sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Classe trabalhadora reage ao avanço no desmonte dos direitos sociais

Escrito por Osvaldo Coggiola   


Na greve do funcionalismo público federal (Andes, Fasubra, Sinasefe, principalmente) se concentram todas as contradições da política brasileira. Em inícios de agosto, até os servidores (funcionários) da Polícia Federal votaram sua entrada em greve. A oferta de “reajustes” salariais do governo Dilma não cobre sequer as perdas dos anos em que os salários permaneceram congelados, sem falar na destruição da carreira funcional. Uma vez descontada a inflação, mesmo usando índices modestos e otimistas, os reajustes médios propostos pelo governo até 2015 variam entre 0,36% e 5,52% negativos. A “economia de caixa” que o governo pretende com o arrocho salarial federal está a serviço de uma política de subsídios ao grande capital. Não se trata apenas do pagamento da dívida pública, que compromete cerca de 50% do orçamento da União, mas também, entre outras coisas, da utilização do endividamento público para repasse direto de recursos a empresas privadas, subsidiadas pelo BNDES (que acaba de comemorar o destino do montante de R$ 342 milhões a um dos maiores conglomerados industriais do mundo - a Volkswagen).

Desde 2008, o governo (então Lula) abriu mão de R$ 26 bilhões em impostos para a indústria automotiva: cada carteira assinada pelos monopólios do automóvel custou um milhão de reais ao país. O resultado? A remessa, por essas empresas, de quase R$ 15 bilhões ao exterior, na forma de lucros e dividendos, para cobrir os buracos de caixa das matrizes “em casa” (EUA, Europa, Japão) e a onda de demissões que ora se desenvolve no setor automobilístico.  A crise mundial não perdoou o Brasil, como irresponsavelmente Lula insistiu em dizer ao longo de anos. A produção industrial recuou por três meses consecutivos, e o investimento por três trimestres consecutivos, em que pese os generosos créditos ao capital do BNDES com taxas subsidiadas, configurando um panorama de recessão. Isto em que pese o pacote de estímulos industriais, que perfaz a soma de R$ 60 bilhões (desoneração fiscal, ampliação e barateamento do crédito, redução de 30% do IPI, subsídios para as tarifas elétricas etc.). Em energia, houve 10% de redução para as grandes empresas; os grandes empresários já pagam por uma energia subsidiada, mas continuam pressionando o governo para uma redução da carga tributária. Não bastasse todos os incentivos já oferecidos, como as reduções tributárias para estimular a venda de veículos e reduzir o estoque das montadoras nos pátios, agora o BNDES também oferece recursos para elas brincarem de “inovação tecnológica”.

A crise mundial bate diretamente à porta do país: o saldo comercial favorável de US$ 31,3 bilhões de novembro de 2011 (quando as exportações brasileiras bateram recordes históricos) recuou para US$ 23,9 bilhões em junho deste ano. A desaceleração do PIB já bate as previsões mais pessimistas. A taxa de juros de longo prazo foi reduzida de 6% para 5,5%, e o governo anunciou compras (máquinas, caminhões, ônibus) por valor de R$ 6,6 bilhões. O resultado? Menos de 1% de investimento no PIB, que não compensa nem metade da queda do investimento durante o primeiro trimestre de 2012. E novas demissões no setor automotivo, começando pela GM de São José dos Campos, que anunciou 1.500 demissões e um plano de deslocalizações (o processo de demissões também vem afetando outras montadoras: Volkswagen, Mercedes, Volvo).

A Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2013 prioriza o superávit primário e não assegura reajuste para o funcionalismo público além do que for negociado até 31 de agosto, proporcionando a garantia do superávit primário para remuneração dos parasitas financeiros (em 2012, a parcela do Orçamento Geral da União destinada aos juros e amortizações da dívida já supera os 47%) e criando todo tipo de obstáculo para a recuperação das perdas salariais dos servidores públicos. Desde o Plano Real (1994), enquanto os gastos governamentais ficaram congelados, a LDO garantiu atualização da dívida de forma automática, mensalmente, e por índices calculados por uma instituição privada, índices que tiveram variação muito superior ao índice oficial de inflação, o IPCA. Sobre essa robusta atualização ainda incidem elevados juros reais (a Lei de Responsabilidade Fiscal limita gastos e investimentos sociais, mas não estabelece limite algum para o custo da política monetária), por isso a dívida brasileira é a mais cara do mundo, uma política que foi acentuada pelos governos do PT. A dívida federal tem sido atualizada automaticamente, mensalmente, pelo IGP-M. A dívida dos estados (com a União) tem sido atualizada automaticamente, mensalmente pelo IGP-DI. Ambos são calculados pela FGV e suas variações no período foram muito superiores ao IPCA.


A dívida pública brasileira já supera R$ 3,2 trilhões (em valores de novembro de 2011), ou 78% do PIB, e consome quase metade dos recursos da Federação. Tudo é bom para pagá-la, até o imposto de renda das pessoas físicas, modificado sob a justificativa de simplificação: diversas deduções foram abolidas, e o trabalhador está cada vez mais onerado; enquanto desde 1996 as “pessoas jurídicas” (empresas) podem deduzir juros calculados sobre o capital próprio, despesa não efetivamente paga, fictícia, que beneficia empresas altamente capitalizadas, como os bancos. Houve fechamento de postos de trabalho em grandes bancos, principalmente Itaú e Banco do Brasil. A rotatividade de mão de obra continua alta nas instituições financeiras e é utilizada para reduzir a massa salarial. O salário médio dos trabalhadores contratados, em número menor às demissões, foi 38,2% inferior ao dos desligados.
O arrocho salarial público e privado é, nesse quadro, o primeiro patamar para um ataque histórico com vistas a que “os trabalhadores paguem pela crise”. O corte de salário dos grevistas das universidades, por exemplo, é uma medida inconstitucional, pois desrespeita o preceito pétreo da autonomia universitária. A resposta do funcionalismo (especialmente docentes e funcionários educacionais) não se fez esperar: em tempo recorde foram paralisadas 58 das 59 universidades federais, e foram organizadas massivas marchas e jornadas de luta em Brasília. Isto pese a forte atuação de um pseudo sindicalismo pelego (Proifes) favorecido e subsidiado pelo governo (e a CUT) nas universidades. Os auditores fiscais empreenderam medidas de luta em todo o país, por um reajuste salarial de 30%, que chegaram a paralisar o polo industrial de Manaus. Os professores estaduais da Bahia já completaram quatro meses de greve com assembleias multitudinárias. Nos servidores do Ministério da Saúde (ex-INAMPS) e do TEM, a proposta de greve por tempo indeterminado não foi aprovada, mas está se realizando um dia de paralisação por semana.

E os trabalhadores do setor privado também começaram a reagir, com o corte da Via Dutra pelos trabalhadores da GM, contra as demissões e o “banco de horas” (flexibilização trabalhista); em São José há um processo de reação dos metalúrgicos, com uma passeata com 2.500 trabalhadores e duas paralisações de duas horas (foi votado o “estado de greve”), além de outras greves, por enquanto localizadas. E teremos agora a entrada em cena de categorias fundamentais como correios, petroleiros, bancários e metalúrgicos com suas campanhas salariais no segundo semestre. Fundamental, após mais de vinte anos sem realizar greve, os trabalhadores eletricitários das empresas do grupo Eletrobrás – Furnas, Chesf, Eletronorte, Eletrosul e outras 10 empresas – paralisaram a partir de 16 de julho. A decisão pela greve foi tomada em assembleias realizadas em todo país. Os trabalhadores não aceitaram a contraproposta da empresa referente ao reajuste salarial, reivindicando 10,73% (a Eletrobrás ofereceu apenas 5,1%). A categoria tem cerca de 30 mil trabalhadores; a greve atinge 14 empresas, sendo oito são geradoras de energia. Os petroleiros (FUP) também discutem a possibilidade de greve.

A revolta crescente dos trabalhadores é a revolta das forças produtivas contra a decomposição do capital e a submissão nacional. A postura do governo Dilma frente à greve nacional dos docentes e, mais recentemente, dos técnicos e administrativos das universidades federais não é uma simples “contenda trabalhista”, embora a greve possua pauta precisa e objetiva: carreira, malha salarial e condições de trabalho (mais concursos e recursos para as instituições). Em 13 de julho, quando a greve dos professores das universidades federais já estava a ponto de completar dois meses, o governo finalmente ofereceu à categoria uma proposta, rejeitada pelas assembleias de base da categoria. A partir dos dados do ICV/Dieese e de uma projeção futura, o Andes estimou o reajuste necessário em, pelo menos, 35%. Para a maior parte dos docentes, a proposta do governo significará, em 2015, um salário real menor que o recebido em 2000. A tendência é a greve continuar: na rodada nacional de assembleias gerais, entre os dias 16 e 20 de julho, para avaliar a proposta apresentada pelo governo, os professores rejeitaram a proposta de modo categórico; as 58 AGs realizadas rejeitaram a proposta, a maioria por unanimidade.

Depois de agradar o capital (financeiro, industrial, comercial e agrário) com todo tipo de “bondades”, ao longo da última década, acentuadas no governo de Dilma Roussef, garantindo o total apoio político daquele, o governo define agora a agenda de um ataque histórico ao trabalho, mediante as “novas regras do INSS” (destruição da previdência social pública e fator 85/95: concessão de aposentadoria quando a soma da idade e do tempo de contribuição for de 85 anos para as mulheres e de 95 anos para os homens; sem falar que, desde a implantação do “fator previdenciário”, o governo “economizou” R$ 21 bilhões, dinheiro roubado dos trabalhadores) e a “flexibilização do mercado de trabalho” (adequação de legislação trabalhista às necessidades do capital em crise). “Reforma da previdência, flexibilização das leis trabalhistas e privatizações são temas da velha Agenda Perdida, elaborada por economistas quando da primeira eleição de Lula, em 2002”, de acordo com um comentarista do capital, com vistas a “desobstruir os investimentos produtivos e cuidar do crescimento da economia pelo lado da oferta”. O que quer dizer este enigmático enunciado?

Segundo Valor Econômico, “a presidente Dilma Rousseff prepara para depois das eleições municipais a negociação com o Congresso de duas reformas: a da previdência do INSS, em troca do fim do fator previdenciário, e a que flexibiliza a legislação trabalhista, cujo anteprojeto está na Casa Civil e que deverá dar primazia ao que for negociado entre as partes sobre o legislado, ampliando a autonomia de empresas e sindicatos”. Seriam tomadas “medidas de concessão do serviço público ao setor privado, redução dos encargos da conta de energia elétrica, reforma do PIS/Cofins e incorporação de mais setores na desoneração da folha de salários”. Dilma realizaria o “trabalho sujo” que o governo Lula deixou pendente.

Porque agora?  Pelo impacto da crise (mundial): só no estado de São Paulo, nas plantas de São José dos Campos e São Caetano do Sul, a GM já demitiu em quinze meses mais de dois mil operários, 1.400 só em São José dos Campos. Entre outras coisas, a idade mínima de aposentadoria seria elevada (acabando com a aposentadoria por contribuição e instituindo a idade mínima de 65 anos para homens e 60 anos para as mulheres) e a desoneração da folha salarial, já implementada, seria acrescida da facilitação para demitir e contratar precariamente, ou “Contrato Coletivo Especial”. O governo propõe o “Acordo Coletivo de Trabalho com Propósito Específico” (ACE), que regulamentaria a criação de Comitês Sindicais de Empresa (CSE), ignorando a legislação trabalhista e os próprios sindicatos por categoria. É um ataque histórico às conquistas dos trabalhadores.

E há um recrudescimento do processo de criminalização das lutas e organizações dos trabalhadores e da violência contra os pobres que se manifesta nos assassinatos de dezenas de jovens pobres e negros pela polícia na periferia de São Paulo; na violenta repressão às greves dos operários da construção civil (há operários presos até hoje em Rondônia, devido à greve que ocorreu em Jirau, em abril); na violência da desocupação do Pinheirinho; nas ameaças de morte a dirigentes e ativistas de movimentos populares da cidade e do campo. Diante disso, também há um crescimento das lutas populares, tanto no campo quanto na cidade, como se expressou na resistência do Pinheirinho, em diversas outras ocupações urbanas, na luta quilombola (como no Quilombo do Rio dos Macacos, na Bahia).

A reação operária e sindical provocou que, surpreendentemente, “a Central Única dos Trabalhadores (CUT) repudia(e) veementemente a publicação do decreto governamental 7777 que prevê a substituição dos servidores públicos federais em greve por servidores estaduais e municipais” (isto sem falar no corte de ponto do funcionalismo ordenado por Dilma). E até que uma fração do PT, até aqui caracterizada pela obsequencia, manifestasse que “no governo Dilma os salários foram congelados no primeiro ano de governo e as reposições inflacionárias passaram a ser promessas, feitas de forma parcelada e após o período de apuração”, o que é menos do que uma parte da verdade (os salários foram congelados bem antes). Ora, o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC (CUT) encaminhou ao governo e ao Congresso Nacional um Anteprojeto de Lei que modifica a CLT e cria o Acordo Coletivo Especial, cujo conteúdo essencial é “fazer prevalecer o negociado sobre o legislado” nas relações de trabalho. Certamente, a CUT nada faz para unificar as lutas, e menos ainda para organizar um plano de lutas de toda a classe trabalhadora, mas essas manifestações públicas anunciam uma crise na base política histórica do governo petista.

Está colocada, portanto, a luta por uma frente sindical e política pela defesa da classe trabalhadora, pela unificação das greves e das lutas do setor público e privada e pela independência de classe. Depois de uma década, a base política do governo está rachando: sobre a base da mobilização, e das plenárias de base estaduais e nacionais, devemos propor a frente única das organizações operárias e populares, por um Plano Unificado de Lutas para fazer com que os capitalistas, não os trabalhadores e a nação, paguem pela crise.

Osvaldo Coggiola, historiador e economista, é professor do departamento de História da USP.
 
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