassinatos homofóbicos). A
baliza ética expressa na resolução do CFP e universalmente aceita entre
profissionais de todas as psicoterapias – a saber, a de que
homossexualidade não é doença a ser “tratada” – é apresentada por João
Campos nos seguintes termos: “É como se o Conselho Federal de Psicologia
considerasse o homossexual um ser menor, incapaz de autodeterminação”.
No mundo realmente existente, claro, é o jovem gay de 15 anos de idade, e
não a corja fundamentalista, que é morto a pauladas na rua. Mas os nossos Deputados acham que é o seu ódio que ainda está sendo cerceado em seu direito de expressão.
Alguns amigos acharam que minha ênfase, ao longo
desta sexta-feira no Twitter, no ineditismo desse fato – um Congresso
nacional discutindo o direito de se “curar” gays – era contraproducente.
Discordo. É importante afirmar: barbárie como esta que está acontecendo no Brasil é raramente encontrada em sociedades democráticas modernas.
O evento desta quinta-feira no Congresso é mais uma reiteração dessa
barbárie. A única postura que cabe em relação a esse “debate” é
denunciar sua própria existência.
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